Um pacto a cada esquina

Em "Nós passaremos em branco", Luís Henrique Pellanda constrói sua cartografia afetiva de Curitiba
Luís Henrique Pellanda, autor de “Nós passaremos em branco”
01/01/2012

Nós passaremos em branco, de Luís Henrique Pellanda, é uma coletânea de crônicas publicadas, quase todas, pela primeira vez no site Vida Breve, pautadas no cotidiano de uma cidade grande, sob o olhar de um narrador-repórter que constrói sua cartografia afetiva. Ele perambula pelas ruas, escreve com seus passos e com um olhar ao mesmo tempo atento e, aparentemente, ingênuo. Nosso repórter não é exatamente o flâneur, cantado por Baudelaire, pelas ruas de Paris do século 19. Os tempos são outros, ele não tem mais aquele olhar descomprometido concedido pelo ócio ao artista. Em Alma carregada, isso fica bem claro: “A escolinha nos espera, digo à menina, o trabalho me convoca, confiro as horas no relógio de Curitiba Trade Center: atrasado, enforcado, morto, mas ainda na mira dos compromissos”. Ou seja, precisa trabalhar, tem filha para sustentar, para levar para a escola e negócios a resolver. Portanto, pouco tempo para sonhar e criar. Contudo, na solidão da multidão que ocupa as ruas dessa cidade, entre a casa e a escola e uma arma carregada na esquina, ele reinventa a vida diária. Como dizia Michel de Certeau, em A invenção do cotidiano, “essa história começa ao rés do chão, com passos. (…) Os jogos de passos moldam espaços, tecem lugares. As cidades não se localizam, criam espacialidades”.

Ao final do livro, o centro de Curitiba é mapeado, com a localização de praças, ruas, esquinas citadas pelo autor e freqüentadas por uma população frenética e heterogênea. Este mapa oferece ao leitor uma promessa de orientação pelos caminhos que cada crônica enuncia. Boa intenção? Pistas falsas? Mera promessa? Quem saberá ao certo? João do Rio, no início do século passado já declamava seu amor à rua: “Eu amo a rua. (…) Ora, a rua é um fator de vida das cidades, a rua tem alma! Sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora da miséria”. Além de cimento e concreto, a rua tem uma alma encantadora. É esse amor à rua que une escritores de diferentes épocas históricas. Isso porque convém observar um pouco mais além do que os espaços físicos de cada rua, de cada praça, de cada ser vivente, concretizados na geografia da cidade. É preciso percorrer labirintos, aventurar-se nos espaços simbólicos úmidos e sombrios, dando lugar para o que não tem lugar, com seus mistérios humanos, demoníacos e fantasmagóricos. Ler e escrever a cidade são ouvir e fazer ouvir vozes que silenciosamente murmuram sua profusão de linguagens nesta Babel contemporânea.

Em Conan, o milagreiro, por exemplo, Pellanda reporta-se há duas décadas, a partir de um prédio do antigo Cine Plaza, transformado em Templo dos Milagres. Retoma lembranças de acontecimentos que fizeram parte de sua vida, dando novos sentidos ao presente. Estava ali a mesma cidade, o mesmo prédio de um fragmento retomado da memória como signo cultural, particular e coletivo simultaneamente. Entretanto, não é só a espacialidade que está em questão. “Claro que não era da arquitetura ou religião que eu queria falar, e sim da passagem voraz do tempo, tema batido, mas que tem tudo a ver com a idéia embutida na palavrinha crônica, essa mágica proparoxítona que o leitor brasileiro venera.”

No texto acima, através de um procedimento de metalinguagem, o cronista discute o processo da sua escrita, que está associada à própria razão de ser do gênero. Explicita a temática que deseja abordar: a passagem do tempo, esse chronos, devorador voraz dos próprios filhos na sua obsessão pelo poder. Crônica, essa palavrinha mágica traz em sua origem este conteúdo: registro de um tempo devorador que passa carregando sonhos e apagando lembranças e que, por outro lado, luta para permanecer. Efemeridade lutando por uma eternidade. “Em suma, o tempo voa, o dia destrói a noite, a noite divide o dia e nós passaremos em branco.” Será? Qual o sentido do título do livro? Não será a luta contra a finitude a que o tempo histórico e cronológico nos condena que continua nos impulsionando a macular a página em branco com a nossa escrita, a escrever crônicas em jornais, revistas e sites, a reuni-las em livro, apostando numa continuidade e perenidade prometida por nossos desejos primordiais?

