Alegrias inusitadas

"Luanda, Lisboa, Paraíso", de Djaimilia Pereira de Almeida, narra a saga de um pai e seu filho em busca da felicidade possível
Djaimilia Pereira de Almeida, autora de “Luanda, Lisboa, Paraíso”
28/02/2020

Djaimilia Pereira de Almeida — nascida em Luanda, Angola, em 1982, mas criada nos arredores de Lisboa — levou o Prêmio Oceanos 2019 com seu segundo romance, Luanda, Lisboa, Paraíso, dividindo o pódio com outras duas mulheres — Dulce Maria Cardoso e a brasileira Nara Vidal, respectivamente segundo e terceiro lugares. “Recebi a notícia com muita alegria: teve significado para mim, senti-me em boa companhia, e honrada por isso”, diz em entrevista concedida ao Rascunho por e-mail.

Após estrear na literatura com Esse cabelo (2015), que considera muito diferente de sua obra premiada, Djaimilia parece ter se apoiado em uma intuição para elaborar sua segunda incursão pela narrativa de fôlego: a de que um livro e uma família (até mais do que uma história) funcionam como o corpo de um animal — as suas partes são idealmente interdependentes. No caso de uma delas adoecer, o todo sente-se.

O personagem de Luanda, Lisboa, Paraíso que testa essa ideia é o angolano Aquiles e seu calcanhar problemático — como o herói da mitologia grega, protagonista na Guerra de Troia. Diferentemente do guerreiro grego, porém, o pequeno da narrativa contemporânea não cai nas armadilhas da vaidade e não precisa lidar com as consequências da arrogância; ele só segue existindo meio atarantado, ao lado do pai, Cartola, quando ambos partem da África para desembarcar em Portugal, em busca de um tratamento para o problema do menino.

É com essa partida que se inicia o desmembramento da família. A esposa de Cartola, Glória, e sua primeira filha, Justina, ficam em sua terra natal. A jornada é solitária, mas — em alguma medida — agradável, já que o patriarca deseja “vomitar Luanda”. Ele continua sendo o mesmo homem, no entanto, e as consecutivas falhas nas cirurgias do filho não colaboram para os ânimos gerais.

A saída que os dois parecem encontrar, em meio à catástrofe que a viagem gradualmente se mostra, é a resignação — como quem aproveita uma passagem pelo Inferno para abraçar o capeta. A pobreza, o fato de estarem habitando uma pensão, trabalhando duro diariamente e comendo restos de comida misturados com sardinha são encarados sem melancolia, no que o “defeito” irreparável de Aquiles parece espelhar a condição incontornável daquela família — da mesma forma que o menino continua vivendo apesar de seu calcanhar, o pai também segue em frente apesar da miséria e de tudo que lhe foi reservado até ali. “Julgo que Cartola e a família vão encontrando a alegria, aqui e ali, e que a intuem mais do que é comum: apenas a encontram em lugares onde nem sempre estamos habituados a encontrá-la”, reflete a autora.

Nesse livro que foi “muito cortado, emendado e bordado” ao longo dos anos, Djaimilia parece tentar elaborar a jornada — repleta de catástrofes, mas encarada com uma estranha calma pelos personagens — de um pai desalentado e um filho que mais parece um fantasma em busca de um cantinho no mundo, de uma reparação impossível.

“Sendo um livro curto que chegou a ser muito mais longo, foi cortado, emendado, bordado ao longo de bastante tempo.”

• Três mulheres levaram o Oceanos 2019. Como foi para você essa notícia? As perspectivas são boas com relação à representatividade feminina na literatura?
Recebi a notícia com muita alegria: teve significado para mim, senti-me em boa companhia, e honrada por isso, embora não saiba se tal implica boas perspectivas em geral para o reconhecimento de escritoras.

Luanda, Lisboa, Paraíso traz referências da Ilíada, de Homero. Qual a influência dos clássicos na sua formação literária?
Não reconheço a referência à Ilíada, de Homero, no Luanda, Lisboa, Paraíso, para lá do nome do filho de Cartola, Aquiles, e do seu problema no calcanhar, embora admita que o livro abre a porta a todo o gênero de leituras. Na minha formação, os clássicos tiveram alguma importância durante algum tempo, mas li mais filosofia da Antiguidade do que obras literárias.

