Vem, Carlos, ser gauche na vida!

Relançamentos confirmam a profundidade e a polivalência da obra de Drummond, iluminadora a cada leitura
Drummond por Robson Vilalba
01/07/2012

Há 60 anos, por conta do lançamento de Passeios na ilha, Sérgio Milliet (1898-1966) emitiu uma observação procedente acerca do autor da obra: “Do poeta Carlos Drummond de Andrade pouco se dirá que já não tenha sido dito”. A precisão do juízo deixa ver que Drummond, diferentemente do que a crítica diz a respeito de outros autores nacionais, já era um poeta bem comentado àquela altura, quando ainda teria três décadas de inesgotável produção. Entenda-se “bem comentado” no sentido da quantidade e da qualidade das interpretações formuladas acerca da escrita do poeta itabirano, uma vez que os estudos literários brasileiros, no embalo da própria literatura, já estavam, na referida época, bastante amadurecidos.

Hoje, às vésperas do centésimo décimo aniversário do poeta, o comentário de Milliet é ainda mais válido. Os mais renomados estudiosos da literatura brasileira contemplaram o autor de Brejo das almas em, no mínimo, um capítulo de livro. Ensaístas do quilate de Affonso Romano de Sant’Anna, Antonio Candido, Antonio Carlos Secchin, Alfredo Bosi, Davi Arrigucci Jr., José Guilherme Merquior, Luiz Costa Lima e Silviano Santiago (entre outros, porque a lista é bem maior) trazem à luz um Drummond uno e plural, que com uma voz poética altamente idiossincrática observou e abraçou o mundo em seus livros. Drummond, uno: a expressão sempre contida (mesmo em poemas longos), a afastar a gargalhada do riso, a não permitir que lágrimas borrassem a amargura; a linguagem meditada, abastecida pela perplexidade ou pelo encanto da descoberta, repleta de uma ironia tão mordaz quanto elegante. Drummond, plural: o comunista entusiasmado, o desiludido recluso; grave e cômico; modernista e formal; recatado e obsceno; de uma ponta a outra, a ironia que, noutro matiz, volta-se para o autor e sua própria obra, num afirmar-se e negar-se incessante.

A reedição de sua obra reitera a diversidade de Carlos Drummond de Andrade, que atuou em outros gêneros com a mesma lucidez e dignidade com que se notabilizou na poesia. Ao lado dos volumes de poemas A rosa do povo e Claro enigma, são republicados: um livro de crônicas — Fala, amendoeira; dois presididos pela miscelânea de crônica, crítica literária, “quase história” (como o próprio autor classifica) e notas de memória pessoal e de opinião sobre assuntos variados — Confissões de Minas e Passeios na ilha; e um de ficção em prosa — Contos de aprendiz. Às reedições soma-se o lançamento de Poesia traduzida (organizado por Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães), volume inédito das traduções de poesia publicadas por Drummond na imprensa, e de Os 25 poemas da triste alegria (livro de 1924 jamais publicado pelo poeta, e que foi recentemente descoberto por Antonio Carlos Secchin).

O cronista
Dos livros que ora nos chegam, a produção como cronista de Drummond concentra-se especialmente em Fala, amendoeira, de 1957. O volume reúne textos que o autor publicava no Correio da manhã desde 1954. Como bem observa Ivan Marques, “posfaciador” do livro, a crônica de Drummond não se desliga das pulsões de sua poesia, apesar da variação formal.

A começar pela dicção da maioria dos textos, notamos que, embora os olhos do cronista estejam virados para o cotidiano, a mão que escreve é inconfundivelmente a do poeta. Compare-se, por exemplo, o teor discursivo de Diante do carnaval ao poema Os ombros suportam o mundo, de Sentimento do mundo:

Velhos carnavais afloram a tua memória. Por tê-los brincado, conquistaste o direito de eximir-te aos novos. Foste moço e ainda não és velho. Recusas-te a aderir; recusas-te a fugir. Elegeste para estes quatro dias o pijama, o livro, o jardinzinho, o cigarro, a música, a paz.

