Em livro, jornalistas costumam ser um tanto óbvios. Explica-se. Como são profissionais que lidam com texto em “tempo real”, produzindo no calor da hora, as obras que saem de suas penas tendem a ser coletâneas de reportagens, crônicas, artigos ou, mais raro, ensaios. Há, evidentemente, os jornalistas que são romancistas. Nesse caso, outra similitude é o fato de que estes costumam tomar emprestado elementos comuns da prosa jornalística, seja no tocante aos temas, seja referente ao estilo utilizado. É raro, portanto, encontrar jornalistas que tenham voz própria ou projeto literário devidamente consolidado. Para o bem ou para o mal, estes profissionais investem muito mais na tentativa de criar uma persona, uma idéia de autor, a trabalhar laboriosamente o texto de literatura. Os que o fazem, não raro, são escanteados por outros escritores, que, seguindo o conselho do conto Teoria do Medalhão, de Machado de Assis, preferem a forma ao conteúdo; o adereço ao endereço; a firula à estética. Felizmente, não é esse o caso de Edney Silvestre, que acaba de lançar Se eu fechar os olhos agora, pela editora Record.
Edney Silvestre não é um neófito na produção literária. Ainda que seja mais reconhecido como um dos mais importantes jornalistas de sua geração — foi o primeiro repórter brasileiro a chegar ao ground zero, naquele que é o marco de início deste século, o 11 de Setembro —, o jornalista é apresentador de um programa de entrevistas sobre literatura no canal GloboNews, o Espaço Aberto. Como escritor, cumpre ressaltar, Edney Silvestre (que, vale a pena ressaltar, não guarda nenhum grau de parentesco com este resenhista) já assinou outros romances, também editado pela Record, e o livro de entrevistas Contestadores, editado pela Francis. Todo esse preâmbulo, que o leitor mais afeito ao Twitter terá achado enfadonho, já valeria para credenciar o autor como um nome a ser respeitado, sobretudo em um momento em que a ética e a estética parecem se confundir com o desejo de status. No caso de Edney Silvestre, no entanto, isso está fora de questão.
Se eu fechar os olhos agora traz, a princípio, a história de dois garotos, Paulo e Eduardo, cuja amizade passa por uma provação: eles encontram o cadáver de uma mulher com indícios de que fora molestada sexualmente. Insatisfeitos com o desfecho, eles decidem investigar o caso, contando com a ajuda de Ubiratan, um homem que tenta escapar ao próprio ocaso, ao esquecimento de si mesmo como humano, quando decide ser o detetive informal do assassinato. Não por acaso, o ano é 1961, época em que o mundo estava em plena disputa da guerra fria e que o Brasil era uma espécie de observador dessas grandes disputadas. Em certa medida, Edney estabelece em seu romance um microcosmo dessa condição. Os personagens também encaram um problema muito maior do que já imaginaram. À sua maneira, tentam vencer os desafios de forma a não se deixarem influenciar por quaisquer que sejam as sanções ou ameaças perpetradas.
Complexidade
De volta à história, o que aparentemente seria um caso óbvio de ser resolvido, aos poucos, mostra-se por demais complexo, tal qual as tramas e dilemas paralelos que se impõem aos personagens principais. Paulo e Eduardo pertencem a realidades sociais e culturais diferentes. Enquanto o primeiro tem como único cuidado as surras que recebe do pai e o desprezo que lhe é dado pelo irmão, o segundo parece mais tímido, mais frágil e menos dado à sobrevivência em território hostil. Eles se completam, portanto. Já Ubiratan, a despeito de sua origem, mostra-se um homem diferenciado pelo que viveu, apreciou e apreendeu. Trata-se, talvez, da personagem mais existencialista do romance, a ponto de fazer com que o ímpeto dos garotos fique em suspenso, ao menos por alguns instantes, enquanto ele reflete sobre o que o cerca. Não por acaso, é jogador de xadrez, atividade que o fará refletir, muitas páginas à frente, sobre como determinados lances se aproximam do jogo de tabuleiro. Mas esta divagação não diz muito sobre a natureza do romance de Edney Silvestre. E uma resenha deve, em síntese, fazer esse tipo de análise.
Em certa medida, o texto de Se eu fechar os olhos agora pode ser enquadrado como narrativa de suspense, mas também há um quê de romance histórico, muito embora o autor estabeleça, ainda, uma reflexão algo sentimental e existencial. Nesse mosaico de gêneros e estilos, Edney Silvestre se sai bem em todos, com espaço para diálogos e com um narrador sóbrio, bastante conciso, que não diz mais do que o necessário. Caberá ao leitor desvendar as cenas e o que está nas entrelinhas, mas é certo que os indícios para tanto estão ali, indicados, ainda que de maneira subjetiva. Para além disso, o autor consegue articular bem a questão da passagem do tempo e, tomando como eixo a convivência do adulto com os garotos, imagina como essas relações se estabeleciam num passado não tão remoto assim, passando, ainda, pelos elementos que também são corriqueiros ao país que preza pela deferência à autoridade, pelo “sabe com quem você está falando?” , da lei e do mando. Essas situações, que parecem distantes deste Brasil que hoje parece estar no topo dos Brics, servem como parte do mosaico construído pelo autor, cuja narrativa não deixa escapar esses momentos elementares da vida cotidiana de um grupo.
Dono de um texto que não se impõe pela pretensão, Edney Silvestre se firma, de vez, não apenas como grande contador de histórias, mas, também, como escritor. Se eu fechar os olhos agora, com seu início arrebatador (leia no trecho selecionado) e seu desfecho impactante (leia no livro), consegue cativar leitores em uma narrativa que conquista pela não pela adesão ou compadrio, mas pela palavra, pelo diálogo e pelo estilo. A obra traz uma história brutal, de assassinato, alguma corrupção, com direito à sordidez. Mas o leitor sai desse relato bárbaro certamente mais civilizado.