Prosador fingidor

"Os unicórnios", de Marcelo Cid, busca recusar modelo comum da escrita romanesca
Marcelo Cid, autor de “Os unicórnios”
01/09/2011

Que o leitor me permita o tom pessoal, e inserir na análise do livro Os unicórnios, de Marcelo Cid, uma ou outra confissão que favoreça reflexões próprias de um crítico. Recentemente, em virtude de minha resenha acerca do livro de Alice Ruiz Leminski, publicada na edição de agosto deste Rascunho, recebi o comentário de um amigo que, muito delicadamente, discordava das censuras que fiz aos poemas da moça, dizendo-me que preferia ler e avaliar a obra a partir do que ela apresenta e/ou oferece. Poucos dias depois, achei por acaso uma contundente contestação aos juízos que fiz, também neste jornal, na edição de maio, aos mais recentes lançamentos de Miguel Sanches Neto. Eu os havia chamado de medianos, e fui repreendido por não ter me misturado à obra de forma apaixonada, privando-me de dar a ela força e de com ela construir um sentido amplo, uma vez que me limitei a julgá-la. Some-se a isso o fato de, em conversa com um professor de geografia sobre fatos recentes da política externa norte-americana, eu ter ouvido que toda comparação é reducionista, pois, de acordo com ele, o fenômeno comparado a outro é mais visto como semelhança ou diferença do referencial do que como algo autônomo, como coisa em si.

Tais lembranças me ocorrem por me perguntar a respeito do papel da crítica literária, e, dentro disso, que modelo de abordagem e forma discursiva ela deve seguir ou manifestar. Os filósofos alertam para o perigo das convicções cimentadas, e creio ser esta a lição primeira (no sentido de mais básica) e última (no sentido de mais importante) da filosofia: dar espaço à dúvida, porque ela pode conduzir à mudança, ou, no mínimo, à lapidação da permanência. Por isso declaro ter recebido com atenção e agradecimento as três opiniões, e, somando-as no contexto da análise literária, afirmo reconhecer (há tempos) a importância de não dirigir às obras conceitos que entrem em desacordo com as verdades que ela suscita. E também digo que nunca endossei (e acredito nunca ter posto em prática) a ideia do crítico de arte como juiz.

Mas se os filósofos tiverem razão (e penso que têm), será válido tomar-lhes o raciocínio e, com novo matiz, duvidar das próprias dúvidas, e perceber, com generosidade, que a hesitação, se cimentada, pode nos paralisar tanto quanto a certeza (a certeza que se crê única ou total). Talvez seja, então, benéfico concordar com Alfredo Bosi, para quem é preciso saber reconhecer o sim e o não de todas as coisas, e concluir que a crítica exclusivamente dada ao juízo é tão restrita quanto a crítica absolutamente desprovida dele, e que a comparação irrefreável é destrutiva, mas sem alguns de seus pés não se caminha para a formação do conhecimento. Para finalizar esta introdução, deixo três questionamentos: o que deve fazer ou pensar o crítico quando lhe vem a sensação de que a obra diz muito pouco ou nada? Como a crítica, por assim dizer, do diálogo (ou seja, a que não julga) se colocaria diante de obras como a do parnasiano Raimundo Correia ou a do romântico Joaquim Manuel de Macedo? Seria possível traçar um novo modelo econômico e social para o Brasil e para o mundo, como o fez o notável Milton Santos, sem comparar as possibilidades futuras às anomalias atuais?

O romance
O preâmbulo, apesar da aparência “solta”, justifica-se pelo fato de o romance Os unicórnios, de Marcelo Cid, ser uma obra que intervém, sem o saber, a respeito da discussão posta: “(…) muitas leituras são possíveis, mas nem todas: algumas não fazem sentido. A completa liberdade do leitor existe apenas no alfabeto”. Se lançássemos ao livro um juízo apressado, provavelmente tacharíamos de estranha a narrativa, uma vez que ela se desenrola em torno do narrador-personagem Artur Borges, um professor de literatura francesa que perde os mais de dois mil volumes de sua biblioteca por causa de um incêndio. Dada a gravidade do acontecimento, Artur decide reerguer seu patrimônio bibliográfico pela via da posse indevida de livros alheios, fundando, assim, a Biblioteca de Livros Furtados, cuja consolidação passa a ser o projeto central de sua vida.

A suposta estranheza se dá pelo inusitado da situação e pelo fato de o enredo central ser interrompido ou secundarizado por todo o livro. No entanto, a leitura atenta revela que o romance não faz privilégio da trama de acontecimentos; antes, ele é presidido por uma estrutura metadiscursiva que dá destaque a variados fatores da construção da obra, conforme indica o narrador logo em suas primeiras palavras — “Não sei se este será o relato de meus fracassos ou de minha vitória, mas certamente será um livro sobre livros” —, complementadas adiante:

Tenho muitas coisas a contar: a perda de minha biblioteca e a delicada formação de outra, meu encontro com o bom Orlando Toscanelli e nosso trabalho na editora que ele acabara de criar, a história de nossa busca por um livro muito desejável, a correspondência com um misterioso acadêmico francês e o resultado de tudo. O que figurar além disso poderia ser retirado, mas, nas minhas condições, creio ser mais fácil escrever à vontade do que extirpar aquilo que sobra.

