Uma vida dedicada à arte

O único mundo real para Sonia Coutinho, o mundo que lhe interessava e fazia sentido, era aquele filtrado pela lente dos artistas
Sonia Coutinho, autora de “Os seios de Pandora”
01/12/2013

Kafka certa vez declarou: “Nada me interessa, a não ser literatura”. A frase só não se aplica inteiramente a Sonia Coutinho porque ela dividia com quase igual intensidade sua paixão pela literatura com as artes plásticas. Depois de se aposentar como jornalista, nos intervalos do trabalho como tradutora, fez curso na Escola de Artes do Parque Lage, localizada no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, e começou a pintar. Criou o blog Sidarta, onde divulgava trabalhos literários seus e de outros e fazia crítica de arte, função que exercera muitos anos antes em jornal. Gostava de cinema, música e fotografia, de exposições e museus, na mesma medida em que a política a aborrecia: o único mundo real para ela, o mundo que lhe interessava e fazia sentido, era aquele filtrado pela lente dos artistas.

Desencantada com o trabalho literário, dizia que ultimamente só a pintura a gratificava. Nem por isso, para felicidade dos amigos e leitores, deixou de escrever, publicando sua obra nos últimos anos pela pequena e valente editora 7Letras. Queixava-se da pouca atenção da mídia e dos leitores (agruras comuns à esmagadora maioria dos escritores brasileiros), ainda que tivesse ganhado duas vezes o prestigioso Prêmio Jabuti, com os livros de contos Venenos de Lucrecia (1978) e Os seios de Pandora (1998).

Sonia era essencialmente contista. E quando se aventurou no romance, estes sempre com um tom policial, nos quais mulheres são assassinadas — Os seios de Pandora e O caso Alice, ambos editados pela Rocco —, mal ultrapassou o âmbito das cento e cinqüenta páginas. Estreou com Nascimento de uma mulher (Civilização Brasileira, 1971), a que se seguiu Uma certa felicidade (Francisco Alves, 1976). Outros títulos de destaque são O último verão de Copacabana, Atire em Sofia, Toda a verdade sobre a tia de Lucia e O jogo de Ifá. Preocupada com a forma, reescreveu na maturidade os primeiros livros.

Os contos giram invariavelmente em torno da narradora, personagem especializada: mulher solitária, de classe média, culta, independente, admiradora de Paul Klee e Billie Holiday, moradora de Copacabana, que ousou romper com a fatalidade do destino provinciano mãe-dona-de-casa, e que paga um preço pesado por isso — o que no fundo não lamenta. Ela deixou no passado a Cidade (assim mesmo, inominada, com maíuscula) quase mítica de sua juventude, que, sabe, não existe mais, que perdeu para sempre, já que o tempo tudo vai devorando, lembranças, amizades, amores, para vir se arriscar numa carreira profissional e na busca de uma vida mais intensa na cidade maior (a personagem refaz o percurso da autora, que deixou Salvador para viver no Rio). Sob o disfarce de diferentes nomes e circunstâncias, essa mulher onipresente confere uma unidade rara a essas coletâneas de histórias curtas. Ao se sentir envelhecer, na solidão da grande cidade — solidão essa que se pode ser opressora é também requisito para o autoconhecimento —, a personagem-narradora tenta entender, na fragmentação característica dos tempos modernos, as experiências pelas quais passou, o que fez de sua existência:

Uma coisa que sempre me espantou e chateou é o modo sinuoso e espatifado como se desenvolve a vida, parecendo não ter nenhuma continuidade além da que procuramos impor-lhe de fora, através de um esforço inútil de racionalização, já que é composta de todo tipo de fragmentos espalhados e inacabados …