Um tema caro à poética de Carlos Drummond de Andrade é a passagem do tempo e sua simbologia de perecimento. Por toda a sua obra em versos, coloca-se de plantão um auscultador da efemeridade, que, resignado, constata a passagem de tudo. Na crônica drummondiana o tema aparece com semelhante destaque, sendo também plasmado por uma linguagem que recebe a mesma dignidade da dos poemas: “(…) os mortos habitam realmente em nós, sem que o saibamos; e começar a sabê-lo constitui um dos prêmios de envelhecer, que faz da ausência presença, e desnecessário o Dia de Finados. A morte não é triste, é serena”.

A crônica é um texto alimentado pelas miudezas cotidianas, e, por isso, sua forma discursiva comporta itens de familiaridade entre emissor e receptor, como se aquele que a escreve repousasse das tensões reflexivas e estruturais da literatura “maior”. Drummond, em parte, não foge à regra. Alguns de seus textos focalizam plantas, um cidadão que perde documentos, o buraco de uma rua e até o anúncio de uma besta perdida num antigo jornal provinciano.

Porém, o que de melhor produziu como cronista vai bastante além da fotografia graciosa e afetiva da raia miúda da existência. O autor de Alguma poesia foi um homem conectado a seu tempo, e colheu de maneira substantiva o propósito do intelectual como delator do que se afigura disfunção social. Por isso, valeu-se do espaço jornalístico para rechaçar, de modo ridicularizante, a hipocrisia da ordenação pública baseada no lema do “vigiar e punir”. Num texto atualíssimo (pois na cidade do Rio de Janeiro, onde Drummond viveu por décadas, os que instituem um suposto choque de ordem são os mesmos que se alimentam do caos citadino), o cronista, multado pela supostamente incompleta varredura da calçada de seu lar, dirige-se ao prefeito como quem decide atuar em prol do enriquecimento municipal. A fabulosa renda tem muito do que cada um de nós gostaria de dizer aos que deturpam nossa vida social:

Não a paguei logo, pois, ao exibir meu papel, me deram outro, mandando-me à rua Siqueira Campos. Impunha-se multar em cinco mil cruzeiros a Comissão de Planejamento e Racionalização, que, para cobrança de uma só multa, cria duas agências; também multei o Serviço de Higiene do trabalho, porque deixava a 12ª CF, como tantas outras repartições cariocas, funcionar em sede imprópria, com paredes descascadas e sujas, má iluminação e nenhum conforto; os funcionários, por sua vez, tiveram multas menores, porque se deixavam prejudicar. Tentei atravessar a rua e tomar uma lotação, mas a cortina espessa de fumo, escapando-se dos ônibus, me vedou a vista e a passagem. Tive de multar em três mil cruzeiros cada empresa de transportes, por veículo enfumaçado, o Departamento de Concessões, porque os deixava trafegar nesse estado, e a Secretaria de Saúde, que vê a população intoxicar-se.

Drummond por Theo Szczepanski

Ao lado da crítica social específica, o homem atrás dos óculos e do bigode insere em sua crônica o tema dos bichos, para externá-la como advertência à animalização da humanidade. Elegia de Baby trata da morte de uma pequena elefanta de um circo do Leblon, vítima de uma infecção na garganta aos sete anos de vida.

Reduzido à condição circense, que pode o elefante pretender, como remédio a suas melancolias, agravadas na espessa convivência do homem? Fugir, é claro. Mas a fuga se reduz também a um passeio tonto pela cidade, entre bichos muito mais ferozes, que são os ônibus e os automóveis, num dédalo de ruas que não tem a lei e a simplicidade da floresta. Logo se organizam os homens para prendê-lo e restituí-lo ao seu mesquinho picadeiro. Se se recusa a voltar, os homens, considerando-se ameaçados, dispõem-se a fulminá-lo a tiro. Nunca nenhum escapou.

O intérprete literário
Drummond não exerceu a crítica de literatura nem a tradução com a mesma dedicação e regularidade com que atuou em outros gêneros de escrita. Mesmo que tenha recebido encomendas remuneradas por conta deste segundo ofício, como ele mesmo relatou, não construiu uma sólida obra em nenhuma dessas duas vertentes. Não obstante, nas vezes em que se lançou a elas o fez de maneira competente, sem deixar que a esporadicidade da análise e da tradução comprometesse o nome que construiu nas outras modalidades, em especial na poesia.

A versão de poesia escrita em idiomas estrangeiros para o português encontra-se em Poesia traduzida, que representa, salvo engano, a primeira edição dos poemas que Drummond traduziu e estampou em jornais em sua quase totalidade, sem nunca abrigá-los em livro: “Este volume reúne traduções de poemas que em sua maioria Drummond publicou na imprensa (apenas uma foi publicada numa coletânea do poeta chileno Arturo Torres-Rioseco)”, diz o poeta Júlio Castañon Guimarães no prefácio. No livro, passa de 40 o número de poetas traduzidos, dentre os quais, como sublinha Castañon, predominam os de língua francesa e espanhola. O destaque de exemplos, dada a variedade do acervo, é difícil, mas optamos por um do norte-americano Ogden Nash (1902-1971), intitulado A word to husbands (Uma palavra aos esposos, em tradução literal), que Drummond interpretou como Vida conjugal. Seguem a versão original e a vertida ao português: “To keep your marriage brimming/ With love in te loving cup,/ Whenever you’re wrong, admit it;/ Whenever you’re rit, shut up.”; “Conserva o amor no casamento/ Como em taça de ouro lavrado./ Se acaso errares, confessa o erro:/ Se tens razão, bico calado.”.

A outra face do exercício interpretativo de Drummond se dá no âmbito da crítica literária, que ora se abastece dos recursos subjetivos da crônica (em especial quando o então crítico aborda seus contemporâneos) — “Há 22 anos conheço e pratico Manuel Bandeira, e ainda não me arrependi de o ter procurado”, diz em Recordações avulsas, de Passeios na ilha, de 1952) —, ora se efetiva como análise objetiva, mais típica entre os que se consagram no gênero. O fragmento a seguir, extraído de No jardim público de Casimiro, texto de Confissões de Minas (1944), é, já pelo objeto (a obra de Casimiro de Abreu), uma lição aos jovens estudiosos: a crítica ao passado só é honesta e só pode ser procedente quando se conhece o que se critica. Diz Drummond:

O encanto de Casimiro de Abreu está na tocante vulgaridade. Em sua poesia tudo é comum a todos. Nenhum sentimento nele se diferencia dos sentimentos gerais, que visitam qualquer espécie de homem, de qualquer classe, em qualquer país. Casimiro dirige-se igualmente a todos, e por isso mesmo é restrita a matéria de sua poesia: abrange somente aquela região em que não operam as distinções filosóficas, os credos políticos, a tumultuosa torrente da vida social.

O contista
Contos de aprendiz veio a lume em 1951. Trata-se de um livro inconstante (ou “de qualidade irregular”, como afirma Ana Paula Pacheco, que assina o posfácio), alternando textos de alta densidade com outros mais coerentes com o título. O volume é a efetiva estréia do autor na prosa de ficção, dado que, conforme dissemos, Confissões de Minas, de 1944, é constituído por textos em prosa, mas nem todos ficcionais.

As três primeiras narrativas enfocam formas distintas de brutalidade, camufladas por símbolos contrastantes, como a família, a etiqueta de classe superior e a infância. Em A salvação da alma, que abre o conjunto, quatro irmãos brigam entre si excessivamente; em O sorvete, um menino interiorano tem dificuldades em degustar a sobremesa, para ele uma novidade, e sente sobre seus ombros o peso da postura de alguém que precisa demonstrar bons modos no ambiente urbano e civilizado; A doida é narrado por um menino que, em companhia dos colegas, apedreja as janelas da casa de uma senhora solitária, que a cidade rejeita por lhe estigmatizar como louca.

Tanto o segundo quanto o terceiro têm forma de elaboração mais consistente, e alguns fatores tornam inevitável a aproximação com Machado de Assis: primeiramente, a poeticidade narrativa — “Eu sabia que ‘lá’ era a confeitaria, pois o sorvete de abacaxi entrara comigo no cinema, sentara-se na minha cadeira e, embora o soubesse frio, queimava-me” —, e o metadiscurso avizinhado à interlocução com o leitor, sempre estribado em linguagem poética:

Crianças de cinco anos desprezarão minha narrativa; e já ouço um leitor maduro, que me interrompe: “Afinal este sujeito quer transformar o ato de tomar sorvete numa cena histórica?”. Leitor irritado, não é bem isso. Peço apenas que te debruces sobre esta mesa a cuja roda há dois meninos do mais longe sertão. Eles nunca haviam sentido na boca o frio de uma pedra de gelo, e, como todos os meninos de todos os países, se travavam conhecimento com uma coisa de que só conhecessem antes a representação gráfica ou oral, dela se aproximavam não raro atribuindo-lhe um valor mágico, às vezes divino, às vezes cruel, em desproporção com a realidade e mesmo fora dela; um valor independente da coisa e diretamente ligado a sugestões de som, cor, forma, calor, densidade, que as palavras despertam em nosso espírito maleável.

