Simbiose de corpo e linguagem

Livros de Silviano Santiago mostram como o autor mineiro pratica, na ficção e na crítica literária, um misto de assimilação do outro e análise de si
Silviano Santiago, autor de “Uma literatura nos trópicos ”
29/03/2021

Três lançamentos dão mostra da vitalidade e da variação do trabalho de Silviano Santiago. Em 2019, a Cepe reeditou Uma literatura nos trópicos, saído originalmente em 1978 e agora ressurgido em versão aumentada. Na segunda metade de 2020, a mesma editora lançou Fisiologia da composição, com que Silviano reflete acerca de obras de Graciliano Ramos e de Machado de Assis e estabelece, discretamente, uma relação entre sua narrativa e a dos dois mestres. E, nos primeiros meses deste 2021, a Companhia das Letras manda para as livrarias Menino sem passado, primeiro volume das memórias do autor, escritas em forma de romance.

Antes de iniciar a crítica dos livros, importa registrar o prodígio editorial que diz respeito aos dois primeiros. A Cepe é uma editora de economia mista e de alto gabarito, que tem publicado títulos de grande relevância, produzidos com apuro e divulgados amplamente. Como no país se dissemina a ideia de que aplicação de recurso público é gasto de dinheiro do povo, a Cepe avulta como feliz contraponto à falácia, porque seu trabalho se realiza pela soma de investimento público, proatividade e profissionalismo, cujos resultados se mostram primorosos.

Quanto à fecunda obra Santiago, a trinca de livros é estratégica para observar o que está no cerne de seu pensamento e de seus escritos. Se o de 2019 traz novamente à cena um feito que o inseriu no grupo dos mais destacados críticos literários brasileiros, o de 2021 representa uma vertente à qual ele tem se dedicado com maior frequência nos últimos anos: a autoficção encaminhada como autocrítica.

No meio cronológico desses dois livros está uma espécie de meio-termo de gêneros, algo como um entre-lugar do estilo do autor, que é um lugar ambivalente. Como indica o subtítulo de Fisiologia da composição, “gênese da obra literária e criação em Graciliano Ramos e Machado de Assis”, trata-se de um estudo de orientação genética de obras dos autores de Angústia (1936) e Helena (1876).

Não por acaso, e para usar aqui um termo prezado por Silviano, foi ao se hospedar em textos desses dois autores que ele compôs dois de seus mais emblemáticos romances, Em liberdade (1981) e Machado (2016), ambos premiados. Assim, Fisiologia da composição comenta narrativas alheias ao mesmo tempo em que estuda a poética narrativa do próprio estudioso, pois no Silviano Santiago ficcionista a propriedade se elabora por um exercício de invasão e de usurpação:

Silviano, autor, deixa-se aprisionar pelo estilo de Graciliano Ramos, para criar uma composição literária em que o corpo do ex-prisioneiro, sua grafia-de-vida em liberdade, está presente e guia o desenvolvimento do enredo. “Vou construir o meu Graciliano Ramos”, roubo de ensaio de autoria de Otto Maria Carpeaux a epígrafe de Em liberdade.

Ao falar de determinados terceiros, é de si que Silviano Santiago fala. Isso se estampa também em Menino sem passado (1936-1948), autobiografia registrada na ficha catalográfica como ficção brasileira: “Sem me dar conta, eu fui, vou sendo, sou construído como outro. Incansavelmente”, diz o romancista, que, como o outro que ele próprio é, afirma autocriticamente sobre um amigo de infância: “O centroavante me leva de volta à companhia dos super-heróis e dos protagonistas dos filmes e das séries. Sem saber, eu o imitava”.

Há, portanto, um amálgama evidente entre o crítico e o romancista, a ponto de em trabalhos mais recentes eles se apresentarem com mais clareza, seja por declaração direta, seja por sutis procedimentos formais. Nesta intervenção, partirei dos livros ora lançados para comentar linhas de força do universo reflexivo e narrativo do autor, procurando demonstrar que nos dois últimos se radicaliza a autocrítica por ele feita. Para isso, recorrerei a outros trabalhos seus. A fim de situar com clareza o leitor interessado em referências, darei informações ao fim de cada passagem citada.

Os trópicos são o mundo
Uma literatura nos trópicos traduz expressivamente a condição muito peculiar do intelectual brasileiro a partir de certo momento do século 20. O gradativo triunfo dos manifestos modernistas fez da antropofagia de Oswald de Andrade uma diretriz oficial contra dicotomias entre o local e o internacional, entre o próprio e o alheio: é arrogante e estreito orientar a cultura brasileira pela regência da cultura europeia, bem como é estreito e ingênuo desejar uma cultura nacional refratária a componentes externos. A mais, o espírito revisionista do Modernismo se voltou contra hierarquias culturais, priorizando o simples e o prosaico, em detrimento do erudito e do extraordinário.

Silviano Santiago é herdeiro dessa mentalidade. Seu trabalho é vocacionado à inovação, e teve como decisivo período formativo a década de 1960. Nascido e criado em Formiga, interior de Minas Gerais, viveu em Belo Horizonte e em seguida no Rio de Janeiro. No início da referida década, rumou a Paris para se doutorar, e entre o início e a conclusão dos estudos atuou como professor de universidades norte-americanas. Se estes foram anos determinantes como período formativo, o decênio seguinte corresponde ao estouro do trabalho de Santiago, que entre volumes de ensaios, poesia, ficção e edições críticas de obras alheias, assina nove publicações.

Os textos de Uma literatura nos trópicos (onze na primeira edição; dezesseis na atual, acrescida de posfácios de Eneida Leal Cunha, Fred Coelho e André Botelho) datam dessa fase. Os ensaios abordam obras saídas no calor da hora, caso do então recém-lançado segundo livro de Sérgio Sant’Anna, e outras já canonizadas, como O ateneu (1888), de Raul Pompeia. O crítico explora tendências que lhe eram distantes no tempo e no espaço, conforme no capítulo sobre A bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, ou de cujo desenvolvimento foi testemunha ocular, a exemplo da Geração Mimeógrafo, comentada em O assassinato de Mallarmé. O ensaísta que examina autores clássicos da literatura, como Eça de Queirós, faz também crítica de cultura, acompanhando entrevistas e apresentações musicais para intervir sobre o trabalho e a postura de um jovem Caetano Veloso.

Se esse movimento indicia assimilação do legado modernista, demonstra também caráter autônomo e disposto a avançar para outras direções. No livro, os maiores exemplos dessa interlocução independente se encontram na excepcional análise da ficção de Machado de Assis e na aguda percepção do ser-e-estar do intelectual latino-americano. Subestimado pelo Modernismo, Machado é visto no ensaio Retórica da verossimilhança fora da repetida e questionável classificação que o segrega em romântico e realista, conservador e transgressor:

Já é tempo de se começar a compreender a obra de Machado de Assis como um todo coerentemente organizado, percebendo que, à medida que seus textos se sucedem cronologicamente, certas estruturas primárias e primeiras se desarticulam e se rearticulam sob forma de estruturas diferentes, mais complexas e mais sofisticadas. 

Ao pensar a condição cultural latino-americana, Santiago aprofunda o dilaceramento do intelectual brasileiro, que frequentemente se enxerga no horizonte bipartido do Brasil e da Europa, por vezes sem se dar conta de pertencer a um continente repleto de semelhança e diferença em relação ao seu país. Nesse sentido, o esforço do crítico caminha na direção de descolonizar a América Latina outra vez, epistemologicamente: “A literatura latino-americana de hoje nos propõe um texto e, ao mesmo tempo, abre o campo teórico em que é preciso se inspirar durante a elaboração do discurso crítico de que ela será o objeto”, diz o antológico O entre-lugar do discurso latino-americano.

Ainda hoje a cultura oficial do Brasil interage mais com movimentos europeus e norte-americanos do que com os de países vizinhos. Ainda hoje povos indígenas são cercados de estigmas e ameaças. Ainda hoje o melhor jogador de futebol do mundo só é percebido em clubes da Europa. Não sendo mais um fato institucional, a colonização permanece como ideologia, e ela só será superada por uma ruptura estrutural: “A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza”.

Ao pensar a condição cultural latino-americana, Santiago aprofunda o dilaceramento do intelectual brasileiro, que frequentemente se enxerga no horizonte bipartido do Brasil e da Europa.

Um narrador pós-moderno
Em artigo para o Jornal do Brasil de 15 de dezembro de 2001, Silviano Santiago disse que ao artista do tempo presente só resta, em termos de material de invenção, “o opaco e enigmático dia a dia de sua vida”. Ele avaliava a obra do poeta Carlito Azevedo, apontando-o como “a nossa mais legítima voz pós-moderna”.

Em dois capítulos de Nas malhas da letra (utilizo a edição de 2002), Prosa literária atual no Brasil e O narrador pós-moderno, Silviano assevera, no primeiro, a necessidade de “o próprio romancista fazer silenciosamente sua autoanálise e a análise de sua obra”. No segundo, ao examinar a obra de certo contista, sublinha “o denso mistério que cerca a figura do narrador pós-moderno”, sobrepondo tal fator ao enredo e à construção de personagens. Recuando à nota que o autor faz à segunda edição, vemo-lo declarar que algumas de suas coletâneas de ensaios funcionam como sutis comentários à sua própria obra literária, que em seu fazer criação e crítica são intercambiáveis e que “a leitura do outro, como está claro nos romances Em liberdade e Viagem ao México, além de ser uma forma de enclausuramento do escritor na tradição literária nacional e cosmopolita de que extrai sentido, é também o modo mais vivaz que encontra para escapar das armadilhas do sujeito singular e imperioso (…)”.

O conjunto de afirmações faz ver que ao estudioso Silviano Santiago interessa a conceituação da pós-modernidade literária; que esta, segundo ele, se caracteriza especialmente pelo enfoque desinflado do sujeito, exposto sem necessariamente se exibir, dado o caráter “enigmático” e “misterioso” de seu cotidiano. Para Silviano, o romancista deve analisar a si e à sua obra, o que ele cumpre; e que a leitura do outro, por ele realizada em romances escritos a partir de Graciliano Ramos e Antonin Artaud, é uma paradoxal forma de prisão e fuga.

Se substituirmos Viagem ao México, de 1993, por Machado, saído em 2016, e portanto depois das edições de Nas malhas da letra, juntaremos peças ainda mais eloquentes para perceber propósitos do autor e como eles se reiteram em seus últimos livros. Afinal, Fisiologia da composição contempla escritos de Graciliano e de Machado. Em liberdade, de 1981, simula um diário que o autor alagoano pretendia escrever ao sair da prisão e não escreveu. Naquele romance, Silviano se apropria da voz de Graciliano e como ele se pronuncia por quase toda a narrativa, excetuando a parte introdutória, instauradora do mistério autoral do livro.

Já em Machado, de 2016, essas categorias se movimentam e recombinam, pois pela narrativa o autor fala como narrador, personagem e crítico (que vêm a ser os designers da ficção, como ele preza dizer). Conforme citação na primeira parte deste artigo, em Fisiologia da composição Silviano afirma ter se aprisionado pelo estilo de Graciliano Ramos. No livro não se declara algo semelhante em relação a Machado de Assis, mas em seu Finale aparece o motivo do romance de 2016 — a relação entre Machado e Mário de Alencar —, aparecendo também passagens já vistas no romance. A mais, caso o que aponto não for descuido de revisão, alguns detalhes formais de Fisiologia revelam que, se o roteiro habitual da escrita silviânica faz o crítico se hospedar no romance, no livro de 2020 o romancista se hospedou no ensaio. Como que inspirado por Jorge Luis Borges (outra referência frequente do autor de O falso mentiroso), Silviano subverte — pela reescrita, pela rasura, pela lacuna e até pelo apagamento — detalhes técnicos que um texto ensaístico deve respeitar. Fisiologia da composição tem títulos e subtítulos longos e discursivos; não apresenta lista bibliográfica; exibe referências por vezes incompletas; e desfigura a advertência de Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Uma vez que a introdução informa que o livro tem como tópico mais distendido a apreensão “do amplo significado da liberdade humana no processo de criação literária” e que o ensaio é orientado por uma operação que, “embora enquadrada e circunscrita por princípios científicos”, será usada “pelos extremos, ou seja, de maneira radical e bastante livre”, qualquer semelhança com a escrita narrativa de Silviano Santiago talvez não seja mera coincidência.

Esse misto de assimilação do outro e análise de si também se desenha em Menino sem passado, em que o autor narra preponderantemente suas memórias de menino sonâmbulo e precocemente marcado pela perda da mãe. Ainda que em menor grau, o repertório crítico do autor comparece às páginas autobiográficas. Se por um lado a recorrência gera coesão, pode, por outro, significar previsibilidade e enfado para o leitor, sobretudo se as obras mencionadas forem lidas em sequência.

Na medida em que a narrativa se desenvolve por mais de quatrocentas e cinquenta páginas a reboque de um narrador-personagem opaco — inibido, conforme ele mesmo sugere —, os elementos constitutivos da poética narrativa de Silviano Santiago parecem ter se tornado norma, a partir da qual mais importa falar de si e confirmar lemas teóricos do que se entregar como ser vivente à história que se conta.

Uma literatura nos trópicos
Silviano Santiago
Cepe
396 págs.
Fisiologia da composição: gênese da obra literária e criação em Graciliano Ramos e Machado de Assis
Silviano Santiago
Cepe
235 págs.
Menino sem passado
Silviano Santiago
Companhia das Letras
472 págs.
Silviano Santiago
Nasceu em Formiga (MG), em 1936. É crítico literário, poeta e ficcionista. Doutor em Letras pela Sorbonne e professor emérito da Universidade Federal Fluminense, lecionou literatura brasileira em universidades nacionais e internacionais. Publicou, entre outros livros, Crescendo durante a guerra numa província ultramarina (poesia, 1978), Em liberdade (romance, 1994) e Vale quanto pesa (ensaio, 1982). Recebeu diversos prêmios literários no Brasil e no exterior.
Marcos Pasche

É crítico literário.

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