“Mostro a mão para poder esconder o resto”

Entrevista com Daniel Galera
Daniel Galera: sem vocação para a coisa pública.
01/06/2006

Há uma década, o escritor, tradutor, blogueiro e músico paulista Daniel Galera vem dedicando grande parte de seu tempo às letras e à cultura. Aos 27 anos, é um dos nomes mais elogiados pela crítica literária nacional. Recentemente, lançou seu primeiro romance por uma grande editora, Mãos de Cavalo, pela Companhia das Letras. Antes disso, já havia publicado, pelo seu próprio selo editorial — o bem-sucedido Livros do Mal —, os volumes Dentes guardados (2000) e Até o dia em que o cão morreu (2003). Também mantém o blog Rancho Carne (www.insanus.org/ranchocarne) e a banda de pós-rock Blanched. Mas tantas realizações não o impressionam, ele garante. “É uma trajetória coerente, mas eu não diria que é composta só de êxitos”, diz. “Os êxitos são o que eu prefiro mostrar, como é natural. Fiz muita besteira pelo caminho.” É sobre essa trajetória, o mercado editorial no Brasil e os caminhos da literatura na internet que Daniel Galera falou ao Rascunho.

• Você tem 27 anos. Está na internet desde 1996 e no mercado editorial desde o início da década. Atingiu o mainstream com o fanzine eletrônico COL. Publicou pela Companhia das Letras, foi adaptado para o teatro por Mário Bortolotto e está sendo adaptado, para o cinema, por Beto Brant. Há também o blog Rancho Carne, a sua banda, Blanched, e as suas traduções. Como Roberto Marinho, você acha que está “condenado ao êxito”? Prefere, como Lobão, dez anos a mil do que mil anos a dez? Será que estamos condenados a ser multimídia?
Acho que tudo isso soa muito mais impressionante quando é citado dessa forma, numa minibiografia em um site ou numa entrevista, do que na realidade. O que posso dizer é que, a exemplo de boa parte da minha geração, me envolvi com a internet desde muito cedo, e com ela sempre consegui divulgar as coisas que fazia, por mais amadoras que fossem. Essas realizações me parecem fruto do uso intensivo da internet e de um movimento gradual de adaptação da minha vida ao meu gosto pela literatura. Tive fases de envolvimento com música, design gráfico, jornalismo. Ao longo dos anos, fui abrindo mão de certas coisas em detrimento daquilo que realmente me interessava: ler, escrever, publicar, traduzir, tudo o que tinha a ver com livros. Tive vontade de experimentar com tudo: com sites, uma editora, traduções e, agora, a publicação por uma editora grande, na qual cumpro somente o papel de autor. É uma trajetória coerente, mas eu não diria que é composta só de êxitos. Os êxitos são o que eu prefiro mostrar, como é natural. Fiz muita besteira pelo caminho. E acho que sou diferente do Lobão. Mil anos a dez talvez seja mais interessante que dez anos a mil. Bom mesmo é cem anos a cem. Ou oitenta anos a cento e vinte. Por fim, não acho que estamos condenados a ser multimídia, pelo menos não no sentido de atuar criativamente em diversas mídias ao mesmo tempo. Mas saber se movimentar pelas diferentes mídias é importante, nem que seja para dominar o essencial de suas linguagens, técnicas e sutilezas.

• Com a edição do Proa da palavra (1997-2000) e, posteriormente, com os volumes da Livros do Mal, você confirma a impressão de que o futuro da literatura brasileira está na internet? Sua consagração pela Companhia das Letras é o começo da confirmação desses “pressupostos”?
Há muitos novos autores em evidência que não participaram da internet de forma tão freqüente quanto eu (penso em Amílcar Bettega, por exemplo, ou em André Sant’Anna, Marcelo Mirisola e Paulo Scott, que tem um blog mas sempre tocou seus projetos artísticos fora do mundo virtual). Eu não diria que o futuro da literatura brasileira está na internet. Isso dá à internet uma característica que ela não tem, que é sua suposta influência no estilo e no conteúdo da nova literatura. Por outro lado, é natural que a maioria dos autores novos tenha algum tipo de atividade na internet, seja no sentido de publicação, pesquisa ou simplesmente relacionamento social. Não há como escapar. A internet é responsável, talvez, apenas por um aumento gritante do volume de textos produzidos e publicados. Então, a sensação de que novos autores possam estar “saindo” da internet é traiçoeira.

• Ainda dentro da sua faceta de editor, primeiro na internet, depois em papel, como é, agora, estar “do outro lado do balcão” — já que as atividades da Livros do Mal estão suspensas temporariamente e você acaba de ser editado por uma das maiores editoras do Brasil? Essa experiência anterior, com autores jovens, interferiu na produção do escritor? Quais, a seu ver, são as qualidades e os defeitos dos chamados “autores novos” pós-internet?
A única diferença é que posso me concentrar mais na literatura, sem ter que me preocupar com todas as outras questões que envolvem a publicação de um livro, desde sua produção gráfica até sua distribuição. O que aconteceu foi que a Livros do Mal, por ter sido um projeto bem sucedido, foi tomando proporções que nos obrigaram — a mim e a Daniel Pellizzari — a fazer uma escolha: ser editores ou ser autores/ tradutores. É dificílimo conciliar os dois. E não sei se entendo o que você quer dizer com “autores novos pós-internet”. Suponho que se refira a autores que começaram publicando na web e depois passaram para meios impressos. Como no meu caso, acho que são autores que usaram a internet para escrever e publicar de forma quase desenfreada, e aos poucos foram concentrando seu foco, tornando-se mais rigorosos. Acho que esse é um caminho natural. Mas há exceções. Paulo Bullar, por exemplo, que publicamos pela Livros do Mal, foi um autor que desde o início produziu pouco e era muito rigoroso com o que decidia publicar, seja na internet ou fora dela. Portanto, qualquer generalização nesse assunto me parece inexata. Não dá para enquadrar todo mundo. Essa geração de autores é caracterizada justamente pela imensa riqueza de referências literárias e culturais, que são reelaboradas e recombinadas de maneiras particulares por cada um, com resultados muito diversos. Os autores que acabam se destacando e conquistando um público fiel são os que têm talento e o exercitam com crescente rigor, buscando sua voz no meio de tanta gritaria.

• O que você acha que valeu mais a pena para você: editar online, escrever para internet, editar em livro, traduzir ou publicar em livro? São atividades complementares? Se pudesse, você continuaria com todas? Ou escolheria uma única? Por quê?
São complementares. Acho todas elas potencialmente interessantes, mas, na vida, as coisas acontecem em ciclos, e acho que meu primeiro ciclo de brincar de editor se fechou há um tempinho. Agora estou me dedicando a escrever e traduzir. Talvez eu volte a participar da edição de uma publicação ou me envolver com editoras no futuro, mas não tenho nenhum plano desse tipo agora. Se fosse forçado a escolher uma única, escreveria ficção, para publicar onde quer que fosse. Mas sempre será preciso combinar essa atividade com outras, para poder me sustentar. Isso não é uma sina, um fardo. É como as coisas são. Não acho que ser autor de literatura de ficção seja uma profissão. Pode vir a ser, para algumas pessoas. Mas não parto desse princípio quando escrevo.

• Agora, saindo um pouco do lado multimídia e entrando nas adaptações da sua obra… Como foi ser traduzido para o italiano? Gostou da adaptação de Mário Bortolotto? O que espera de Beto Brant? E a recepção crítica, é o que você esperava? Ela lhe afeta? Talvez possamos resumir todas as perguntas aqui numa só: você se sente compreendido em toda essa trajetória múltipla?
Italiano: foi ótimo, a sensação de ter um livro traduzido e publicado em outro país é muito boa, a noção de que há leitores lá longe lendo o que escrevo. Não houve muita repercussão, mas foi legal. Já conheci dois moradores da Itália que tinham lido meu livro, sem me conhecer. E um sujeito, em Roma, fez um curta-metragem com base num conto meu. Bortolotto: a adaptação do Dentes guardados para o teatro foi excelente, preservou o subtexto dos contos, ficou triste e engraçado. Gostei de tudo, sem restrições. Filme do Beto Brant: não sei o que esperar. O Beto é um diretor muito livre, improvisa, modifica a história ao filmar. Assistirei quando ficar pronto, como se fosse um espectador qualquer. Crítica: já fui mais ansioso em relação à recepção dos meus livros pela crítica, mas hoje em dia encaro com tranqüilidade. Acho que tive uma recepção sempre bem favorável, mais até que minhas expectativas. Mas me alegra mais a recepção dos leitores, sempre, os que vêm falar comigo ou me escrevem por iniciativa própria, seja para criticar ou elogiar. Por fim, não sei se sou compreendido, mas sinto que estou conseguindo me expressar, e esse é meu objetivo.

• Dá para viver de tradução no Brasil? Você faria traduções mesmo que não precisasse viver disso? Quais são as peculiaridades de encarar o literário Jonathan Safran Foer, o visual Robert Crumb, o marginal Edward Bunker, o cinematográfico Irvine Welsh e o blogueiro Salam Pax? O que dá mais trabalho: verter todo esse povo para o português do Brasil ou editar, em livro, os autores da geração internet?
Pela minha curta experiência, dá para viver de tradução, se ela for aliada a outros trabalhinhos eventuais. Se eu tivesse uma situação financeira extremamente estável e tranqüila, acho que traduziria algumas coisas só por gosto. Seria demorado demais entrar nas peculiaridades de cada autor que já traduzi, mas um dos prazeres é justamente mergulhar na voz de outra pessoa e tentar passá-la para o português. É um trabalho recompensador, para mim, mesmo que seja trabalhoso e ameace meus tendões das mãos, braços e ombros. Traduzir é mais fácil para mim do que editar, não porque seja mais ou menos trabalhoso, mas porque o trabalho de editor passa por atividades que não me agradam muito, de caráter mais burocrático e administrativo. Traduzir, por outro lado, é quase como escrever.

• Você acha que publicações literárias, na web do Brasil, têm futuro? A internet vai continuar sendo o suporte primordial para estreantes? Ou ainda há lugar para uma revista literária em papel? Gostaria de participar dela — ou pensa que sua carreira como editor online/offline já se encerrou? Quais foram seus maiores acertos e/ou erros? E os erros e acertos de quem está hoje no mercado?
Acho que há lugar para revistas literárias em papel. A internet não elimina a relevância das publicações impressas. O importante é que elas tenham qualidade, não apenas gráfica, mas também de conteúdo. A idéia de participar de revistas impressas, tanto como autor quanto como editor, sempre me agrada. Publicações online também. Estou aberto às duas possibilidades. E não consigo discernir meus acertos e erros de forma clara o suficiente. Posso afirmar que não me arrependo de nada que fiz, seja na internet ou fora dela. O que não significa que não houve muitos erros. Tudo foi e ainda é um aprendizado.

• Como você, um autor bem-sucedido, vê o “sistema literário” do Brasil? As editoras estão atentas para absorver os novatos ou a sua trajetória é totalmente uma exceção? Existe um “caminho” a seguir? Que conselhos daria aos editores e às editoras? E aos jovens autores? Nosso mercado precisa de visionários como você, o Pellizzari e o Guilherme Pilla?
Minha trajetória não é uma exceção. Acho que os últimos anos foram interessantíssimos para o mercado editorial. O surgimento de dezenas de editoras pequenas, entre elas a Livros do Mal, chamou a atenção para muitos autores novos, e também para novas maneiras de publicar e divulgar livros, incorporando a internet, fazendo pequenos lançamentos em livrarias legais, aproveitando novas tecnologias e o barateamento das mais antigas, incentivando o boca-a-boca, inovando graficamente. O grande mercado editorial absorveu um pouquinho disso e, hoje, o que se tem é o convívio entre pequenas e grandes editoras, publicando uma quantidade inédita de obras e autores. O que falta, talvez, sejam leitores para fazer essa roda girar com mais energia. No meio disso tudo, nada ainda substitui o talento e o empenho pessoal dos autores. Para um autor com algum talento e a determinação necessária, o espaço está aí. As editoras — de todos os tipos e tamanhos — estão atentas.

• A nossa geração de escritores é de guitarristas/baixistas/bateristas/vocalistas frustrados? Tem a ver com o Brasil ser tão musical? Todo mundo queria ser um rock’n’roll star? E seu blog, Rancho Carne, é mais um diário de suas atividades ou você tem alguma “ambição de mídia” para ele? Por que os blogs brasileiros não são tão importantes ainda, como são, por exemplo, nos EUA?
Não vejo relação entre música rock e novos autores. Claro que há um punhado de autores identificado com isso, mas hoje em dia há um punhado de autores identificado com cada coisa que existe. Toco em uma banda, mas fazemos um ou dois shows por ano. É uma atividade que me dá muito prazer, mas ela não se confunde com minha carreira de escritor, que é a minha prioridade. Quanto ao meu blog, não tenho ambição nenhuma com ele. Ter um blog é algo básico para mim, pois sempre usei a web para tudo. Uso o blog para divulgar meus projetos, manter contato com amigos e dividir com os leitores pequenos fragmentos da minha vida pessoal. Mas ninguém seria capaz de me conhecer por meio do meu blog. O que publico ali é calculado, é uma imagem de mim mesmo. Não saio escrevendo sobre cada coisa que acontece na minha vida, muito pelo contrário. Talvez, ao expor uma pequena fração dela, eu tenha a sensação de estar controlando o que os outros sabem ou não a respeito de mim. Talvez seja minha forma um pouco paradoxal de lidar com a superexposição da intimidade que marca a época atual. Mostro a mão para poder esconder o resto.

• Como foi ser Coordenador do Livro e da Leitura, em 2005, na prefeitura de Porto Alegre? Você tem vocação para a chamada “coisa pública”? Se pudesse dar um conselho ao MinC, sobre o futuro da literatura no Brasil, qual daria? E do MLU (Movimento Literatura Urgente), o que acha? E da Flip?
Minha rápida passagem pela CLL foi uma experiência fulminante que me ensinou exatamente isso: não tenho vocação para a coisa pública. Nem para mandar em pessoas. Nem para ouvir reivindicações dos outros. Meu negócio é meu computador, meus livrinhos, meu trabalho. Eu tinha um livro para escrever, precisava do tempo. Mas foi legal. Entendi como muita coisa funciona. Conheci pessoas que se esforçam muito para realizar coisas positivas para a coletividade, em circunstâncias totalmente adversas de trabalho e orçamento. E conheci também os entraves, a má-vontade, a falta de preparo e o apetite da burocracia. O conselho que eu daria ao MinC consiste numa única palavra: bibliotecas. Na Biblioteca Pública de Porto Alegre não se comprava um livro novo havia muitos anos. Nos meus quatro meses lá, também não consegui comprar. Não há dinheiro. Era preciso antes dedetizar a biblioteca, para eliminar as baratas. Enfim, é uma situação bem grave, que requer pessoas talentosas e aptas. Não era o meu caso, portanto me retirei. Não assinei o manifesto do MLU porque não acho que escritores precisem de apoio estatal. Quanto à Flip, bem, é uma festa literária. Para mim, que fui convidado em 2004, foi ótimo. Me trataram como um autor consagrado, o que eu não era. Conheci meu atual editor lá, então de certa forma vinculo a Flip à oportunidade que tive de publicar pela Companhia das Letras. Tomara que ela prospere, que mantenha o foco mais nos livros, autores e leitores.

LEIA RESENHA DE MÃOS DE CAVALO

Julio Daio Borges
Rascunho