Pela essência do movimento

“A teoria do jardim”, de Dora Ribeiro, é uma meditação acerca do fazer poético irmanado à vida cotidiana
01/10/2009

Desde seu poema de abertura, o sexto livro de Dora Ribeiro, A teoria do jardim, é todo movimento: “girassol/ abre os braços a cada manhã/ pensando no caminho/ e no avesso dele// (…) porque não há sentido fora/ do movimento e não existe/ vida fora das breves inclinações”. É nessa floripoética — para não a chamarmos simplesmente de floricultura — ou mesmo nessa paisartística — para não a chamarmos de paisagística — que a escritora lança, mais que os olhos, seu corpo inteiro na aprendizagem de ser, que é também a do devir de seus poemas: “o traçado do teu jardim/ ignora parágrafos/ para avançar nas/ delicadezas do imprevisto/ e da inexatidão”.

Afinal, o esforço para uma suposta teorização do jardim — de “abraçar árvores” (“ali onde um tronco tem/ largueza para grandes abraços de ar”) e “ser acolhida/ nessa generosidade verde” — se traduz numa sedutora meditação acerca do fazer poético irmanado a uma vida (não) cotidiana: este “desejo/ que se repete”. Ao falar sobre poesia através da poesia, o que a priori se anunciaria teórico ou teorizador se torna a prática do próprio ofício sem a qual a reflexão em torno dele esvaneceria. Nesse sentido, o título da obra se ouve irônico, na medida em que afirma a obsessão científica pelo esclarecimento e pela classificação para poeticamente negá-la, além de celebrar certa impossibilidade de uma fala para a criação que não seja, ela mesma, criadora e, logo, inclassificável. De fato, o que se insinua, por esse caminho em que a poesia se reconhece no girassol, é a assunção do próprio corpo da poetisa como flora (“sofro de necessidades vegetais”) e fauna (“uma/ deliciosa coincidência de bichos/ ocorre quando o meu/ corpo esbarra nos cantos/ da tua casa”; “a infância é o nosso mais fiel e longo animal”), isto é, como terra-fonte, natureza que copula, gesta e dá à luz mediante o evidente erotismo que torna os corpos da paisagem e as paisagens do corpo um no outro, ou um com o outro, com a sensualidade pertinente a todas essas aproximações e fusões (“quero falar uma língua nova/ principiada na carta do teu/ corpo”).

No entanto, mais do que a corporeidade como nascedouro e presença mítica desses encontros enredados por sensações táteis, gustativas, aromáticas, visíveis e auditivas — tomados por uma assim chamada “força da árvore budista” (“puro olho do universo/ na cama da terra// puro caminho de silêncio nas mãos que conhecem o amor/ divinamente humano”) —, o que se flagra é, no vão da rede, o movimento deste vir a ser (humana e flora, humana em fauna, fauna-flora-humana) em que o poético se quer menos na apresentação de um lugar híbrido do que no ínterim entre um lugar e outro, no sem-lugar abertura para todo espaço e temporalidade (“el cuerpo es el lugar de la/ desaparición del cuerpo”).

Desconcertante
Essa idéia de mobilidade acompanha a obra de Dora Ribeiro já em uma das epígrafes presentes no princípio do livro. Na de Allen S. Weiss, lemos: “Tem de se ser móvel para a experiência do jardim, tem de se atravessar o tempo e o espaço no jardim”. Ao escrevermos “idéia de mobilidade”, sugerimos realmente isto: que, mesmo negando a teoria no sabor da prática de um ofício não generalizante e sempre singular, a poetisa converge para certo esforço abstratizante: ao buscar o que no movimento é movimento, paralisa o próprio movimento em nome de uma conceituação ou essencialização de que a poesia não dá conta, mas que de modo desconcertante a de Dora Ribeiro tangencia quando, com poemas altamente dinâmicos (formalmente moventes em meio ao silêncio que se lhe doa na concisão de cada precisa palavra para o impreciso que perscruta), nos presenteia o repouso numa indiscernibilidade entre o estático e o extático, dentro da qual nos assumimos diante de fotografias em que, no instante suspenso em lente, vivemos a fugacidade e a eternidade do agora.

Certamente contribui para esse elogio da movimentação o fato de que se trata de uma escrita em certo grau nômade e habitante dos entre-lugares pelos quais a voz lírica passou na transferência de sua vida de um sertão a outro (“o sertão sou eu/ e a cada passo/ nas lendas do rosa/ ficam mais distantes/ as existências fixas”), de um país a outro (como do Brasil a Lisboa; de Lisboa a China), de um mundo a outro, de modo que sua poesia culmina na assunção desta “deslizante caça dialética”, desta fronteira que enfraquece pólos estanques em nome de uma terceira margem sem dicotomias. Nela, idiomas se confundem, assim como os escritores (João Cabral, Guimarães Rosa, Baudelaire, Octavio Paz etc.) que compõem a memória poética da autora. Em A teoria do jardim, toda “cidade é interminável/ uma pele aberta aos caminhos”, mas “visível/ feita de territórios migrantes” onde vemos “os fragmentos/ de que todas as histórias e/ coisas do mundo são feitas”.

A teoria do jardim
Dora Ribeiro
Companhia das Letras
96 págs.
Dora Ribeiro
Nasceu em Campo Grande (MS), em 1960. Publicou os livros de poemas Ladrilho de palavras, Começar e o fim, Bicho do mato, Taquara rachada e O poeta não existe. Viveu em Lisboa entre 1983 e 2006, e mora em Pequim.
Igor Fagundes

É poeta e crítico literário.

Rascunho