Esse gênero que, segundo o autor, é tão querido pelo leitor brasileiro, é conhecido como híbrido: inclui depoimentos, testemunhos, reportagem, registro histórico, lírica, e até narrativa ficcional. Renato Cordeiro Gomes discute em A crônica moderna como representação social: “O cronista estabelece, então, um ‘comércio entre ilusão e realidade’ para conjugar, em sua prática escritural, os ‘acontecimentos vivos da rua’ e os ‘acontecimentos da misteriosa máquina humana’ (as expressões são de Marques Rebelo, que também foi cronista)…”. Cada crônica traz em si instrumentos de negociação entre ilusão e realidade, desejos e impossibilidades que se encontram pelas esquinas. Dependendo do veículo que serve de suporte a estes escritos, o tempo, o espaço e o contexto histórico se inscrevem de maneira diferenciada.

Dinâmica ágil
O ato da leitura e o papel do leitor também não são os mesmos quando o texto se apresenta na internet, em um jornal, ou em um livro. Neste último suporte, especialmente, o conjunto de textos apresenta muita dificuldade de ser bem realizado, dadas as características inerentes ao gênero. Dificuldade esta que foi bem resolvida por Pellanda. A variedade de circunstâncias observadas possibilitou uma dinâmica ágil que minimizou os riscos de repetições exaustivas. As incidências de esquinas, fantasmas e outras referências se tornaram necessárias para dar uma unicidade ao corpo do livro como um todo. Talvez a experiência com o suporte virtual, que estrutura as crônicas em séries temáticas (O reino, O homem com a menina no colo e Esportes curitibanos), como esclarece o autor, tenha facilitado essa organização. O livro está dividido em duas partes, a primeira não nomeada e a segunda como Antologia dos demônios de Curitiba. Nesta, é enfatizado o tom de suspense, com a presença de seres especiais que transitam pela cidade e ajudam a configurar aspectos culturais de uma alma urbana. Curitiba é o personagem central, ou seja, um dos elementos unificadores do conjunto de crônicas.

No livro de Pellanda, a esquina se apresenta como referência concreta também a todo instante, fato mais difícil de observar quando se lê os textos isolados no site ou na revista. As esquinas tomam conteúdo tanto concreto quanto simbólico, os exemplos são inúmeros: logo na primeira crônica — O homem com a menina no colo: “Na esquina da Ébano Pereira com a Saldanha Marinho, descubro a mulher de vestido preto”; em O encosto bilheteiro: “Às vezes, o demônio se arrisca em caçadas mais longas, expedições que se estendem da Carlos de Carvalho à Emiliano Perneta, da esquina das Marechais à Voluntários”. São nessas esquinas, onde ilusão e realidade se encontram, que se estabelecem os pactos do Demo com nossos Faustos contemporâneos. Negociam espaço na cidade e no texto os acontecimentos vivos da rua e os acontecimentos da misteriosa máquina humana. Prossegue Renato Cordeiro Gomes: “(…) ambos filtrados pelo Eu, que dosa proximidades e distâncias para registrar o cotidiano subjetivo e o coletivo social. A crônica moderna com seus suportes torna-se, assim, veículo das representações sociais”.

Este Eu funciona como um mediador entre a rua e os homens, entre o tempo e o espaço. Luís Henrique Pellanda não chega a se constituir como personagem ficcional, apesar de muitas vezes a narrativa parecer enveredar por esse rumo. Ele talvez seja mais livre ao delinear a sua subjetividade. Colado no calor dos acontecimentos, faz dos seus escritos veículos das representações sociais enquanto vivencia afetos, paixões e fantasias da sua condição humana.

Esta história é tão verdadeira que, para contá-la, serei forçado a mentir, e várias vezes, embora não me sinta na obrigação de desvendar, ao longo do texto abaixo, todas as minhas mentiras; só algumas.

Essa oscilação entre os gêneros ficcional, jornalístico e poético, cria uma mobilidade de pontos de vistas e a possibilidade da construção de um discurso próprio, muitas vezes lírico: “A criança no meu colo acena para os pombos, se despede dos pássaros que prontamente decolam e desaparecem… Nós também seguimos adiante. A manhã avança. O vento congela a Pracinha do Amor e nos despenteia…” O aspecto poético desses textos reside nessa postura de construir a poesia nossa de cada dia, olhando para a vida e para o mundo como a criança, com a curiosidade e o encanto da primeira vez.

Nós passaremos em branco
Luís Henrique Pellanda
Arquipélago
192 págs.
Luís Henrique Pellanda
Nasceu em Curitiba, em 1973. É autor do livro de contos O macaco ornamental e organizou a coletânea As melhores entrevistas do Rascunho.
Vilma Costa

É professora de literatura.

Rascunho