Cumpre destacar, como também o faz Ana Paula Pacheco, o conto Beira-rio, ácido retrato do mandonismo empresarial presente no Brasil mesmo em fases de modernização. A narrativa aborda a tensão de operários de uma usina submetidos a uma forma branca de exploração, baseada na negligência de pagamento das horas extras. Alojados nas dependências da Companhia, os trabalhadores sentem eventual necessidade de distração, mas tudo por ali é objetividade laboral. Mais uma vez podemos notar a familiaridade entre Drummond e Machado, agora irmanados pela ironia discreta e corrosiva:

Em vão procuraríamos um botequim. Não há. É proibido beber. A proibição não está nas leis de um Estado onde se bebe tanto, e mesmo onde se destila cachaça tão fina, sob cinqüenta nomes diferentes, e que é fonte considerável de receita pública. Proibição tácita, estabelecida pela Companhia, no interesse dos seus servidores… bem, e no interesse do serviço. O álcool foi rigorosamente proscrito, como o jogo. Verdade seja que há abundância de baralhos e de uísque no grande armazém quadrado. Mas esta é uma seção reservada aos técnicos e à alta administração, que quanto mais bebem e jogam — é admirável — mais trabalham.

Até que um dia o tédio é quebrado quando um ambulante (chamado Vosso Criado) instala, a certa distância da usina, um ponto de venda de cachaça de boa qualidade. Apesar de a bebida produzir bom efeito sobre os que a consomem — pois passam a trabalhar mais animados —, os diretores da empresa pedem que o comandante da polícia local, em troca de suborno, interrompa a ação do comerciante, que possuía licença para atuar. “— Ora negro, tu acredita em licença? Licença é isto — e fez um sinal às praças. (…) — Tua venda acabou, negro… Eu não te disse? — falou o comandante para Vosso Criado, que se mantinha digno”.

A exemplo do que ocorre na crônica, o contista Carlos Drummond de Andrade é sempre um poeta ao escrever, e a exemplo do que ocorre na poesia, o homem Carlos Drummond de Andrade é um sensível observador da realidade e um contumaz denunciador de suas aberrações.

O poeta
É inevitável reafirmar que na poesia se encontra o ápice da produção literária de Carlos Drummond de Andrade. A rosa do povo, de 1945, e Claro enigma, do fecundo ano de 1951, são marcos na carreira do poeta e também no curso histórico da poesia brasileira e (por que não?) ocidental. Ambos são importantíssimos pelo que representam de enriquecimento na obra do autor, de amadurecimento do Modernismo e de desenvolvimento da própria literatura nacional. Além disso, são argumentos precisos contra certas generalizações em torno da obra do poeta, em especial ao estabelecimento de fases.

O volume de 1945 é sempre identificado como político, dada a aproximação entre Drummond e o PCB num período extremo da história do Brasil e do mundo (dentro do qual o ano de 1945 é mais que emblemático). Entretanto, de acordo com Antonio Carlos Secchin, autor do posfácio, “Convém não acreditar depressa demais na convocação cívica do poeta, sob pena de pressupor o traço monolítico num espaço em que irão prosperar diferenças e sinuosidades”. Endossaremos a afirmativa se notarmos que além da exortação ideológica — Carta a Stalingrado, Telegrama de Moscou, Com o russo em Berlim, Canto ao homem do povo Charles Chaplin —, o volume é repleto de poemas de temas variados, presentes em diversos livros do autor, como a passagem do tempo — Idade madura —, a própria produção poética — Procura da poesia —, e a crítica social independente da vinculação partidária e/ou ideológica, caso do estupendo A morte do leiteiro, do qual transcrevo duas estrofes:

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.
Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

E mesmo nos momentos de pujança do furor pró-comunismo, Drummond não cedeu ao panfletarismo vulgar, que abre mão do literário em busca do imediato revolucionário. Em Carta a Stalingrado, por exemplo, as imagens formulam uma plasticidade trágica, e muito do poema remete ao grito de Guernica, de Pablo Picasso:

A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços
[sangrentos,
apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas
[e relógios partidos,
sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado,
[senão isto?

E nos momentos em que se libera das exigências coletivas (em termos práticos, Drummond não foi militante, visto que sua ligação com o PCB foi brevíssima se comparada à militância de outros escritores brasileiros), o poeta cede a todos, e não apenas aos que vestem vermelho e lutam, a palavra solidária e afetiva, que é sempre uma palavra de vida, como se lê na primeira estrofe de Consolo na praia:

Vamos, não chores…
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

A tão citada abertura de Claro enigma denota um esmaecimento das convicções ideológicas do poeta: “Escurece, e não me seduz/ tatear sequer uma lâmpada./ Pois que aprouve ao dia findar,/ aceito a noite”. Isso termina por ser usado como justificativa aos que formulam as generalizações aludidas anteriormente. Inegavelmente, estampam-se no livro marcas de recolhimento pessoal e cívico. O que parece discutível é sinalizar, a partir disso, uma fase pessimista. Mas não já tínhamos visto uma nota bastante pessimista em Brejo das almas, de 1934 — “A poesia é incomunicável./ Fique torto no seu canto./ Não ame”? Onde estará, então, a fase pessimista do autor?

No posfácio, Samuel Titan Jr. assinala a antítese do livro formado por elementos clássicos e anticlássicos, da mesma maneira que diz ser preciso matizar a classificação de Claro enigma como livro filosófico, pois nele é pujante uma sensibilidade voltada para o histórico: “(…) o livro é profundamente marcado por um sentimento da história, por uma noção expandida de história em que se cruzam o familiar e o público, o amoroso e o político — sempre de maneira cifrada” (grifo do autor).

Também liberado das “etiquetações”, o poeta assim inicia a segunda e bela parte do livro: “Que pode uma criatura senão,/ entre criaturas, amar?”.

O pré-poeta
Esta onda de publicação dos livros de Drummond vem marcada por uma histórica novidade: o lançamento do inédito Os 25 poemas da triste alegria — pequeno volume de textos escritos entre 1922 e 1924, ao lado dos quais se inseriram, em 1937, comentários do autor. O livro foi mantido nos porões do acaso por quase 90 anos, até que Antonio Carlos Secchin o encontrasse por acaso num acervo posto à venda.

A obra não tem relevância estética, mas seu valor histórico é altíssimo. Ironicamente, Carlos Drummond de Andrade, ícone do Modernismo brasileiro, ainda conservava traços simbolistas e alguns fiapos românticos (como estampa o título A beleza da vida na alegria da manhã) no período em que os modernistas de 1922 já faziam considerável barulho. Posteriormente, isso foi sinalizado pelo próprio Drummond, e, agora, desenvolvido por Secchin na apresentação, intitulada O quase livro do pré-poeta:

A maior restrição que o crítico CDA faz ao poeta CD [Drummond não costumava assinar o nome por inteiro] refere-se ao convencionalismo e à artificialidade dos textos, ao descreverem realidades alheias à sensibilidade ou à experiência do poeta, e, por isso mesmo, tributárias de um conceito do “literário” necessariamente retórico e postiço. Um pré-modernismo bem comportado, cultor de formas moderadas, cantor de subtons e de medianias da vida, alheio à modernidade, a que simula aderir, por exemplo, no emprego do verso livre, mesclado a padrões regulares ou à polimetria (…).

Veja-se, por exemplo, Quase-noturno, em voz baixa:

Tuas mãos envelhecem,
na prata fosca do silêncio.
O silêncio, pelo crepúsculo,
é um arminho
onde as mãos repousam com doçura.
Tuas mãos, no silêncio,
pelo crepúsculo, são mais finas
e mais leves.
O silêncio, o doce silêncio,
vestiu de cinza transparente
as tuas mãos, pelo crepúsculo.

Como se vê, a pluralidade de Drummond comporta até mesmo elementos do que ele não chegou a ser…

Dissemos no início que Carlos Drummond de Andrade é um poeta bastante e bem estudado. Mas sua obra, tão diversa e tão pujante, sempre apresentará para nós alguma novidade, razão pela qual pede que a leiamos. Como ele agora renasce por meio de reedições e de uma edição, podemos fazer as vezes do anjo que vive nas sombras, e convocá-lo a entortar as tão retas linhas da literatura de hoje: vem, Carlos, ser gauche na vida.

Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho