Um grande escritor e suas sombras

Ensaios de Thomas Mann amplificam o entendimento de sua própria obra ficcional
Thomas Mann por Rafa Camargo
01/05/2012

A despeito do título relativamente vago diante do conteúdo deste volume específico, a editora Zahar realizou sólida disposição de criar, com subsídios do Goethe-Institut, uma coleção sobre Thomas Mann: Ensaios e escritos. Nós, brasileiros, já havíamos lido, em traduções mais (ou menos) caprichadas, A montanha mágica, Doutor Fausto, Morte em Veneza e Os Buddenbrooks. Entretanto, de seu pensamento crítico, autocrítico e ideológico, o leitor em português sabia muito pouco. Para ler preciosos ensaios de Thomas Mann sobre Wagner, Goethe, Dostoiévski, Zola, Nietzsche, Schopenhauer, ou mesmo sobre Dom Quixote, nós, que estudávamos tais letras anglo-germânicas nos anos 1970, tivemos de ler edições em inglês, francês ou, na falta das de Portugal, sofridamente em alemão.

O presente exemplar, com doze dos vários ensaios (e “escritos”) de Mann, conta com sólida apresentação e notas — de grande valia — de Johannes Kretschmer, professor da Universidade Federal Fluminense. Vem em tradução prestimosa de Kristina Michahelles e recebeu supervisão técnica de Samuel Titan Jr., da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Quer dizer: o conjunto de reflexões críticas do grande escritor recebe agora atenção e amparo devidos.

Não que todos os ensaios de Mann sejam essenciais para a cultura do século 20; alguns são protocolares, e vários deles vieram a repique das necessidades, digamos, acadêmicas do mestre que, perdida a cidadania alemã, foi grandemente saudado nos Estados Unidos — ao menos até as pressões macartistas.

A grande questão que remete à utilidade dos ensaios — bem abordada na apresentação de Johannes Kretschmer — diz respeito à compreensão da própria obra ficcional do escritor, que muitas vezes se revela através da abordagem que faz da obra alheia. É verdade: a ideologia e o senso estético que permeiam subterraneamente uma obra ficcional aparecem muitas vezes no texto periférico, ora parcialmente autobiográfico, ora por obrigação ou necessidade acadêmica. Em nenhum momento isso significa misturarmos, na crítica literária, a biografia ou valores do escritor com sua elaboração estética ficcional ou lírica. Mas a repercussão existe, sem dúvida. Um exemplo: a busca obsessiva de Thomas Mann pela relação do intelecto com as doenças (neste volume temos um magnífico ensaio sobre Dostoiévski e a epilepsia) aparecerá com peso narrativo grande em diversos diálogos entre personagens do Fausto ou de A montanha mágica. Como diz o professor Kretschmer,

Há tópicos que Mann ora modela em seus textos ficcionais, ora recicla nos ensaios, tecendo inúmeras e múltiplas relações intertextuais. Para o autor, o status da ficção e o do ensaio parecem se confundir. De maneira geral, os seus ensaios manifestam o desejo de prestar contas da própria obra, de pôr ordem em idéias e de refletir sobre certos problemas estéticos.

Guardadas as devidas diferenças, é o que ocorre com Machado de Assis — para lembrar um brasileiro —, cujas cartas, ensaios e crônicas, incansavelmente estudados, amplificam a obra ficcional. Em Mann, a ascese do artista, a ética protestante do trabalho, a questão do tempo, o nacionalismo e os valores burgueses estão tanto na ficção quanto nos ensaios. Se entendermos essa inter-relação, sai ganhando a leitura hermenêutica.

Visão de mundo
Neste volume, a escolha dos ensaios foi arbitrária, reuniram-se estudos dedicados a autores de várias tradições e épocas. Há ensaios sobre Heine, Tolstói, Lessing, Hermann Hesse, Bernard Shaw e outros.

Os mais importantes são o ensaio Ibsen e Wagner, de 1928, em que Mann localiza ambos os artistas como “típicos representantes do espírito artístico do mundo nórdico-germânico” e afirma que a principal contribuição de ambos foi o aperfeiçoamento da ópera e do drama social alemães, e outro bastante conhecido, sobre o qual se polemiza bastante, Goethe como representante da era burguesa, um grande discurso proferido na Academia de Artes de Berlim pelo centenário da morte de W. Goethe, já no ano de 1932. Thomas Mann dedicou vários estudos a Goethe e, num deles, em 1921, havia ressaltado a “dimensão anti-burguesa e demoníaca da obra de Goethe”. Neste discurso de 1932, porém, como bem lembra Kretschmer, diante de uma platéia cheia de nazistas que insistiam num Goethe “populista e ultranacionalista”, Mann provoca, mostrando-o como um “burguês” comprometido com sua visão particular de mundo.

Nesse discurso, Mann, além de incitar a burguesia a urgentes mudanças socioculturais, revela novamente suas reflexões sobre a dicotomia entre a inflexível alma alemã burguesa no trabalho e na arte em contraste com o perfil do artista, mais livre, menos conservador.

(…) de fato existem nesse milagre de personalidade chamado Goethe (que os próprios contemporâneos não hesitavam em alcunhar de “homem divino”) forças mitogênicas como só há nos grandes vultos que passaram pela Terra (…).

Rebento dos séculos 18 e 19, mas rebento igualmente do século 16, da época da Reforma, irmão de Lutero e de Erasmo ao mesmo tempo.

(…) protesta contra ‘papas e padrecos’ e continuará sempre protestando, o que significa, segundo sua explicação, avançar. Pois, para (Goethe) tudo o que atrasa a evolução do ser humano tem a ver com o proselitismo, seja na Igreja, no Estado, na ciência ou nas artes. ‘Ser protestante cai bem aos alemães, os alemães não seriam nada sem o protestantismo’.

Influências
De todos, talvez o mais sedutor ensaio deste volume seja Dostoiévski, com moderação (note-se o título), de 1945, portanto texto dos últimos anos de Mann, introdutor de uma edição das novelas do escritor russo. Nele, Mann reflete sobre o porquê de ter escrito tão pouco a respeito de Dostoiévski e Nietzsche — ambos com doenças crônicas —, retomando assim seu interesse pelas relações entre criação artística e as doenças dos artistas:

Meu receio, um receio profundo, místico, que obriga ao silêncio, começa diante da grandeza religiosa dos amaldiçoados, do gênio como doença e da doença como gênio, do tipo do atormentado e do possesso, no qual o santo e o criminoso se tornam um só…

Ser-me-ia impossível gracejar sobre Nietzsche e Dostoiévski, como o fiz, ocasionalmente, no romance sobre o felizardo e egoísta Goethe e no ensaio sobre a gigantesca trapalhada do moralismo de Tolstói.

Avaliando influências com uma facilidade espantosa, Thomas Mann revela sua convicção do quanto Dostoiévski, amaldiçoado pela doença, influiu na obra de Nietzsche, outro maldito.

“Do pálido delinquente”: não posso ler este título, de (…) Assim falou Zaratrusta, (…) sem que me apareça a fisionomia sofredora e sinistra de Fiódor Dostoiévski (…).

Mais que influência, Mann torna irmãos o escritor russo e o germânico, em trecho decisivo do estudo:

(…) e companheiros de destino que superaram toda a mediocridade rumo à dimensão do trágico e grotesco, apesar das diferenças fundamentais de origem e tradição: o professor alemão, cujo gênio luciferino se desenvolveu (estimulado pela doença) a partir da formação clássica, da erudição filológica, da filosofia idealista (…) e o cristão bizantino, que (…) pôde ser percebido por este [Nietzsche] como grande mestre, simplesmente porque não era alemão (pois libertar-se do seu próprio germanismo era o anseio máximo de Nietzsche), porque agia como libertador do moralismo burguês e porque confirmava a disposição ao confronto psicológico, ao crime do conhecimento.

A descoberta impiedosa das próprias profundezas criminosas da consciência é “força de terrível impacto moral” em Dostoiévski, um homem “que esteve no inferno”, diz Mann, provocando: “Poderia Proust ter escrito Crime e castigo, o maior romance policial de todos os tempos?”.

Thomas Mann analisa a epilepsia de Dostoiévski em figuras psicologicamente privilegiadas de sua obra como Smerdiakov, um dos irmãos Karamázov, ou o príncipe Michkin, de O idiota, ou Kirilov, de Os demônios. E, ampliando o estudo, correlaciona o mal do russo à situação similar em Nietzsche e sua paralisia venérea: “A evolução de Nietzsche não é outra coisa senão a história de uma desinibição e degeneração paralíticas (…)”.

O caro leitor já pensou em como um mal físico do artista pode ser satânico em sua obra? Thomas Mann, da Morte em Veneza, pensou. E resenhá-lo mais seria tirar o prazer da leitura de seus ensaios em que os maiores nomes da cultura ocidental circulam com a mesma naturalidade com que comentamos a última telenovela. Não percam Thomas Mann e suas sombras.

O escritor e sua missão
Thomas Mann
Trad.: Kristina Michahelles
Zahar
208 págs.
Thomas Mann
Considerado por muitos um dos maiores romancistas do século 20, Thomas Mann (Alemanha, 1875-1955) recebeu o Nobel de Literatura em 1929. Iniciou a carreira em 1901 com Os Buddenbrooks, romance que o tornou imediatamente conhecido até fora da Alemanha. Politicamente engajado, tomaria o partido do Kaiser Guilherme II durante a Primeira Guerra Mundial, o que lhe custou rompimento ideológico com o próprio irmão, Heinrich Mann. O resultado um tanto autobiográfico dessa desavença apareceria no romance A montanha mágica (1924). A mais famosa de suas obras, tida como seu texto mais confessional, Morte em Veneza, foi publicada em 1912, após uma viagem de Mann à cidade italiana. Com a ascensão do nazismo e de Hitler — contra quem nutriu um ódio visceral —, vai, com parte da família, viver na Suíça e depois emigra para os EUA (1938), onde se posicionará enfaticamente sobre a Segunda Guerra Mundial, escrevendo e lecionando. Alguns dos temas de sua obra ficcional serão a análise do rigor protestante em contraste com a bonomia da Alemanha católica no sul. Parte da crítica enxerga Mann como herdeiro do idealismo romântico. O fato é que o autor deixou enorme legado em que analisa o homem em sociedade, que, carregando nos ombros o peso da tradição européia/germânica, ingressa na turbulenta virada social e política do século 20.
Márcia Lígia Guidin

É escritora e editora. Autora de Armário de vidro – Velhice em Machado de Assis, entre outros.

Rascunho