Essa reconstituição obsessiva de uma história pessoal que nunca chega a ter um sentido completo, um certo mal-estar ou incômodo na maneira de estar no mundo, remete a uma literatura de fundo existencialista. A personagem de muitos nomes realiza, por entre o absurdo do ser e o esquecimento, por entre perdas e o lento-rápido esvair da ampulheta, uma busca permanente do Eu e do sentido de sua vida, permeada pelo sonho, que no fundo é o de todos nós, de alcançarmos nesta nossa breve travessia… uma certa felicidade. Se muitas mulheres devem se identificar com essa personagem onipresente, os homens também não ficam indiferentes a ela. E isso porque, mais do que uma questão de gênero, a ficção de Sonia Coutinho fala do vazio da cidade grande, da contingência que ameaça o tempo todo esvaziar as nossas vidas, que desejamos plenas e pelas quais somos os únicos responsáveis.

O conjunto dos contos e novelas compõe um mundo de fragmentação e carência, de amores frustrados ou fugitivos. A personagem de muitos nomes busca o tempo todo encontrar um sentido para o absurdo da existência. “Todos acabamos descobrindo o que se costuma chamar de ‘o grande mistério da vida’. Mas é sempre tarde demais”, resume em Descoberta. No entanto, a arte, exercitada pela personagem ou apenas referida por ela, permeia e de certo modo redime todo esse pessimismo radical, essa necessidade do preenchimento de uma falta essencial nunca bem definida. Oscilando entre a melancolia e a fantasia que liberta, é como se Sonia afirmasse que, por meio da atividade artística, incluindo-se aí a literatura, somos capazes de transcender a imanência que nos ata, somos capazes de nos justificar, e assim de algum modo obter a gratificação que redime todas as agruras e limitações inerentes ao curto percurso que toca a cada um neste planeta insignificante, mas que guarda tudo o que amamos.

O que por tema e temperamento poderia ser uma leitura penosa converte-se em prazer pelo talento da escritora, que nos leva a deslizar com a suavidade de um barco pelo texto ágil, de frases econômicas e certeiras, temperado em alguns momentos por uma pitada de humor ou ironia. Isso é exemplificado por Invisibilidade e Chocolate amargo, duas das melhores histórias da autora. Ou por este trecho de Reflexões sobre a (in)existência de Papai Noel, conto de O último verão de Copacabana, em que a personagem diz, dirigindo-se ao analista:

Dr. Klaus, eu não quero me tornar uma pessoa adulta, sensata e razoável. Me deixe com a minha irracionalidade e minha tristeza mesmo. Quase todas as pessoas adultas que conheço são desagradáveis à beça, e o mundo está cheia delas. Sim, sei que estou mais esquisita hoje que de costume. É que entrei em parafuso no fim de semana passado, sabe? Não, não aconteceu nada de especial. Foi só uma repentina certeza de que Papai Noel não existe. Uma descoberta terrível. Não sei se vou conseguir sobreviver a uma descoberta dessas, de que Papai Noel não existe. Depois de descobrir uma coisa assim, talvez só reste à pessoa virar uma alcoólatra, uma viciada em drogas. Sim, agora eu sei por que tanta gente dá para isso. É que ninguém suporta a descoberta de que Papai Noel não existe.

Sonia Coutinho, é óbvio, escrevia bem, muito bem. Mas esse escrever bem se consubstancia numa falsa simplicidade, que não obsta a elegância e dispensa fogos de artifício retóricos, para se concentrar na economia e na precisão sem exageros, que dá ao leitor a ilusão de que escrever é fácil e de que ele também é capaz de escrever como ela.

Conheci Sonia trabalhando lado a lado com ela, como redatores de O Globo nos anos 1970. A amizade que logo iniciamos iria perdurar pelos quase quarenta anos seguintes. Sonia Coutinho faleceu de mal súbito aos 74 anos, no último dia 24 de agosto, no seu apartamento do Jardim Botânico, onde vivia sozinha, de modo quase monástico, em solidão criativa.

Rubem Mauro Machado

É escritor, jornalista e tradutor. Autor de livros como A idade da paixãoO executante e Lobos.

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