Tudo o que não foi

Nos melancólicos versos de "Diário de Porto Pim", Fernando Moreira Salles apresenta o outro lado da história dos grandes desbravadores do passado
Fernando Moreira Salles, autor de “Diário de Porto Pim”
01/07/2021

Diário de Porto Pim, de Fernando Moreira Salles, é um livro de poemas que se coloca, desde o título, na tradição literária dos diários dos navegadores, descobridores — e dos náufragos. Os grandes empreendimentos, as grandes navegações. Os registros dessa tradição podem ser subdivididos entre os que relatam o que ocorreu, os que chegaram e colonizaram a terra visada e os que naufragaram e enviaram mensagens em garrafas, torcendo por um barco no horizonte.

Nem um, nem outro, Diário de Porto Pim é o registro negativo: em suas páginas, vemos a anotação do que não foi realizado. Uma melancolia infinita ocupa as suas páginas, como uma mancha que impede a realização de qualquer experiência. À primeira vista, seus poemas seriam herdeiros de Camões (citado indiretamente na obra), mas um olhar mais acurado poderia compreendê-los como legatários da herança negativa de Brás Cubas, o célebre personagem do romance de Machado de Assis. Salles diz: “No caminho/ não plantei/ nem pisei canteiros// No caminho/ não plantei/ aquela flor”. Cubas escreve o último capítulo de sua história como um “todo de negativas”, arrematando: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

Assim como o filho abastado da família Cubas, que se apaixona por ideias e, em tempos distintos, por Marcela e Virgília, e vê o tempo acabar com esses planos e com as amadas, tendo ao fim da vida uma lista de coisas não realizadas, a voz de Diário de Porto Pim não lega ao futuro nada além da tentativa (frustrada) de realizações, restando apenas as mãos vazias de experiência por toda a viagem.

O balanço de seu percurso? “Não é meu/ o caminho/ Só o abismo/ e a pá.” No entanto, à diferença do filho dos Cubas, a “tinta da melancolia” não recebe a “pena da galhofa”. Isso porque o recurso literário de Diário de Porto Pim não é a divisão do autor em dois (o que vive a vida contada e o morto que a narra a posteriori, no caso da história de Machado). Aferrado à tarefa lírica, Salles não instaura a distância épica de Assis, nem a de Camões, e assim não vê a sua própria história à distância. Não a vê da margem.

De onde ele vê? De dentro do barco. É a distância que permite que Camões veja a tragédia de sua lira como consequência da tragédia do empreendimento português; é a distância que permite a Cubas revisitar o mundo externo e convocar o seu contexto escravocrata como resíduo de sua pobreza de experiência. Mas a tarefa lírica impõe uma proximidade radical com a matéria narrada: quem fala, nos poemas líricos, é nublado pelos afetos, atingido por toda a sua mixórdia, e fala de dentro do furacão. O sujeito lírico por excelência é aquele que se despedaça, se perde, naufraga.

É assim também que a matéria mítica é manipulada nos poemas de Salles: anestesiando o sujeito para o seu abate. Quando percebe que fracassou ou foi destruído, é sempre tarde demais. Como em Ícaro:

O sol
que cega a manhã
desperta
a derrota
do meu voo

ou em

Górdio

Com teu fio
Ariadne
a pau e corda
um dia
desatento
fiz meu nó

É necessário lembrar que tanto Ícaro, do primeiro poema, quanto Teseu, aludido indiretamente no segundo (que recebe a ajuda de Ariadne), tentam escapar do labirinto de Creta em que viveu o Minotauro. As formas simbólicas de Diário de Porto Pim são formuladas desde dentro do labirinto, e não encontram saída. Esse labirinto é o próprio mar — representante do caminho do navegante e da perdição do náufrago. “Navegante/ irmão/ esquecido dos deuses/ destinos inúteis/ vitórias e derrotas/ levadas pela onda/ te dedico este canto/ mas sei/ nunca iremos/ a Porto Pim.”

Poesia e história
Vale a pena comparar o livro de Salles com dois outros da cena contemporânea, que retomam o tema das navegações: Roça barroca (2011), de Josely Vianna Baptista, e Canções de atormentar (2020), de Angélica Freitas.

Em Roça barroca, a expansão marítima e o signo do erro e do naufrágio retornam, mas não tanto diante dos temas da cultura e da literatura ocidental, e sim, principalmente, em função da cultura dos Mbyá-Guarani. Baptista publica algumas de suas traduções de cantos Mbyá e a anexa, ao volume, um conjunto de poemas sob o nome de Moradas nômades. No entanto, a forma da tradução, que acompanha os escritos líricos, impede que o contexto histórico se afunde somente na forma, aparecendo como conteúdo da obra. Se o erro e o vagar constituem o núcleo do que a poeta tem a dizer, como no livro de Salles, a diferença aqui é que a experiência histórica dos Mbyá ainda se apresenta como uma positividade diante da negatividade da experiência do viajante.

Já no livro de Freitas, o ponto de vista assumido — o do canto da sereia — situa a voz lírica muito mais como ponto de emanação de destruição (uma destruição alegre) e reconstrução (com os escombros) da cultura. Em Canções de atormentar, a revisitação do passado assume, como nas Memórias póstumas de Brás Cubas, a pena da galhofa — com alguma distância épica, portanto. Um conjunto de canções e artefatos da cultura erudita e popular é convocado e profanado por Freitas, que transmuta o sentido do “canto da sereia” como um lugar de perdição necessária para a superação do destino colonial.

Se coloco o livro de Salles diante dos livros de Freitas, Baptista e Machado de Assis, é porque todos eles tentam lidar, no fundo, a partir de posições bastante distintas — e com soluções que trazem implicações líricas e políticas bastante diferentes — com o problema do que fazer com o legado das grandes navegações, símbolos a um só tempo da globalização, do cosmopolitismo e da tragédia colonial. E, é claro, matéria tanto épica como lírica.

Mesmo em poemas líricos e aparentemente apenas líricos — como é o caso do livro de Salles — a história se apresenta de alguma maneira. Nem que seja como forma. É o que sugere Theodor Adorno em sua Palestra sobre lírica e sociedade, quando comenta algumas peças líricas de Mörike e Stefan George, afirmando que “uma corrente subterrânea coletiva é o fundamento de toda lírica individual”. Isso não significa, no entanto, que devamos correr atrás de todos os poemas líricos com um livro de história em mãos à procura de esclarecer aqueles em função deste. Antes, isso significa que os poemas nos ajudam a compreender a história — também onde ela se apaga. Porque a história não se apaga, nem o contexto: se preservam na forma.

As formas não são apenas uma técnica dos poetas, nem somente expressão de sua força — são também saberes. Saberes dos poetas? Não. Dos poemas. Os poemas não sabem que sabem o que sabem, no entanto. E não sabem as mesmas coisas sobre os mesmos assuntos, vale dizer. Você descobrirá coisas muito diferentes a propósito do mesmo evento histórico em cada um dos livros aqui aludidos. Os poemas não iluminam a mesma coisa.

Seja como for, no livro de Salles você encontrará solidão, silêncio e a marca de uma exaustão (e a reunião secreta de tantos personagens do ocidente: Odisseu, Robinson Crusoé, Santiago). O caminho se faz ao caminhar, é verdade: mas nem mesmo a própria viagem se apresenta como um “saldo” da viagem em Salles. A viagem se apresenta como tudo o que é. O que isso significa? Bem, não espere dos poemas muito mais que perguntas. Eles não respondem tudo. A construção de saber da poesia é diferente: está do lado das perguntas. O que você vai fazer com isso — that’s the question.

Diário de Porto Pim
Fernando Moreira Salles
Iluminuras
134 págs.
Fernando Moreira Salles
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1946. Publicou Memorando (1993), Eu me lembro (1995), Ser longe (2003), Habite-se (2005) e A chave do mar (2010). Foi sócio da Companhia das Letras e diretor do Instituto Moreira Salles, onde agora é conselheiro.
Rafael Zacca

Poeta e crítico literário. É doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor de Estética do departamento de Filosofia da PUC-Rio. Ministra oficinas de criação literária. Autor de O menor amor do mundo (7Letras, 2020, poemas) e Formas nômades (Urutau, 2021, crítica).

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