O desconhecido absoluto

Entrevista com Adélia Prado
Adelia Prado: “Quem sempre foi frágil é o homem”
01/01/2006

Olímpia está à beira do abismo. Um câncer tenta puxá-la para o desconhecido. Ela luta contra, naturalmente. Em textos breves e repletos de poesia, Quero minha mãe, novela da mineira Adélia Prado, discute as muitas dúvidas e poucas certezas que se têm diante da morte. São inquietações, interrogações da protagonista Olímpia, sempre guiadas por uma forte fé cristã. Nesta entrevista a Rogério Pereira, a autora fala sobre a vida, a poesia, sua produção e, obviamente, a morte. Adélia Prado nasceu em Divinópolis (MG), em 1935. É autora de 14 livros, entre prosa e poesia.

• A sua mãe morreu quando a senhora tinha apenas 15 anos. Pode-se considerar Quero minha mãe como uma espécie de homenagem, um “acerto de contas” com o passado? Que importância/impacto a morte tão prematura de sua mãe teve em sua literatura?
Acho mais acertado dizer que Quero minha mãe é um encontro. Quanto a impacto na minha literatura, ocupa o lugar de tudo que em nós pede e exige expressão, tudo que pede uma palavra. Nem sempre coisas impactantes no sentido de assustadoras ou tristes. Um texto pode vir do estremecimento de uma folhagem. O autor não manda nisso. Só agora, 55 anos depois da morte de minha mãe, o livro emergiu de onde repousava amadurecendo.

• A narradora de Quero minha mãe diz que “A matéria é eterna? Ser é tão absurdo quanto não ser. Graça passa mal quando pensa no infinito”. A morte a assusta, é uma preocupação constante?
Desde criança, lidei com a morte, que acontecia em casa, uma morte longe da “assepsia” dos hospitais, bem crua e ruidosa. Acho que a vida inteira, penso na morte todo dia. Claro que assusta, é o desconhecido absoluto, tão absoluto que acho que a morte é Deus, bastante absurdo porque tenho certeza de que Deus é vida. Mas não há outra maneira de falar de tal mistério. Hoje “sofro” menos com o pensamento da morte, não é mais tão pavoroso quanto na juventude. Envelhecer é uma chance de amadurecimento, de armistício com a dura realidade da morte.

• Em recente entrevista à revista EntreLivros, João Ubaldo Ribeiro disse que “a vida é mais absurda que a ficção”. O escritor W. J. Solha afirma que “é impossível competir com a realidade quando se fala de angústia”. Já a personagem Alba, de Quero minha mãe, reclama que “é quase insuportável a administração do real, a realidade é horrorosa”. A senhora concorda com estas afirmações? A literatura não consegue dar conta da realidade que a envolve?
A literatura (qualquer arte) é uma tentativa das melhores para descobrir um sítio de significações e sentido para a dor de ser gente. Mas a realidade a supera sempre. Escrevemos correndo atrás do prejuízo. Às vezes, somos ressarcidos.

• Por que a senhora faz de Deus e da fé cristã presenças constantes em sua obra?
Só podemos falar do nosso canto de observação, a partir de nossas lentes, de nossa experiência, do nosso limite. Registramos o que somos sob os véus da metáfora. Nem a ficção científica escapa a esse limite. Se creio em Deus, lá está Ele, se não creio, também. Jung escreveu no frontispício de uma torre que construiu: “Chamado ou não chamado, Deus está presente”. Não me lembro exatamente, mas acredito que ele fazia uma citação antiga. Deus e a fé são questões cruciais, crendo ou não. Concordo com Jung, desculpe a coragem, quando diz que temos um ‘instinto religioso’.

• A sua produção literária é feita de prosa e poesia. De que maneira elas se aproximam e como estes gêneros colaboram um com outro para o fortalecimento de sua obra?
A poesia é a meta de toda e qualquer arte. Todas se justificam nela. Só posso dizer que uma prosa sem poesia não merece ser escrita. Arte é forma, forma é beleza, beleza é poesia. Espero não pecar quanto a isso.

• A senhora nasceu e vive em Divinópolis [pequena cidade de Minas Gerais, com cerca de 200 mil habitantes]. De que maneira o afastamento dos grandes centros influencia a sua obra?
Acredito que disponho de um tempo mais humanizado. Pode ser questão de temperamento. Gosto de roça, de cidade pequena, de silêncio.

• Como é o seu processo de criação: dos personagens da prosa à poesia?
Esta é uma pergunta que, entre milhares, não sei responder.

• A senhora acompanha a produção poética dos novos autores brasileiros? Há alguém que ensaie um vôo tão amplo como Drummond, Bandeira ou Cabral?
Um poeta é um poeta. Medir seu vôo é como dizer que o roxo é melhor que o amarelo. Autores novos? Não acompanho a produção, mas sei de Jorge Emil, um jovem poeta que publicou pela editora Bom Texto os livros O dia múltiplo e Pequeno arsenal. Vale a pena.

• O mercado editorial brasileiro passa por um momento de transformações, principalmente com a chegada de grandes grupos estrangeiros. A profissionalização do escritor — tão sonhada por muitos autores — começa a engatinhar. Como a senhora vê esse processo?
Escritor profissional? Carteira de escritor? Para mim quem escreve profissionalmente é jornalista que já tem salário e carteira. Poeta e ficcionista só escrevem quando Deus quer; e às vezes Ele nos deixa no deserto, sem água.

• Os escritores devem atuar diretamente sobre a situação do país em que vivem ou precisam apenas preocupar-se com sua obra, com sua arte?
O escritor é um cidadão e como tal tem direitos e deveres, responsabilidades quanto ao bem coletivo e sua atuação não difere em nada dos demais. O que não pode é fazer ideologia com seu texto, instrumentalizá-lo para causas e doutrinas. Fazê-lo é desservir à arte, à causa e à doutrina, um pecado de lesa-literatura.

• Em Com licença poética, a senhora escreve: “Quando nasci um anjo esbelto,/ desses que tocam trombeta, anunciou:/ vai carregar bandeira./Cargo muito pesado pra mulher,/ esta espécie ainda envergonhada”. A senhora considera que as mulheres ainda são vítimas de discriminação, de preconceitos?
A praga do preconceito é de erradicação dificílima. Mas a mulheres estão choramingando demais. Quem sempre foi frágil — apesar do machismo — e agora está mais fraco que nunca, desvirilizado e perdido é o homem. Não sabe o que fazer cercado de viragos. Temos que recuperar nosso papel, regenerar o feminino e criar o homem outra vez. É tarefa nossa e pode ser feita com prazer desde que morramos no ego.

• Stendhal definiu o seguinte epitáfio para o seu túmulo (que acabou alterado após a sua morte): “Henri Beyle. Milanês. Escreveu, viveu, amou”. Qual epitáfio a senhora considera mais adequado para a escritora Adélia Prado? Como gostaria de ser lembrada?
Epitáfio? Eu quero escrever é poesia.

Quero minha mãe
Adélia Prado
Record
77 pags.
Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho