Um certo desequilíbrio

"As línguas são para outras coisas", de Claudia Schroeder, revela altos e baixos, sem muita elaboração formal
Claudia Schroeder, autora de “As línguas são para outras coisas”
01/07/2023

Gilka Machado não é considerada precursora da poesia erótica feita por mulheres no Brasil moderno por trazer ao centro da poesia o tema com seus respectivos campos semânticos. Ela dá carne a esse lugar por fazer da língua portuguesa e do corpo feminino a própria matéria de onde não apenas explode o sexo, mas também onde se recoloca a noção de erotismo.

Tenho por costume dizer, vez ou outra, que Gilka não fez poesia erótica, mas sim fez poesia e ampliou as correntes noções de erotismo. Língua em sua poesia pode ser herança cultural ao mesmo tempo que zona erógena, fisiologia sexual. A poeta moderna, mais que os artistas que tocavam o aclamado modernismo brasileiro, nos ensinou a ver que a sensualidade está, para além da economia sexual, no mundo em volta, na paisagem, na percepção da vida em tudo. Talvez o projeto mais bem acabado do início do nosso século no que toca uma erótica literária, e não uma literatura erótica.

As línguas são para outras coisas, de Claudia Schroeder, se insere deliberadamente nessa tradição secular de mulheres que dão corpo a poemas eróticos. O livro traz marcas altas e baixas da poesia contemporânea. Veja, da poesia contemporânea de modo geral, não apenas a que tematiza o sexo e o erotismo. Quais sejam, imagens sem vernizes, que abrem as pernas sem pudor, consequentemente, sem riscos de abstrações românticas ou mesmo assépticas, que pouco teriam a ver com sexo. Dito de outra maneira, diretas e reais, porém com um desequilíbrio que tenciona fazer ver tudo pela semântica, sem muita elaboração formal.

Não me refiro a métricas, cisões ou figuras de linguagem, refiro-me a uma literatura que não nos faz demorar/transar no texto, que não nos faz viver com a leitura uma espessura erótica. Uma boa plástica em poesia erótica não dispensa os sons, as cinestesias, as fendas calculadas que geram no leitor intervalos ambíguos, que insinuam segredos, que endurecem e se molham para além do que os olhos podem construir. Uma literatura que seja menos fetiche e mais lasciva. Menos pornografia e mais orgasmo.

Quando essas coisas faltam, o risco é o texto vacilar num clichê, como às vezes acontece no livro, em partes como

se fosse anestésico me agachar sobre um salto agulha
equilibrar joelhos no porcelanato
manter a boca em movimentos contínuos por mais de meia hora
[…]
e não borrar o rímel volumoso na ânsia de sorver fundo tuas partes duras

Não se pode dizer que faltam momentos de demora/transa e espessura no livro de Claudia Schroeder, mas é preciso escoimar outros tantos momentos em que a pornografia ofusca a sensação, a espessura.

Prova desse desequilíbrio é o fato de encontrarmos boas faturas de sensações em partes (seções) da obra em que o tema surge aparentemente de maneira mais transversal. A seção do menino agora homem em juras de orgasmos para sempre é primorosa em ambiguidades e ousadias. Estas, claro, se pensarmos num público aderente ao politicamente correto e em sirenes que soam a qualquer traço de imoralidades (como se a literatura pudesse estar sujeita a essa régua).

salvo teu beijo em meus lábios
como quem faz backup de um documento
importante framboesas maduras
pensei um homem de batom —

 as ranhuras frescas da boca jovem
língua firme em seus afazeres
pelo centro do meu corpo
em busca de um figo recém-colhido
por ninguém

Ponto alto
Este é um dos pontos altos do lirismo do livro. Está na série de dez poemas dedicados a um filho que cresce, que não diz mais mamãe, que anseia por orgasmos. As bocas que se tocam tanto podem ser a do filho como a do amante. Essa provocante ambiguidade já é sugerida em poemas anteriores.

No caso desse poema em particular, vemos uma primeira estrofe fresca, que começa com palavra de duplo sentido — tanto podemos ler a primeira pessoa do verbo salvar no presente, quanto uma indicação de exceção, singularização —, notamos sabores juvenis, “framboesas maduras”, e uma ambígua feminilidade no homem, que nos remeteria antes à liberdade de ser amor sem definição do que a qualquer engajamento em pautas de sexualidades (isso nos poderia fazer lembrar Ana Cristina Cesar, que pouco define os seres do amor). Na sequência, temos uma segunda estrofe bem mais sensual, em que a boca jovem persiste e a língua faz sexo em busca de outra fruta, o “figo”, mais comumente ligada a desejos maduros.

Esse é o tipo de composição que adensa a sensualidade em níveis que, se não transborda, pelo menos borra a relação imaculada da mãe.

Momentos de composição efetivamente erótica também aparecem quando o pai dança com a mãe:

a cada passo firme o corpo jogado
quebrando a coluna fina de minha mãe
quadris incríveis olhos
fixos no dorso que ele segurava
mãos duras
que nunca me bateram na vida

Apesar de o pai aparecer em outros trechos do livro associado ao volume de álcool em cena, aqui notamos uma tímida admiração. Esta se manifesta de maneira direta e moral no último verso do trecho citado, mas de maneira sensual nos versos que o antecedem. Aqui um caso de adensamento das percepções erógenas.

Entretanto, essa não é a atmosfera que predomina em As línguas são para outras coisas, pois uma série de imagens diretas, baseadas em lugares-comuns, inclusive cinematográficos, de pornografia parecem ocupar mais a plasticidade do livro.

Projeto
De todo modo, não preparar a poesia para que a vivência estética se dê em uma espessura, em uma demora sensual, não pode ser considerado inconsciência poética da autora, antes, deve ser entendido como projeto. Basta observarmos um poema como o de número 3 da série a natureza tão difícil de aceitar em que a persona poética sugere estrategicamente que seu lugar de artista visceral talvez seja duvidoso.

tantos poetas que por aqui estão
mestres ou doutores em literatura
alguma universidade importante 

estudiosos de todos os livros que não li 

[…] 

somente bebedeira e boemia
festas classe média alta e o carro do ano
escola particular e uniformes limpos

 meus limões menos azedos em versos
em berços milimetricamente cuidados
para que travesseiros não sufoquem o bebê
que nasceu
roxo

Esse tipo de composição, que começa se esquivando de um eventual crivo, sem deixar de ser irônica com uma possível crítica instituída, dita sedimentada em universidades, e segue como que justificando um lugar de fala às avessas, revela boa capacidade retórica, mas não resolve a erma articulação dos efeitos estéticos, com tecituras e fendas sensuais, como é de se esperar de uma literatura que opera sentido no erotismo. Sobretudo numa erótica que, na esteira de Gilka Machado, não serve de adjetivo à poesia, mas sim de substância.

As línguas são para outras coisas
Claudia Schroeder
Taverna
144 págs.
Claudia Schroeder
Nasceu em 1973, em Santo Ângelo (RS). Publicou os livros de poemas Leia-me toda (2010), As partes nuas (2021), além do infantil A menina que descobriu o sol (2018). Entre as coletâneas, destaca-se A poesia é para comer (2011).
Cristiano de Sales

É poeta e professor de literatura brasileira da UTFPR. Autor de De silêncios e demoras (2020) e Urgências que não são (2021).

Rascunho