Após muitas tentativas e 40 anos de trabalho na imprensa, Roberto Pompeu de Toledo estréia na literatura com o romance Leda. A demora — segundo ele — deve-se à “má influência” do jornalismo: “Tive várias tentativas fracassadas na ficção porque a voz do jornalista atrapalhava o ficcionista”. Nesta entrevista por e-mail, a autor fala de sua primeira obra de ficção, crítica literária, morte e influências, entre outros assuntos.
• No conto A última porta, de Bernardo Dopolobo, personagem de Leda, discutem-se os limites da criação literária: “É que há um limite para a inventividade humana. O estoque de histórias é finito”. Se considerarmos essa afirmativa como verdadeira, por que encarar o duro trabalho de escrever um romance? Qual a recompensa, se é que ela é necessária?
A primeira recompensa é terminar, de uma maneira que você considerou satisfatória, mais uma tarefa que você se impôs. A segunda é haver pessoas que aprovem esse trabalho. Quanto ao motivo pelo qual encarar o duro trabalho de escrever, isso ocorre porque todos temos um Sísifo dentro de nós. Você conhece o mito de Sísifo. A cada dia, esse personagem da mitologia grega era condenado a subir no morro e de lá jogar uma pedra. No dia seguinte, recolhia a pedra, rolava-a de novo para cima do morro e a jogava para baixo. Claro que tudo o que tinha que ser dito já foi dito pelos escritores que nos precederam. Mesmo assim, nós vamos lá e carregamos nossa pequena pedra até o alto do morro. Mas… Será que eu acho isso mesmo? Pensando bem, meu livro se apóia num paradoxo. A certa altura aparece esse personagem para quem a porta da literatura estava fechada, porque o estoque de histórias é finito. Mas o livro está pontilhado de histórias. Na medida em que é traçada a vida do escritor Bernardo Dopolobo, vão sendo contadas as histórias contidas em seus livros. Esse paradoxo não é gratuito. É nele, de certa forma, que o livro se apóia.
• A idéia central de Leda partiu de uma notícia sobre a biografia de um famoso autor inglês. No entanto, o romance tem muito pouco, ou quase nada, do realismo abundante na atual literatura brasileira. O senhor acha que realidade e literatura devem se manter em permanente estado de conflito? A literatura não dá conta da realidade ou a transcende?
A literatura se apóia na realidade, mas a realidade também se apóia na literatura. Harold Bloom diz que Shakespeare inventou o “humano”. Acho isso esplêndido. A literatura do poeta de Stratford revelou o que havia de humano no homem. É um caso em que a literatura realiza uma revolução copernicana na realidade, invertendo a forma de o homem enxergar a si mesmo. Há autores pelos quais você não passa impunemente: Proust, Kafka… Eles mudam o modo pelo qual você encara a realidade, mesmo quando não são realistas, como no caso de Kafka. Não sei se a realidade e a literatura devem se manter em permanente estado de conflito, mas acho que existe uma tensão entre elas.
• Leda tem sido muito bem recebido pela crítica literária. O senhor considera importante essa avaliação positiva, já que durante todo o romance a crítica é tratada de maneira extremamente irônica? Ou o senhor tem a mesma opinião de Lya Luft, que em recente entrevista à revista EntreLivros disse “não ligar nada para a crítica”?
No Jornal do Brasil, onde já trabalhei, corria uma famosa história, referente a uma visita do então presidente Costa e Silva, de infausta memória, à redação. Costa e Silva disse a certa altura que não gostava das críticas que o jornal lhe vinha fazendo. “Mas presidente, são críticas construtivas”, respondeu a condessa Pereira Carneiro, então proprietária do jornal. O presidente devolveu: “Eu gosto mesmo é de elogio”. Quem é que não gosta? Claro que a avaliação positiva nos dá satisfação, e mesmo não sendo positiva pode trazer ensinamentos. Mas não se pode deixar pautar, e muito menos paralisar, pela crítica. Flaubert recebeu críticas positivas por Madame Bovary, seu primeiro romance, mas foi malhado sem piedade pelo segundo, Salambô. Se se tivesse deixado abater, não teria escrito o conto Um coração simples, uma pequena obra-prima, e muito menos Bouvard e Pecuchet, um dos maiores livros jamais escritos. Quem acha que tem algo a dizer e está consciente de que tem um trabalho a realizar deve se blindar contra as avaliações negativas ou o silêncio em torno de seu trabalho. É a única maneira de levá-lo a cabo.
• Nesta estréia, o senhor optou por um enredo ambientado no mundo literário, discutindo os limites da literatura e das biografias, além é claro da inveja, vaidade, ânsia pela fama e sucesso, entre outros sentimentos que nos perseguem. Por que esta escolha, que pode restringir o número de leitores interessados por seu romance? Seguindo a teoria de Umberto Eco, quem seria o seu leitor modelo/ideal?
Não dá para escrever pensando no número de leitores que eventualmente se interessarão pelo livro. Escreve-se embalado pelo pensamento de que se tem um bom tema e de que se sabe como desenvolvê-lo. Caso um bom número de leitores se interesse, tanto melhor. O leitor ideal? Uma vez, o Otto Lara Resende disse a alguém: “Você leu meu livro melhor do que eu o escrevi”. Acho que o leitor ideal é esse.
• O senhor é um jornalista respeitado e, digamos, de sucesso. Agora, com o lançamento de Leda, o senhor busca “a glória literária”, que tantos escritores almejam a todo custo?
“Glória literária” é um conceito do século 19. Eu o utilizo, para os personagens do meu livro, mas a eles cabe porque são de outro tempo, sei lá qual, mas outro. O século 21 é o século do “mercado” e da ”fama”. Glória é algo que volta a caber apenas aos atletas, como era na Grécia. O que eu busco é algo mais modesto. É realizar o trabalho literário que há muito me propus a realizar e fui adiando, adiando… Tenho uma dívida que contraí comigo mesmo, e pretendo quitá-la.
• De que maneira a longa experiência como jornalista atrapalhou ou ajudou na construção de Leda?
O jornalista atrapalha porque ilude o ficcionista. Fica-se pensando que, como já se adquiriu traquejo no jornalismo, pode-se transferir essa experiência para o ficcionista. Não é verdade. O ficcionista trabalha em outra clave. Tive várias tentativas fracassadas na ficção porque a voz do jornalista atrapalhava o ficcionista. A certa altura eu descobria que estava num beco sem saída e desistia. Já em Leda, eu fui até o fim, e até me encorajei a publicá-lo, porque considero que desta vez operei na chave certa.
• Sobre a velhice, Bernardo Dopolobo diz que “no ano passado fiz 60 anos. Não há um dia em que não pense nisso com assombro”. E completa “há algo de indecente na velhice, não acha?”. A proximidade da velhice e, conseqüentemente, da morte são assuntos que também o preocupam?
Bernard Shaw escreveu que a juventude era preciosa demais para ser desperdiçada nos jovens. Inversamente, a velhice é cruel demais para recair sobre os velhos. Já imaginou? Justamente quando sobra experiência, e a lucidez ainda é plena, vem a dor nas costas, o cansaço e otras cositas más. Mas, curiosamente, aos 61 anos, a morte me preocupa muito menos do que me preocupava na mocidade.
• Sobre a obra de Bernardo Dopolobo, uma jovem diz a Adolfo Lemoleme: “Não li tudo o que ele escreveu. Só li o que todo mundo leu. Não sei se devia dizer isso para alguém como você, mas tenho sérias dúvidas sobre a conveniência de gastar a vida na leitura. Os livros não são tudo”. Em que medida o senhor concorda com esta afirmação? Que lugar têm os livros em sua vida?
Os livros são tudo. Lê-los e curti-los é preciso. Viver não é preciso.
• Paul Johnson defende que a tarefa do leitor não é nada fácil, é uma tarefa de dedicação, que requer empenho, paixão. Já ao escritor, além de tudo isso, exige-se coragem intelectual. O senhor pretende continuar sendo um “corajoso” e construir uma carreira literária? Quais serão seus próximos passos na ficção?
Como eu disse, pretendo quitar a dívida que contraí comigo mesmo ao ficar adiando o trabalho literário que sempre desejei realizar. Estou escrevendo outro livro de ficção. E já tenho a idéia do que virá depois desse outro. Espero ter tempo e disposição para chegar ao fim das tarefas que tenho em mente.
• Quais autores foram mais importantes na construção do leitor, jornalista e escritor Roberto Pompeu de Toledo? De que maneira os livros o levaram para o mundo das letras?
São tantos os autores… Os livros me encantam desde o Reinações de Narizinho e Os doze trabalhos de Hércules, de Monteiro Lobato, desde Tom Sawyer e Huck Finn… Flaubert é fundamental. Proust é fundamental. Borges é fundamental. Paro por aqui.
• O senhor acompanha a atual produção literária brasileira? Qual a sua opinião? Quais autores jovens chamam a sua atenção?
Infelizmente, não acompanho. Acho que poucos acompanham. O Brasil é muito grande, tem muita gente, inclusive muita gente escrevendo. Tenho nostalgia dos anos 30, por exemplo, em que todo mundo conhecia todo mundo, inclusive os escritores, e todo mundo prestava atenção em todo mundo. Raquel de Queiroz publicou O quinze aos 20 anos e foi imediatamente reconhecida. Era fácil, então, produzir um cânone. Ele era composto por Graciliano, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Jorge Amado… Hoje é impossível. Tudo é muito disperso, muito difuso. O jovem precisa suar muito a camisa, para ganhar seu espaço.