Mas a recusa da narrativa como relato linear não é feita de forma escancarada. Marcelo Cid emprega em seu livro um recurso recorrente e trabalhado de forma muito sutil — a digressão: “Mas divago, como divaguei nos segundos entre o sorriso e a resposta de Orlando”. Em variados momentos, supõe-se que o autor, um estreante na prosa de ficção, perde o fio do que narra, por dar margem a explicações prolixas e desconectadas do foco principal de cada capítulo. Mas todas as vezes em que ele retoma com precisão o que vinha sendo contado parágrafos atrás, nota-se capacidade de olhar e de conduzir com firmeza o desenvolvimento da narrativa em sua totalidade. O caso mais expressivo do emprego dessa técnica é verificado num momento em que Artur e seu sócio Orlando Toscanelli traçam alguns planos para a editora que estão lançando. A certa altura da conversa, o companheiro de Artur confessa desconhecer a vida e a obra do poeta francês Arthur Rimbaud, o que dá azo para que o narrador faça um verdadeiro ensaio acerca do autor de Um estação no inferno.

Ao lado da digressão, Marcelo Cid vale-se com igual competência da ironia, lançada de maneira refinada para quase sempre camuflar uma acidez de caráter machadiano. Talvez seja impossível não comparar o estreante ao Velho Bruxo no que tange ao uso da referida técnica, mas o cotejo não é necessariamente um expediente de fácil submissão do novato ao canônico, principalmente porque o autor soube dar ares novos a uma característica antiqüíssima, tomando como seu algo que é de muitos, como diz o próprio narrador (“Ora, mesmo em literatura, louvamos em autores clássicos artifícios que julgamos ridículos nos que vieram depois”).

Estamos habituados à idéia do poeta como fingidor, mas o prosador também o é, tanto no sentido da criação como no da dissimulação (ao fundo, ambos são poetas), e não parece ser dispensável a pequeníssima nota biográfica do autor inserida na orelha do livro: “Tem 34 anos, é diplomata e leitor constante de Borges”. Em face disso, não são gratuitas as referências feitas ao par fato/ficção, à borração dos gêneros e à intertextualidade, ainda que, à exceção da última, as referências não sejam efetivadas como motor formal hegemônico da obra. Mas voltando ao fingimento e a Machado de Assis (que é da família de Borges), Artur, como personagem, nega em dados físicos — “nada de Machado de Assis em minha biblioteca!” — aquilo de que o narrador se alimenta esteticamente, como ao falar de um etimólogo: “Talvez aceite a sugestão para uma próxima edição de seu dicionário. Tanto faz: a etimologia não é mesmo uma ciência exata. Ademais, ele pagou bem pela publicação do livro”.

Como se vê, a estréia de Marcelo Cid revela um autor em potencial que dá seu primeiro passo inteirando aspectos literários privilegiados atualmente sem deixar de abastecer-se com itens exitosos da tradição. Talvez isso seja fruto de quem, ao comparar-se com o hoje e com o ontem, queira ver nos outros o que quer e o que não quer em si, para assim ampliar-se e lançar-se firme às estradas sinuosas do amanhã.

3 Perguntas – Marcelo Cid

• Como foi o seu primeiro contato com a literatura? E o que ela representa atualmente em sua vida?
À parte os quadrinhos, na infância, comecei a ler contos e romances adaptados (Moby Dick, Dom Quixote, etc.), depois as crônicas e romances curtos de autores brasileiros — lembro da série Para gostar de ler e da Coleção Vaga-Lume. Minhas primeiras “produções” foram poeminhas; eu lembro de ter feito um caderno com vários “heterônimos”, diferentes poetas de diferentes estilos. Os diários de adolescência vieram a seguir e depois contos e um romance. Quando conheci a literatura de Jorge Luis Borges, lá pelos 20 anos, achei o meu caminho. A literatura é ao mesmo tempo um mundo próprio e uma maneira de ler o nosso mundo tão imperfeito. Não acredito que uma pessoa que leia muito seja menos “prática” ou menos realista — claro, desde que não ceda à tentação de romancear o mundo, mas isso não seria culpa da literatura em si. Atualmente a literatura é para mim um ponto de apoio e um lugar de repouso, ao qual infelizmente não tenho podido dedicar tanto tempo e energia quanto gostaria!

• O que você pretende com sua escrita, o que espera alcançar?
Confesso que não leio nada de muito novo. Meus autores favoritos são os antigos, além da literatura fantástica mais recente (isto é, do século 19 até os anos 1970, além dos romances de Umberto Eco e outros poucos autores). Mas pelo que descobri de mais recente, parece que atualmente reina uma tendência “impressionista” nas letras. Digo, em vez de escrever “O carro partiu em alta velocidade, soltando muita fumaça”, parece que a maioria dos autores hoje prefere escrever algo como “O carro acelerou. Os pneus cantaram, zunindo. Fumaça no ar, uma mancha amarela no horizonte”. Talvez seja influência do cinema… Pretendo, com minha escrita, apontar um caminho mais “clássico”, dar lentidão à leitura, derivar a literatura da própria literatura, como ensinou Borges.

• Por que a escolha do romance como gênero literário a ser encarado em seu trabalho de criação?
Na verdade escrevi muito mais contos, sob influência direta de Borges. Mas na última década o gênero do conto não foi muito favorecido pelo mercado editorial — ao menos essa era minha impressão! Borges nunca escreveu um romance, e minha meta literária é escrever algo nessa linha. Os unicórnios foi minha primeira tentativa. Outras virão, certamente… Mas tenho um livro de contos pronto, que deve ser publicado em breve.

Os unicórnios
Marcelo Cid
7Letras
166 págs.
Marcelo Cid
Diplomata, tradutor e estréia como romancista. Publicou traduções do latim e organizou, com Claudio César Montoro, o livro-homenagem Borges centenário.
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho