Saboneteiras azuis

Resenha do livro "O futuro pelo retrovisor — Inquietudes da literatura brasileira contemporânea", de Stefania Chiarelli, Giovanna Dealtry e Paloma Vidal
Stefania Chiarelli, autora de “Partilhar a língua: leituras do contemporânea”
01/12/2013

Não é tarefa das mais fáceis analisar adequadamente um autor contemporâneo — pior ainda, um autor brasileiro contemporâneo, em disputa desleal pela nossa atenção com best-sellers mundialmente famosos. Se um mínimo de distanciamento crítico se faz necessário, pois foi assim que aprendemos que deve ser, como discutir um livro lançado há um ano, dois meses, três semanas ou quatro dias? Mas é isso que fazemos, em jornais e revistas Brasil afora — ainda que os veículos de comunicação, os suplementos literários, as seções de cultura e o número total de caracteres venham diminuindo dia após dia. Há algum consolo em saber que o papel, usado para nossas apressadas (porém definitivas e peremptórias) opiniões de hoje, embrulhará amanhã os livros vendidos pelas grandes livrarias da internet, a fim de que não sofram nenhum amassadinho.

No entanto, tal refresco nos é tirado gradualmente quanto maior é a gramatura do papel utilizado. Uma revista acadêmica, uma dissertação ou, pior, uma dissertação publicada em forma de livro é algo com que temos de nos comprometer. Lemos e estudamos com afinco, a fim de discorrermos sobre como a chave de leitura de toda a obra de um autor resta, digamos, na presença de saboneteiras azuis como indicativos metafóricos de que os personagens estão passando por momentos epifânicos — em outras palavras, tendo “suas almas lavadas”. Tudo isso correndo o risco de que o autor leia a crítica e decida simplesmente trocar, no próximo livro, as tais saboneteiras azuis onipresentes por sais de banho ou xampus especiais.

Nesse sentido é interessante notar a publicação de O futuro pelo retrovisor — Inquietudes da literatura brasileira contemporânea, coletânea organizada por Stefania Chiarelli, Giovanna Dealtry e Paloma Vidal. Não se tratando de uma editora voltada exclusivamente ao público acadêmico, podemos especular que a Rocco tenha buscado, com essa obra, alcançar um público mais geral com a discussão nela contida — isso num ano em que editores do mundo inteiro concentraram suas atenções nas letras aqui produzidas, em razão da homenagem ao Brasil na Feira de Frankfurt. Seria justo pensar assim. Todavia, a obra não parece celebrar a efeméride. Antes, objetiva tentar descobrir o que, do que se anda produzindo literariamente, ainda gerará debates no futuro.

Nomes os mais diversos são explorados na coletânea; são dezessete no total — na ordem: Michel Laub, Bernardo Carvalho, Chico Buarque, Carola Saavedra, Ricardo Lísias, Adriana Lunardi, João Gilberto Noll, Rodrigo Lacerda, Luiz Ruffato, Daniel Galera, João Almino, Sérgio Sant’Anna, Lourenço Mutarelli, Valêncio Xavier, Rubens Figueiredo, Milton Hatoum e Adriana Lisboa. Cinco são os eixos temáticos — resumidamente explicados com citações da apresentação: “Experiência, transmissão, alteridade” é a primeira parte que trata do que se chama de “recuperação da experiência”; a segunda é “Literatura, vida, cena literária”, cujos textos questionam “o paradigma que excluiu o autor da pauta de discussão da crítica, ao abordarem os modos como a tensão entre ficção e escrita é retomada em muitas das criações de autores contemporâneos”; na terceira, “Releituras da tradição, reescrituras do moderno”, é onde se discute a complexidade atual das “estratégias narrativas, justamente por meio da releitura e da reescrita dos gêneros surgidos na modernidade”; “Profanação, citação, encenação”, por sua vez, se dedica às referências criadas pelos escritores, que visam dar sentido à literatura “num mundo veloz, imagético, hipercomplexo”; e, finalmente, a parte “Redefinições do cânone, dobras do nacional” cria um embate entre “as produções literárias e críticas”, ambas em lugar instável.

No rastro do que a própria crítica literária costuma afirmar — sendo praticamente unânime em apontar como a única característica geral da literatura produzida hoje justamente sua diversidade —, O futuro pelo retrovisor reproduz essa diversidade internamente. Há quem aborde um arco na produção literária do autor, buscando uma visão mais completa da obra, enquanto outros se concentram em um livro específico. Há quem discorra sobre um romance de dois anos atrás — Diário da queda é de 2011 —, e quem discuta um que já ganhou ares de clássico — Eles eram muitos cavalos acabou de ganhar sua 11ª edição, definitiva, agora pela Companhia das Letras. Há, ainda, quem busque um viés mais acadêmico ou se dedique a um público mais geral — como parece ser, afinal, o intuito da publicação.

Normalmente, quatro são as reações possíveis a um texto dessa coletânea: em se tratando de um autor com o qual já travamos contato, podemos achar que a análise fez ou não jus a ele — para o bem ou para o mal, de acordo com nossa opinião prévia sobre o mesmo; no caso dos autores sobre os quais apenas ouvimos falar, podemos ficar interessados em ler diretamente suas obras ou não, após a leitura dos respectivos ensaios a eles dedicados. Partindo dessa premissa, passo a destacar o que me chamou a atenção no volume.

Cacoetes acadêmicos
Nada mais incômodo para mim do que ler um texto cuja introdução se dá pela construção “Este ensaio propõe (…)”, logo acompanhada de “É nosso objetivo examinar (…)”. Apesar do desnecessário cacoete acadêmico inicial, o ensaio de Leila Lehnen — O sofrimento dos jovens protagonistas em três romances de Daniel Galera — foi lido de forma voraz, tamanha a qualidade do desenvolvimento das idéias sobre o Bildungsroman na obra do autor. Este, ao lado do capítulo Carola Saavedra: da (im)possibilidade de alcançar o outro, escrito por Diana Klinger, figura entre os dois melhores da coletânea que tentam abranger a obra de um autor, mais do que apenas um romance. Restou a vontade de reler tudo de Saavedra e Galera, acompanhado do olhar de Lehnen e Klinger.

Não poderia omitir, tampouco, o trabalho de Catia Valério Ferreira Barbosa em Luiz Ruffato e as vozes pregressas: experimentações e releituras. Há anos que ouço sobre a necessidade de ler Eles eram muitos cavalos. Ninguém, no entanto, conseguiu ser tão convincente quanto essa crítica.

Nem tudo são flores, contudo. Logo após o interessante ensaio de literatura comparada de uma das organizadoras — O gosto de areia na boca sobre Diário da queda, de Michel Laub, de Stefania Chiarelli, que compara Laub a Samuel Rawet —, encontra-se o capítulo Espirais: a escrita de Bernardo Carvalho, de Claudete Daffon. A promessa de uma profunda análise de Nove noites é subvertida quando se percebe que se fala mais de antropologia e… Mário de Andrade (como diria Drummond, “que não tinha entrado na história” — ou no título). Um erro que de quando em quando é repetido pela academia: usar o novo como degrau (ou maquiagem ou subterfúgio) para falar do velho — em outras palavras, aquilo que ela conhece bem e passou a vida inteira a estudar. Afinal, quem liga para os contemporâneos se ainda não esgotamos todos os vieses a serem explorados sobre a Semana de Arte Moderna?

No fim das contas, o ensaio citado é uma exceção na obra e a literatura brasileira contemporânea é tratada com o respeito que merece. Vida longa a esse tipo de livro: é o que desejo.

O futuro pelo retrovisor — Inquietudes da literatura brasileira contemporânea
Org.: Stefania Chiarelli, Giovanna Dealtry e Paloma Vidal
Rocco
438 págs.
Stefania Chiarelli
É doutora em Estudos de Literatura pela PUC-Rio. Professora de Literatura Brasileira na UFF, publicou o ensaio Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum, entre outros.
Arthur Tertuliano

É escritor e mestrando em estudos literários pela UFPR. Escreve no blog O Leitor Comum.

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