Romance de sobrevivência

"Entre as mãos", estreia premiada de Juliana Leite, coloca escrita e vida como tecido nas mãos de uma tecelã
Juliana Leite, autora de Entre as mãos
27/02/2019

“Você planejava as entradas dos parágrafos, a numeração dos capítulos […] Você achou aquilo parecido com fazer tapetes. Tramar e escrever, coisas que se fazem com as mãos.” Essa é uma das passagens mais significativas de Entre as mãos, de Juliana Leite, dentre outras inserções similares, as quais servem como guias metalinguísticas para compreensão do livro. Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura e do Prêmio APCA na categoria Romance em 2018, o livro é centrado em Magdalena, tecelã que sofre um grave acidente e então tem de reconstruir seu corpo e sua vida.

Se tramar e escrever são parecidos, a leitura se torna a outra face de tal tecido, pela qual atravessam as linhas cosidas e descosidas da história. A obra busca aproximações com a experiência de ter nas mãos um tecido a ser tramado: história que se desfaz e se recompõe de formas diferentes (“Viu como dá para refazer uma trama desfiando algumas linhas e inserindo outras?”), trabalho em progresso.

Diferente da tradição do bildungsroman, ou “romance de formação”, Juliana apresenta uma espécie de “romance de sobrevivência”: a jornada da personagem não aponta para o desenvolvimento pleno dela (dentro do escopo abordado), mas para a constante necessidade de se reconstruir após repetidas desestruturações. O romance assume também na forma tal tema: narrativa não linear, de tempos e espaços fragmentados, capítulos que reconfiguram personagens e eventos apresentados antes. Sobrevivência pressupõe movimento, transformação.

Duas vozes
A primeira parte, Trama, inicia-se com o acidente que deixa Magdalena inconsciente e seriamente ferida. Acompanhamos, então, seu companheiro à espera no hospital, rememorando a história dos dois e lidando com demandas práticas da internação. Além disso, outra voz divide espaço com a dele, que aparenta ser um “lugar narrativo” de Magdalena no mesmo contexto, grafada em itálico.

Diante das sobreposições de cenas, contextos e pontos de vista diferentes, em uma espécie de patchwork narrativo, o romance pode tornar-se desafiador para alguns leitores. Mas, além das guias fornecidas pela personagem (“Não precisa entender tudo de uma vez, ela me diria, desejando que eu continuasse”), também se pode contar com o estilo preciso e comovente de Juliana, seu talento para produzir frases certeiras e selecionar recortes imagéticos que favorecem a adesão do leitor. O universo das personagens é familiar e recebe tratamento que lhe amplia as dimensões; um higienizador de mãos no hospital, por exemplo, é retratado da seguinte maneira: “O objeto preso à parede do corredor oferece o gel, Higienize as mãos e salve vidas. Nem todos salvam”.

Conforme a primeira parte se aproxima do fim, as costuras do enredo se tornam mais tesas, reafirmando o domínio da autora quanto à forma: as alternâncias entre as cenas se dão com aproximações temáticas ou frasais mais evidentes, assim como certas personagens têm seus destinos ligados de vez. O pai e o companheiro dela são exemplares desse procedimento, no arremate que os une sob o signo da ausência para Magdalena. Os conflitos centrais da vida dela estariam presentes, houvesse o atropelamento ou não.

“Esta aí sou eu”
A segunda parte é intitulada Avesso, indicando a inversão de perspectiva. Quem assume a voz narrativa é Magdalena, anos depois do acidente. Ao revisar o passado, a protagonista, em seu exercício de sobrevivência, lida com sua versão dos tempos de internação e convalescência como se fosse outra pessoa, diferente de quem ela se tornou. Reconta a história tratando a Magdalena de outrora por “você”, como demonstrado na passagem que abre esta resenha.

A partir daí, o texto ganha novas camadas e novo âmbito de alteridade, ressignificando a narrativa anterior. Magdalena revê a fabulação que criou em busca de refazer o tempo do qual não participou, bem como os eventos que a aguardavam ao despertar. Reconstruir a si mesma passa não somente por curar o corpo e reorganizar a vida, mas também recompor a própria história.

