Poema de beira

"Fio d’água", de Daniel Massa, associa mitologia ribeirinha e modernidade precária em bonita narrativa à beira-rio
Daniel Massa`, autor de “Fio d’água”
01/12/2023

De dentro do rio negro, onde orsina vai reforçar seu compromisso com deus, ou com o pastor, surge moisés. Sem o protagonismo das escrituras que fizeram do personagem bíblico uma liderança definitiva, o moisés de Fio d’água, livro de Daniel Massa, surge feito peixe. Olhos abertos. E é pescado por uma mãe que é vó e o leva para crescer como mais um menino desobediente na escola, depois, trabalhador explorado em cima de uma moto de entregas e, enfim, jovem curioso pelo que entorpece, inclusive o sexo, que, em seu rito pessoal, é o que o leva de volta às águas do rio. Mas não é volta. No percurso poético elaborado por Daniel, o tempo é espiral, como aprendemos com Leda Maria Martins.

Fosse um romance, seria lido como história de formação: criança, menino, jovem, homem feito. Mas é livro de águas, como os contos de Allan da Rosa.

Vivendo parte da infância sobre palafitas, sobre águas, depois deslocado para onde o rio vira estrada, ou seja, seca (é entubado, vira urbes), esse texto em verso que é prosa não se deixa apreender em linha, não é de formação, antes, ou se muito, é de deformação. Deformação do tempo que não sabe girar, que insiste em correr reto, sempre em fuga do que não faz sentido.

Rafael Zacca, no posfácio/carta, pega uma chave muito bonita para ler esse Fio d’água: é livro de mistura. Livro de quem soube brincar para além da linguagem que demanda tradução lógica. Brincar com crianças que falam outra língua (crianças sempre falam outra língua).

A mistura formal, verso/prosa, é também o modo de existir do rio-tempo; ora em cheia, transbordando as margens, ora um fino curso. Inserido numa forma de fazer literatura que problematiza a dialética ocidental, mais comumente encontrada entre autores afrodiaspóricos, ao articular sua história com a ancestralidade não cristã — menino que surge do rio e que a ele volta para descobrir o amor —, Massa aproxima maneiras de dizer da população ribeirinha descendente dos povos originários com os já mencionados escritores que ancoram suas obras na associação de matrizes africanas-brasileiras.

O livro não é afrodiaspórico, mas é cartografado. É como se o grafite que o escreve estivesse nas mãos do indígena (menino-peixe), do negro (língua cuja nascente é a água: Allan da Rosa) e do próprio tempo, rio que vai tecendo em fio a estória de moisés. E aqui a grafia à Guimarães Rosa é deliberada, pois o livro também tem mais de anedótico do que de científico-historiográfico. No que trata de história, o livro é não apenas a contrapelo, é também no antimétodo.

Não ser afrodiaspórico não significa não fazer associação entre matrizes de sentido. O limiar que parece adensar o livro fica a cargo do encontro entre cidade e rio. Mitologias do rio encontram explicações modernas da cidade para daí extrair uma sorte de literatura brasileira de nosso tempo; um tempo de misturas. O sonambulismo talvez seja um traço da diferente associação de matrizes de sentido no livro, pois ele traz a marca da patologia, andar durante o sono, e a plasticidade da coisa mais mitológica, menino-peixe, sempre de olhos abertos.

Situado nessa beira de rio, que é o negro e que é em manaus, as tensões sociais articuladas poeticamente por Daniel Massa evocam acontecimentos da cidade que, mais uma vez, depõem a favor do que Zacca chamou de mistura. A feira da panair, além de trazer a confusão de um comércio informal, também traz a violência inerente a um lugar onde a zona não é franqueada por leis “modernas”. O comércio em manaus parece ocupar esse limiar entre o que ora flutua, ora pisa em terra firme (ou melhor, seca), o comércio mais consórcio que contábil.

Nessa economia as subjetividades também são de beira. A cidade é uiara, seduz, transa, impele à vida, e também mata. Tomemos duas sequências para vermos a associação poética que tensiona modernismos e seus contrários:

a fome
só me interessa o que não é meu

de outro modo não poderia dizer
visto a simplicidade no desejo:
quero comer gente

dito assim
honestamente
soa quem sabe
um pouco vulgar

no entanto
corre-se o risco de
qualquer eufemismo não
dar conta da dimensão
da coisa

[…]

dito de outro modo talvez
você não entenda o que
está em jogo:
só a fome nos une

Comunicar o desejo
A explícita menção ao manifesto antropófago de Oswald de Andrade reabre um debate pertinente no centenário da famigerada Semana de 22. Entre entusiastas e desafetos, a evocação do texto a partir do qual a própria Semana de Arte Moderna passa a ser relida atende aqui no livro de Massa a outra dinâmica de sentidos. Não temos aqui a eloquência e a subversão, embora tenhamos a mistura. No lugar daquelas, temos a coisa bem mais direta, no falar e no desejar, ou ainda, no comunicar o desejo.

A vulgaridade da expressão não depõe contra o sentido da coisa dita, pelo contrário, potencializa, pela simplicidade e falta de cerimônia, o desejo patente, pulsante e sincero. Embora não haja, aparentemente, o intelectualismo da antropofagia oswaldiana, percebemos, pela depuração e simplificação da proposta, a fina flor que resta do texto manifesto.

Há quem dirá: se em Oswald a proposta era tomar posse do outro (devorar) para aprender também a ver com os olhos do outro, aqui, no poema de Daniel Massa, trata-se única e tão-somente de comer pessoas, transar. Eis o engano. Moisés tem olhos de peixe, não se fecham nem mesmo quando se deseja, como no caso em que foi preso e retirado da prisão pela vó. Nessa esteira, comer pessoas também tem a ver com se apossar dos olhos de quem se come. Em suma, sem a eloquência e a subversão intelectualizante, o poema faz ver de maneira mais direta o que de fato nos une; a fome e sua literal polissemia: fome de comida, fome de gente. O que nos une é a dor e o prazer. E o motoboy filho-neto da fiel evangélica sabe disso ao simplesmente dar curso à vida.

A segunda sequência:

a rola intumesce
pressiona em densidade submersa —
nas veias do pau
rijo corre o rio
toda água que invade
o corpo é
devolvida em
gozo

os poros
em líquido amniótico

[…]

o rio negro é
antes
um útero

[…]

a mãe d’água
que perseguiu moisés
em cheias suores chuvas
devolve o filho afogado
à superfície

Aqui o tempo em espiral. A água que entra no corpo, enquanto este transa, o envolve feito água do útero. O rio que invade é a carne de onde veio o corpo. Rio ancestral. Lugar de onde se emerge com olhos abertos. As cheias não fazem moisés fugir para a uiara vida moderna, antes, como uma Uiara, as cheias o seduzem para que ele saiba do tempo em giro espiral. Por isso, ao devorá-lo, as águas o devolvem à superfície. É como nos ensina Ailton Krenak na abertura de seu Futuro ancestral, aprimora-se a remada para que o barco deslize liso para o antigo, para o tempo, para o fluxo, o rio.

Vale notar também, pelo trecho acima, que o transbordamento do rio, a espiral do tempo, está na plasticidade formal do poema. Se o ritmo é prosaico, o modo como as palavras se apresentam ainda passa pelo corte de quem versifica. O alargar do rio, sua cheia, não se resolve apenas com o alargamento dos versos, como, a princípio, poderíamos pensar — dado que isso daria uma imediata sensação visual —, mas ele, o alargamento, pode ser composto também com outros sofisticados procedimentos: quando a palavra que finda um verso já é a primeira do verso que vem abaixo, caso de “…do pau/ rijo corre o rio”, onde a rigidez é do pau e do rio. Ou ainda, quando “em cheias suores chuvas” vemos as águas se adensarem para além das margens do rio de modo a elidir o que vem dos céus, do homem e do próprio rio sem a vernácula separação por vírgulas. Recurso já há muito utilizado na poesia, mas que ainda tem o seu efeito, sobretudo na mão de quem escreve com consciência da mistura que quer promover.

Em suma, esse grande poema de beira se faz limiar, encontro de falares, geografias e modos de vida, encontro de tempos, flui e gira feito a canoa dos meninos de Krenak não apenas no que tematiza, mas também no modo como artificializa, dado que o livro tem andaimes modernos, mas está inteiramente cortado por peixes.

Fio d’água
Daniel Massa
7Letras
98 págs.
Daniel Massa
Nasceu em Saquarema (RJ), em 1986. É poeta e professor. Publicou não tem nome de quê (2021) e a plaquete de repente vale mesmo a pena é ir a pé (2021). Em 2022, idealizou e ajudou a construir o projeto Biblioteca Indígena do Xingu, na Aldeia Ipatse, do povo kuikuro, no território indígena do Xingu.
Cristiano de Sales

É poeta e professor de literatura brasileira da UTFPR. Autor de De silêncios e demoras (2020) e Urgências que não são (2021).

Rascunho