Sofrido leitor ignorado

"A mulher pela metade", de Patrícia Tenório, naufraga no caminho entre o experimentalismo e a estranheza
Patrícia Tenório, autora de “A mulher pela metade”
01/12/2010

Em seu site, a escritora Patrícia Tenório explica que a obra A mulher pela metade é “um romance híbrido, com textos entre a ficção e a realidade, percorrendo várias estradas: da reflexão, da poesia, da filosofia”.

De fato, o estranho texto de A mulher pela metade exige explicações, e muitas, pois ambiciona circular por áreas criadoras distintas. Ocorre que um autor não está junto do leitor — o que complica esse pacto tão delicado. Se lermos A mulher pela metade rigorosamente como um texto literário (não é um romance, como afirma a autora), sua construção oscila entre a autobiografia (viagem à França, estudo da filosofia), a prosa intimista à Clarice Lispector (de Água viva, por exemplo) — em que a introspecção se fixa em estados de alma obscuros, marcada a consciência fragmentada do narrador — e a transfiguração de estudos sobre Merleau-Ponty, uma espécie de ensaio crítico (veja-se o fragmento citado adiante).

Há uma personagem feminina em busca de algo, que (salvo engano, dado o estranhamento absoluto) vale como alterego da escritora: artista plástica, poeta, filósofa, memorialista, musicista, cineasta: “A parte nobre, elegante, mitificada de Séphora Lamartine. Aquela que expôs na Bienal, vende quadros para a Europa, Ásia, Estados Unidos, cantores de rock, princesas, presidentes, modelos, artistas de cinema. Essa Séphora é o lado que posso mostrar”.

Essa persona claramente “feminina” (como, aliás, ocorre em Clarice Lispector desde os anos 1940) tem à frente de si a foto de Augusto. E sua voz vem recheada de monólogos interiores propositalmente desarticulados, que o próprio título (A mulher pela metade) justifica. Dividido entre a primeira e a terceira pessoas, ou seja, com vozes que se entrecruzam, o texto começa com dois pontos:

: há palavras que revelam o melhor que possuímos; outras, o pior. O ziguezague desta caneta Mont-Blanc, o papel grosso da caderneta de capa escura, você escreve e me remete a sons, a boca seca, aroma de giz branco sobre o quadro negro, a mão de Augusto junto à minha debaixo da carteira escolar, a vontade que aquele momento nunca terminasse.

Ora, Clarice Lispector já usara recurso semelhante (começando com uma vírgula seu romance O livros dos prazeres, em 1969), uma obra de que a autora não gostava, inspirada no conceito de “obra aberta”, de Umberto Eco. Coisas dos anos 1960.

Mas, afinal, o que se depreende de meus comentários acima? Que eu, infelizmente não entendi a que vem e o que deseja — em termos de criação ficcional — esta obra. E que qualquer semelhança com Clarice Lispector será mera coincidência. Se fosse um romance de “tensão transfigurada”, como nos ensinava Goldman, o conflito forçaria a questão do gênero romance e tocaria a poesia e a tragédia. Não é o que ocorre aqui. Assim, não temos como responder à famosa e útil pergunta de Alfredo Bosi sobre o texto literário: “Afinal, o que esta obra quer dizer?”.

Brutal
Se não bastasse o caráter “experimental”, a exacerbação exagerada da “polifonia” textual, a edição do livro é extremamente sofisticada, para não dizer estranha. Em formato completamente fora dos padrões comerciais (caríssima!), tem orelhas do tamanho das capas, sobrecapa em plástico, quatro cores no interior, belas fotos misteriosamente desfocadas (do que parece ser o bureau de trabalho da artista), aplicação de poemas, pentagrama musical, páginas em branco com seu significante desnudado — e apenas 90 páginas.

Em resumo: a escritora deseja-se artista multidisciplinar e polifônica. Nessa mixagem — com incompreensíveis referências pessoais, buscas, carências e descobertas —, o sofrimento de um mero leitor de livro é brutal: voltar, reler, analisar fotos, desmontar a sobrecapa, ler poemas… Numa busca extratextual, descubro em seu site a frase: “Busco nos livros, rabisco palavras na tentativa de descobrir a Palavra original, aquela que se fez Verbo, o Verbo se fez carne e habitou entre nós”.

Onde fica, afinal, o romance? Concordo com Fábio Lucas, que, com a elegância que não possuo, já pontuou, no jornal Linguagem Viva:

A mulher pela metade, de Patrícia Tenório, valeu-me como um choque de estranhamento. (…) As diferentes vozes da narrativa colaboram para o desnorteamento do leitor (…). O que noto é que A mulher pela metade está pejada de subentendidos pessoais, ainda não coletivizados.

Não há como apreender nem mesmo apreciar tão estranho livro. Com todo o respeito pela escritora Patrícia Tenório, cujas demais obras ainda não conheço: a emoção, na literatura, pode pulsar de muitas maneiras — as mais radicais — e esgarçar ao limite a consciência narradora. Joyce já nos ensinou isso há quase um século. Só não pode ignorar seu mais precioso interlocutor: o mero leitor.

A mulher pela metade
Patrícia Tenório
Calibán
92 págs.
Patrícia Tenório
Nasceu em Recife (PE), em 1969, e é escritora, pintora, cineasta e musicista. Seu primeiro livro, O major — eterno é o espírito, recebeu menção honrosa em ficção em 2005, no Prêmio Literário Cidade do Recife. Em 2006, lançou simultaneamente em Paris e Recife As joaninhas. A obra Grãos, lançada em 2007, recebeu o prêmio Dicéa Ferraz em Poesia e Conto da UBE do Rio de Janeiro. Depois de A mulher pela metade (2009), a autora já publicou Diálogos e D’Agostinho, pela mesma editora, da qual faz parte como conselheira editorial.
Márcia Lígia Guidin

É escritora e editora. Autora de Armário de vidro – Velhice em Machado de Assis, entre outros.

Rascunho