Em nossos dias, nos quais fake news e outras formas de se moldar — ou despedaçar — a “realidade” se tornaram assunto central, o livro de Juliana responde a demandas da contemporaneidade, trabalhando com montagens e desmontagens das narrativas. Interessante é tal procedimento não estar vinculado a seus contextos mais óbvios, como as redes sociais da internet, mas sim a aspectos mais ancestrais da humanidade: o artesanato, a fabulação pessoal e a transmissão oral do passado pelos mais velhos.

Outro acerto do livro é não reservar o tema da sobrevivência à protagonista, ou suas sequelas do acidente, mas demarcá-la no cotidiano, especialmente no das pessoas de classes menos privilegiadas que vivem nas cidades grandes do país. Em uma das sequências memoráveis, a da primeira aula de tecelagem que Magdalena vai dar após o atropelamento, são retratados em um breve itinerário: a falta de dinheiro (mesmo atrasada, ela não pode tomar uma van, por não poder pagar mais do que o valor separado para o passe comum), o caos dos serviços públicos (no ônibus, pessoas se espremem, tensões crescem entre passageiros e motorista), a violência urbana (o trânsito pior do que o comum é, em grande parte, causado pela queima de ônibus) e as falhas nos recursos coletivos (quando chega ao prédio da aluna, Magdalena quer se lavar do suor, o porteiro avisa que há racionamento de água). 

Potentes ressonâncias
Tal viagem de ônibus se torna mais impactante, com suas dificuldades e dores do corpo, por ecoar outra cena, em que a Magdalena de antes do acidente é mostrada a se divertir com os solavancos e curvas do carro, como se estivesse em um parque de diversões. Ressonâncias desse tipo dão força ao enredo e poderiam ser mais exploradas pela autora. Ressaltar e conectar certas imagens e conceitos aprimora a dramaticidade e auxilia o leitor na seleção do que reter na memória, ao seguir adiante. Em outra cena de destaque, Magdalena realiza um aborto no banheiro, com o companheiro do lado de fora, sem saber de nada. Relembrando as orientações do médico, para que descartasse o embrião, um “volume” que não deveria tentar pegar na mão, ela depois orienta o companheiro a recolher as linhas soltas da sala, um “volume” de fios vermelhos que ele pega na mão e deve descartar.

Mais costuras como essas poderiam nortear melhor a leitura, especialmente em uma narrativa não linear e constituída, em grande parte, de elementos prosaicos. Embora, em outra das guias, Magdalena diga à aluna que prefere tecer com linhas sem muito contraste entre si — para que as distinções fiquem menos evidentes e as pessoas precisem aproximar bastante os olhos para perceber as sutilezas — um romance é mais complexo de se compreender do que um tapete; é composto de milhares de palavras e elementos que precisam ter alguma forma de hierarquização comunicacional, para constituir a ponte entre autor e leitor. Toda história é uma jornada a ser atravessada e é também o mapa dessa travessia. A cartografia de Entre as mãos provavelmente se beneficiaria de uma ou outra sinalização mais nítida.

Ainda assim, trata-se de um dos livros mais instigantes lançados recentemente no país. Uma história que convida a releituras e reserva, para os que se dedicarem a elas, gratificantes descobertas de “nós invisíveis” na trama. São poucos os romances brasileiros contemporâneos com tanta ousadia, elegância na escrita e domínio da estrutura quanto os da estreia de Juliana Leite.

Entre as mãos
Juliana Leite
Record
254 págs.
Juliana Leite
Nasceu em Petrópolis (RJ), em 1983. Graduada em Comunicação Social e Mestre em Literatura Comparada, pela UERJ, ganhou o Prêmio Sesc de Literatura e o APCA por seu romance de estreia, Entre as mãos (Record, 2018).
Rafael Gallo
Rascunho