A relevância do trivial

O cotidiano e os conflitos humanos marcam as narrativas da norte-americana Lydia Davis
Lydia Davis, autora de “Nem vem”
27/09/2018

Lydia Davis — considerada uma das vozes mais originais da literatura norte-americana contemporânea — faz uso de precisão cirúrgica em suas narrativas. Não há desperdícios por alguém capaz de afunilar o mundo. Escreve como se espiasse pelo olho da porta e esmiuçasse fragmentos. Discutível empregar o termo flash fiction aos textos de Lydia, sendo um flash algo que passa instantaneamente, em contraste com as palavras agudas da autora. Cada frase penetra no imaginário do leitor para lá se instalar. O leitor não tem como medir a tempestade anunciada por esses relâmpagos com sequelas elétricas. O leitor não esquece o que lê. Tudo cabe na memória. Concentrado está o poder de concisão, munido de sensibilidade; para os que titubeiam, recomendam-se leituras subsequentes que facilitem enxergar prismas que se encaixam na palma da mão. Lydia executa a provocação do leitor através dos temas que escolhe, capturas do cotidiano, narrativas sobre o solo firme dos conflitos humanos. E, por detrás das grades sucintas onde se trancam os personagens, o leitor descobre o prazer de encontrar a autenticidade de Lydia, a filha, a mulher, a mãe, a cidadã, a professora, a escritora em suas nuances, o que se confirma por uma declaração do seu filho mais moço, Theo Cote: “Quando leio as suas histórias e traduções, imediatamente reconheço a sua personalidade dentro delas (…). Talvez o que faça a sua obra grandiosa seja a honestidade simples e transparente nos seus métodos que brilha através deles. Vejo o seu trabalho como uma expressão sem esforço da individualidade dela no papel”.
Foi no campus da Universidade Columbia em Nova York, no princípio dos anos setenta, que Lydia conheceu o também escritor Paul Auster, com quem esteve casada por cinco anos e passou uma temporada na França, posteriormente tiveram um filho, David Auster. Havendo sido criada em Nova York, nas cercanias da Columbia, o interesse de Lydia pela literatura francesa despontou durante a estada na França e, desde lá, traduziu obras de Blanchot, Proust, Leiris e Flaubert, para mencionar alguns, e que lhe renderam o título de “Officier” da Ordem das Artes e Letras da França e o comentário pelo escritor americano Jonathan Franzen de que Lydia seria “o Proust menor entre nós”. De uns dez anos para cá, Lydia expandiu o seu universo de traduções para incluir obras em holandês e alemão.
Atualmente em seu segundo casamento, com o artista plástico Alan Cote, Lydia vive no interior do estado de Nova York, no edifício de uma antiga escola pública transformada em casa e ateliê. Envolvida na política local do vilarejo onde reside, Lydia faz raras visitas à cidade de Nova York e, apesar de ler revistas literárias, não acompanha a produção literária atual ou participa de eventos literários com frequência. Lydia prefere a vastidão que lhe oferecem os clássicos. Certamente essa tendência à retrotopia que acomete a Lydia — a todos nós, escritores incluídos, conforme as acertadas previsões de Zygmunt Bauman — é a força que preserva a literatura e permite os seus avanços. As construções mais resistentes se fortificam sobre as colunas do passado que se erguem mais altas para alçarem o futuro. Lydia está na vanguarda.

• Algumas das cartas de reclamação enviadas por você, como aquela para a funerária ou a outra para a fábrica de ervilhas, transformaram-se em peças literárias (e se encontram no seu livro Nem vem), mas os próprios recipientes destas cartas não se sentiram tocados. Como existe um poeta em um mundo impessoal e irritantemente em busca de si mesmo?
Realmente, do mesmo modo em que todas as outras pessoas existem! Confrontando desejos frustrados e rejeição ou aceitação parcial. Nós todos lidamos com isso. E eu não acho que a maior parte do mundo está em busca de si…

• Pessoas, animais e objetos estariam no mesmo nível de campo ao serem ficcionalizados?
Tenho muito respeito pelos animais, insetos, seres vivos. Uma pequena criatura, não-humana, pode ser tão boa fazendo no que faz, merece todo o respeito. Não acredito que os humanos sejam uma ordem “superior” de criatura viva, apenas diferente. Quanto aos objetos, eles também merecem interesse absoluto.

• O papel dos objetos seria o de restabelecer o silêncio como disse Beckett?
Esta é uma ideia interessante — eu não sabia que Beckett havia dito isso! “Restabelecer” o silêncio significa que o silêncio existia antes. Fico pensando que tipo de silêncio, e onde?

• O quão séria ou não tão séria pode ser a vida quando se trabalha com palavras?
A vida é sempre séria — em especial nos dias de hoje, quando eu me desespero como nunca me desesperei antes! Trabalhar com palavras permite que se crie uma pequena distância entre si e o que está acontecendo no mundo. Mas depois tem que se voltar para o mundo.

• As Histórias completas de Machado de Assis finalmente apareceram em uma nova tradução para os leitores em língua inglesa. Você percebe um interesse crescente na literatura traduzida nos Estados Unidos? A globalização e o influxo massivo de imigrantes ajudam a instigar intercâmbios culturais?
Eu tenho uma tradução mais antiga do Machado de Assis, a qual acho muito interessante. Moro no interior e não participo de eventos literários ou festas com frequência. De fato, leio alguns jornais literários. Então é difícil saber se há um interesse crescente por literatura traduzida nos Estados Unidos. No entanto, eu suponho que haja, e acredito que o influxo de imigrantes é muito bom para a minha cultura!

• Você poderia contar um pouco sobre os seus laços com a França e a sua experiência como tradutora de Proust e Blanchot, dentre outros?
Eu quis ser tradutora (e também escritora) desde cedo, ainda na adolescência. Francês foi a primeira língua estrangeira que estudei na escola (embora não a primeira língua estrangeira que aprendi, que foi o alemão). Eu era muito apegada ao francês quando me formei na universidade e fui viver na França. Blanchot foi o primeiro autor que traduzi. Posteriormente, traduzi mais cinco dos seus livros. Eu o admirava imensamente e me correspondia com ele. Nunca o conheci pessoalmente porque naquele tempo ele já não se encontrava com ninguém. Muitos anos depois que comecei a traduzir, fui convidada a participar de um projeto para traduzir Proust. Disse que sim ao convite imediatamente — este era o ponto alto da carreira de um tradutor! Anos mais tarde, apareceu-me Madame Bovary, de Flaubert. Não pude recusar.

• Em uma nota sua no livro O olhar de Orfeu, de Blanchot, você menciona que “enquanto a língua francesa é particularmente rica em significado, o inglês tem que ser mais pobre embora frequentemente a correspondência seja direta o suficiente para que talvez apenas se perca um pouco”. O quanto seria este “pouco”?
Como em qualquer tradução, não se pode atingir a mesma unidade que se alcançou no original, quando o pensamento e as palavras com as quais se expressa tomam forma juntos e simultaneamente. Às vezes, consegue-se chegar bem perto.

• Tocar música, traduzir, escrever, ministrar aulas — estas atividades complementam-se ou subtraem-se uma da outra?
Bem, agora já não dou mais aulas. Tomava muito do meu tempo e era um grande obstáculo para a minha escrita e outras atividades. Mas eu desfrutava bastante de trabalhar com os alunos. Sei que normalmente posso fazer apenas uma coisa de cada vez, e é isso o que acontece. Escrevo, traduzo, toco música, leio, cuido do jardim, cozinho — tento dar toda a minha atenção ao que estou fazendo naquele momento.

“Trabalhar com palavras permite que se crie uma pequena distância entre si e o que está acontecendo no mundo.”

• Você já considerou trabalhar sem o seu caderno e apoiar-se apenas na memória? Qual você acha que seria o resultado?
Como as minhas histórias começam com uma linha de diálogo entre aspas ou uma frase narrativa que me surge no pensamento e que eu quero escrever exatamente do jeito como me ocorreu, fazer uma anotação é importante. Se eu esperasse e tentasse lembrar a linha do diálogo ou da frase, não seria tão bom. Mas a anotação é apenas o começo; o resto da história cresce a partir dali e geralmente cresce de uma maneira bem espontânea.

• Você poderia nos contar o nome de um ou mais escritores “destruidores da forma” dos quais você gosta?
Se você quis dizer inovadores, citaria Bernhard, Sebald, Grace Paley, Elizabeth Smart, clássicos mais óbvios como Beckett e Kafka e Nabokov, Clarice Lispector, Malcolm Lowry (Under the volcano [Sob o vulcão]).

• Se acaso um leitor brasileiro viesse a uma livraria em busca de obras de ficção contemporânea americana, quais seriam as suas recomendações?
Oh céus, isto seria difícil, porque leio principalmente trabalhos muito antigos de ficção, não os contemporâneos. Provavelmente, eu recomendaria a leitura de grandes obras como as histórias de Flannery O’Connor, Hemingway, Malcolm Lowry, particularmente James Agee (o romance A death in the family [Morte na família]). Por que seria importante recomendar ficção contemporânea quando há tantos livros maravilhosos do passado? Por exemplo, um romance triste, passado na Flórida — The yearling (Virtude selvagem, na versão em português), de Marjorie Kinnan Rawlings.

• O lugar chega a influenciar o seu trabalho, sendo que você foi criada em um ambiente como Nova York e atualmente vive em um antigo edifício de uma escola ao norte, no interior do estado de Nova York?
Fui criada na cidade de Nova York. Mas, antes, morei em uma pequena cidade de Massachusetts onde eu corria livremente pelas ruas — do jeito que as crianças neste país não fazem mais. Agora, para responder a sua pergunta, o lugar tem um efeito, especialmente porque eu tenho a tendência a escrever sobre o que está acontecendo na minha vida no momento. Portanto a política local, aqui no interior, assim como as criaturas que vivem ao meu redor aqui no interior, vêm para a minha ficção. Escrevo sobre as pessoas ao redor, e os animais e insetos. É tudo material bom e interessante.

• De que maneiras o medo tem afetado a sua obra literária?
Ah, pergunta esquisita. Está todo mundo com medo? O medo influencia todo o trabalho de uma ou outra forma? Talvez. O meu medo é pelo futuro do planeta. Mas não é apenas medo, também sinto resignação, e arrependimento, e tristeza. Sinto estas coisas mais do que medo. As pessoas no poder neste país não encaram a situação da mudança climática e já é tarde demais. É assim que eu sinto. Algumas jovens que eu conheço são mais otimistas — acreditam que se possa encontrar soluções para nos salvar. Não estou tão segura disso, mas serão eles a viverem no futuro e fico feliz que sejam otimistas.

• Você poderia compartilhar conosco um pouco sobre algo que escreveu a respeito do uso da vírgula pelo escritor T. C. Boyle?
Bem, eu nunca publiquei nada a respeito de Boyle e vírgulas. Foi apenas um comentário curto que fiz em uma das minhas aulas sobre Boyle e o uso que faz de pares de travessões. Não imagino como você ouviu falar sobre isso?!

• Recentemente, conversávamos com uma poeta israelense radicada em Nova York e ela me contou sobre um jovem poeta maravilhoso, cujo trabalho era excepcional até que ele começou a frequentar oficinas e MFA [Masters of Fine Arts in Creative Writing]. Após aquelas experiências, a sua criatividade ficou encolhida pelas críticas em grupo e as regras de mercado. Ele ainda escreve belos poemas mas não tão livre. A cultura dos MFAs afeta a produção literária negativamente?
Acho que algumas coisas úteis podem ser ensinadas em aulas de escrita. No entanto, concordo que a escrita mais interessante provavelmente seria produzida por jovens escritores trabalhando independentemente e sem submeter o trabalho deles a uma turma de colegas escritores e um professor. A crítica em grupo pode suprimir a excentricidade de uma perspectiva verdadeiramente individual com relação a um texto escrito. E o grupo pode ter um efeito poderoso de intimidação. O professor também pode ser uma força de repressão. Em tempos idos, os escritores se desenvolviam sozinhos. Eu tenho definitivamente sentimentos contraditórios sobre os programas de MFA e as oficinas de escrita.