• Após o nascimento de Justina, primeira filha de Glória e Cartola, a vida do casal esmorece. E, depois da vinda de Aquiles, a mãe fica doente — até deseja a morte. As crianças são uma espécie de maldição para a família?
Nunca tinha pensado assim, mas considero a sugestão curiosa. A vida de Cartola e da sua família é profundamente afetada pela circunstância de o seu filho mais novo ter nascido doente, como julgo que seria o caso em qualquer família. Mas interessou-me sobretudo de que forma essa circunstância redefine as relações entre os membros da família e, em especial, a autoimagem de Cartola, enquanto pai e enquanto homem.

• Cartola parece passar por um processo de perda de identidade ao sair de Luanda para desembarcar em Portugal. O que significa a expatriação para você? Por que trabalhou esse tema no romance?
Interessou-me pensar no modo como os lugares transformam quem somos. Mais do que a expatriação, o caso de Cartola leva-me a considerar que a ideia que fazemos dos sítios antes de os conhecermos nos contamina tanto e nos altera tão intimamente como a nossa relação com os lugares que conhecemos desde sempre.

• No início do livro, a voz que narra sugere que “uma história se parece com o corpo de um animal”. Pode falar um pouco mais dessa teoria?
Não chega a ser uma teoria. Trata-se da intuição de que um livro e uma família (até mais do que uma história) funcionam como o corpo de um animal: as suas partes são idealmente interdependentes. No caso de uma delas adoecer, o todo sente-se.

• Devido à deficiência de Aquiles, pai e filho vão a Portugal buscar tratamento. Chegando lá, mesmo em meio às dificuldades, Cartola — o pai — inicialmente tenta manter uma postura altiva. O teatro da vida é matéria-prima para a literatura?
Reconheço em Cartola uma certa altivez que, a pouco e pouco, é arrasada pela vida. Mas não reconheço nele uma atitude teatral: parece-me uma pessoa a tentar a todo o custo não abrir mão de quem julga que é, como acontece muitas vezes a alguém que perde estatuto, o que é um gênero de transformação que me interessa literariamente.

• Uma melancolia ferrenha perpassa a obra. Durante um momento de sua estadia em Paraíso, por exemplo, a filha de Cartola, Justina, sente-se morta em vida. A felicidade é prejudicial à literatura?
Parece-me que não. Julgo que Cartola e a família vão encontrando a alegria, aqui e ali, e que a intuem mais do que é comum: apenas a encontram em lugares onde nem sempre estamos habituados a encontrá-la. Considero-os tão atreitos à melancolia como atentos à alegria.

• A certa altura, fala-se da “gramática impiedosa da língua portuguesa”. Como foi o processo de criação do romance? Envolveu muita reescrita, lapidação?
Escrevi o livro ao longo de quase quatro anos, quase em exclusividade. Sendo um livro curto que chegou a ser muito mais longo, foi cortado, emendado, bordado ao longo de bastante tempo.

• Além de ter levado o Oceanos em 2019, você já foi uma das vencedoras do Prêmio de Ensaísmo Serrote (2013), ganhou o Prêmio Novos (2016) e foi finalista de diversos outros. Qual é a importância desse reconhecimento na vida dos escritores?
O reconhecimento me dá muito alento. Mais importante ainda tem sido perceber que aquilo que escrevo, os livros, pode interessar a mais pessoas e fazer um caminho que é independente de mim e do que comecei por imaginar, caminho que me dispensa quase completamente.

• Você tem uma extensa formação acadêmica ligada à literatura. Os diplomas auxiliaram na sua escrita? Esses universos — o acadêmico e o da escrita — podem conviver em harmonia?
A maior ajuda foi a de ter passado tantos anos a ler livremente muitas coisas diferentes, o que me deu uma noção de perspectiva e de humildade que considero decisivas.

• Quais elementos aproximam e afastam seu livro de estreia, Esse cabelo, de Luanda, Lisboa, Paraíso? A escrita está em constante evolução?
Considero os livros muito diferentes entre si. De um para o outro, a minha vida mudou e eu com ela.

>>> Leia texto de Miguel Sanches Neto sobre Luanda, Lisboa, Paraíso

Luanda, Lisboa, Paraíso
Djaimilia Pereira de Almeida
Companhia das Letras
200 págs.
João Lucas Dusi

É autor do livro de contos O grito da borboleta (Penalux, 2019).

Rascunho