• Você concordaria com a declaração feita por Robert Louis Stevenson de que “estilo é a marca invariável de qualquer mestre” e “paixão, sabedoria, força criativa, o poder do mistério e da cor, alocados na hora do nascimento não podem ser aprendidos ou simulados”?
Oh, isso é bastante para se pensar sobre. Posso pensar em escritores de romances poderosos na literatura americana e que não eram bons estilistas. O próprio Edgar Allan Poe era um escritor com um estilo muito esquisito, por vezes estranho mas provido de uma imaginação poderosa e um forte senso sobre a forma. E por outro lado existem os escritores que atingem uma técnica extremamente elevada e uma maestria de estilo e que não são, afinal, grandes escritores, tampouco são escritores interessantes. Quanto à segunda afirmação de Stevenson, é possível que seja correta, mas é tão difícil de provar ou refutar!

• A filosofia japonesa wasi-sabi trata da aceitação da transitoriedade e da imperfeição. Seria possível ver o seu trabalho sob este ângulo enquanto as histórias podem se fazer sentir, pelo menos para alguns leitores, como histórias perfeitas, permanentes e completas?
Outra pergunta interessante! Eu precisaria procurar saber mais sobre esta filosofia que imediatamente soa atraente para mim. Naturalmente acredito em transitoriedade e imperfeição. Mas é também verdade que ao trabalhar em uma história, mesmo que seja uma história curta e breve, eu me esforço para fazê-la o mais sólida e completa que consigo, dentro do seu escopo frequentemente pequeno. Portanto, suponho que a minha abordagem combine ambas as ideias: expressar algo transitório e talvez imperfeito, mas da forma mais completa possível.

• Você considera a linguagem magicamente autossuficiente?
Não, realmente não. A linguagem é às vezes poderosa e eficaz, mas às vezes inadequada, e às vezes um obstáculo. Interessa-me que para muitos animais — pássaros, mamíferos, pelo menos — gerar um som é um instinto profundo, básico. Um beija-flor pode ralhar comigo com um pio agudo e o meu gato me avisa quando tem fome ou quer colo. Eles fazem um som para se comunicar. Não acho que seja muito diferente do nosso desejo humano de fazer um som para expressar alguma coisa.

 

“O meu medo é pelo futuro do planeta. Mas não é apenas medo, também sinto resignação, e arrependimento, e tristeza.”

• Quais os elementos de Kafka e do budismo que mais a inspiram?
Esta pergunta iria requerer um livro para responder! É o humor, e a modéstia, e a compaixão de Kafka que mais me atraem, assim como a sua forma excêntrica. Quanto ao budismo, na minha visão talvez idealizadora, o que admiro sobre é, de novo, a sua modéstia, e a sua compaixão com os outros seres vivos, é conter-se (sem proselitismo) a sua simplicidade. Mas eu sei que nem todos os budistas se comportam dentro desse modo ideal que eu imagino!

• As suas histórias poderiam entrar no reino do surrealismo? De que forma, ou não?
De fato eu tenho histórias sobre sonhos — ambos os sonhos sonhados à noite e também situações na vida acordada que são como sonhos — e essas histórias são surreais, quase que por definição. Entretanto, no momento estou interessada no surreal apenas através da narração de sonhos, não na criação de histórias surreais.

• Uma resenha da seção literária do New York Times, sobre o seu livro Samuel Johnson está indignado, chamou o seu trabalho de “em parte revestido, em parte confissão e em parte tratado estético (mas um tanto obliquamente) (…) Montaigne num espírito minimalista”. Qual seria a sua opinião sobre isso?
Eu gosto! Não tento descrever o meu próprio trabalho, mas esta descrição me parece um tanto boa, até onde ela vai…

Nem vem
Lydia Davis
Trad.: Branca Vianna
Companhia das Letras
304 págs.
O fim da história
Lydia Davis
Trad.: Julián Fuks
José Olympio
210 págs.
Katia Bandeira de Mello Gerlach

Mestre em Direito Internacional pelas Universidades de Londres e Nova York. Professora e escritora, Colisões particular(res) bestiais (Editora Oitoemeio, 2015) é o seu terceiro livro de contos.

Rascunho