Para além do sedutor

Antologia de Lord Byron apresenta uma tradução burilada dos poemas, apresentados com rigor formal nas rimas e na aplicação semântica, vernacular e imagética
Lord Byron, autor de “Poemas, cartas, diários &c.”
01/07/2025

André Vallias é poeta reconhecido, designer gráfico e produtor de mídia interativa. Organizou anteriormente, por meio de pesquisas circunstanciadas e traduções do alemão ao português brasileiro, os livros Heine, Hein? (2011) e Bertolt Brecht: Poesia (2019). O bicentenário da morte de Lord Byron (ele nasceu em Londres, em 1788, e morreu em 1824, na cidade grega de Mesolóngi) enseja o esta nova empreitada sob o buril do mesmo poeta-tradutor. É significativo, sim, acentuar a forma burilada desses poemas apresentados com rigor formal nas rimas e na escansão pela aplicação semântica, vernacular e imagética.

A composição de Lord Byron requer o rigor, a habilidade com moldes precisos, pois opta por ritmos distintos que melhor se ajustem a essa ou àquela matéria. A profecia de Dante funde coisa e técnica ao empregar a terza rima (ABA BCB CDC) que o escritor italiano empregou na Commedia (século 14), ou seja, são experimentos métricos inéditos na língua inglesa. No prefácio, Byron dá um recado, com um quê de enfado resignado, escreve que não há como escapar dos tradutores, suas próprias estanças spenserianas teriam se transformado em versos brancos numa tradução italiana. A tradução ao português é criativa mas não a ponto de negligenciar as evidentes demandas da fonte, permanecendo atenta aos sentidos naturais e, na medida da possibilidade dos recursos linguísticos, à formalidade das estrofes dos poemas.

Dentre os poemas da antologia se destacam os cantos selecionados e traduzidos de Peregrinação do infante Harold

—uma romança:

Canto I
Voa o veleiro, a terra esvaneceu, e o vento
Vergasta na baía insone de Biscaia.
Quatro dias se foram, ao quinto, pra contento
Dos corações, apareceu enfim a praia;
Eis que os morros de Sintra guiam-nos em raia,
E o Tejo salda o emolumento à profundeza;
Logo não há piloto luso que não saia
De bordo pra pisar o solo que mais preza,
Onde lavora a pouca e pobre gente camponesa.

Diagramado em pentâmetros iâmbicos, o poema épico se configura em andamentos da personagem Infante Harold por mares e por terras magníficas — Portugal, Espanha, Grécia, Albânia, bem como por excertos de amor e de contemplação. Após a estrofe introdutória, os versos seguintes do Canto I censuram, cáusticos, o esplendor físico da natureza de Portugal que se contrapõe à mácula do regime de escravidão. E na Grécia, à vista da tumba da lésbia Safo, o Canto XXXIX formula em versos a indagação: “[…] tua poesia/ houvera de salvar um peito já imortal?/ Eternizou a vida, por que morreria?”.

Há um destaque gráfico nesta coletânea de Byron com páginas em cor preta. Não menos que pela qualidade do consoante acento visual, o poema em prosa Darkness/Breu destaca-se pelo movimento regular da cadência. Como sucede em geral nos outros poemas, essa poesia tem dominante estética mas soma à expressão da palavra poética a erudição legendária ao tratar da erupção vulcânica de maior intensidade já registrada. Em 15 de abril de 1815, o Monte Tambora na Indonésia irrompeu em lavas e névoas densas e, com isso, a escuridão, a poluição dos ares e a devastação das plantações afetaram os povos do Hemisfério Norte com a fome avassaladora e a angústia.

Biografia
A Introdução descortina a biografia do poeta sem passar ao largo dos casos amorosos mais picantes e das escandalosas malversações financeiras. Tais facetas sensacionais podem confundir ao invés de permitir melhor leitura dos poemas, mas neste caso sucede o inverso. As especulações sobre os dados físicos do poeta, que claudicava, era um exímio nadador, era um homem bem atraente, podem constituir informações acessórias auxiliares na interpretação da obra. Acima de tudo, porém, a antologia apresenta aos leitores brasileiros uma profusão de poemas mordazes (o mais famoso é Don Juan que o livro breve engendra e remete a pesquisas de Lucas Agustini que o traduziu na íntegra) e as defesas que ele envidou de ações históricas progressistas por serem adendos relevantes ao prestígio do poeta.

Lord Byron abraçava causas marcantes e um dos bastiões de sua obra literária é a disputa acirrada. Seu discurso de estreia na Câmara dos Lords aconteceu em 1811. Na ocasião, ele se engajou ardorosamente em prol dos luditas, como eram denominados os tecelões do Reino Unido que, em vista da substituição do seu trabalho manual por modernos teares mecânicos, vinham destruindo as máquinas sob a liderança de um líder fictício, Ned Ludd. Lord Byron manifestou-se favoravelmente pelos luditas tanto nesse pronunciamento polêmico como também em cartas e poemas.

Durante os anos que viveu em Ravena, na Itália, no cerne da rebelião do Risorgimento, ele simpatizou com a causa política liberal e anticlerical dos Carbonari. Depois esteve presente no calor das batalhas pela independência da Grécia diante da Turquia. O livro The Greek War of Independency, de David Brewer, disponível no Internet Archive (archive.org), vê a participação de Byron, e particularmente sua morte no campo de batalha, como crucial para chamar a atenção das nações solidárias à mobilização grega pela independência e também à participação ativa.

A recepção da poesia de Byron é pontuada por hilárias histórias referentes à devoção que lhe dedicavam os admiradores pelo mundo inteiro. À sublime idolatria o astro reagia com sua têmpera espirituosa.

No Brasil se conhece o efeito excessivo dos componentes melancólicos e lúgubres, advindos da perspectiva monotemática do interesse por seus versos durante o período romântico, na fase designada “byronista”, conforme nossas cartilhas escolares. Consiste em traduções de esparsos poemas e em empregos do nome à maneira de substantivos, adjetivos, desacompanhados do estudo respectivo. Desde a década de 1830, mormente nas três décadas seguintes, os poetas Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e Castro Alves difundem o viés byroniano. Mas, indicia Vallias, é no poema épico Guesa errante, de Joaquim de Sousândrade, que a forma mais original da épica romântica do Peregrinação do infante Harold é apropriada pela literatura brasileira: o Guesa menciona várias vezes o antecessor inglês e seria composto sob estímulos similares.

As correspondências epistolares dirigidas às amantes têm realce cômico nas dramáticas justificativas para os rompimentos: “estou ligado a outra cujo nome, é claro, seria desonroso mencionar”, na despedida amorosa e ao mesmo tempo assertiva que endereça a Sara Vaughan e no poema Adeus a uma dama. Não obstante os conflitos com a mãe, as cartas que o filho Byron a ela dirige são as que contêm as mais detalhadas e esplêndidas descrições dos lugares exóticos por onde passava na viagem que realizou em 1809, acompanhado de seu amigo John Hobhouse, navegando pelo Mar Mediterrâneo. Tenho em vista aquela carta em que lhe relata a hospitalidade na Albânia do influente Ali Paxá, em Tepelena e Janina, e na qual dá contas do caráter do homem albanês a seu ver cheio de virtudes, assim como de vícios. Igualmente no Childe Harold’s Pilgrimage, Byron elogia reiteradamente a Albânia: “rugged nurse of savage men!/ The cross descends, thy minarets arise”.

Devoção
As correspondências (sempre de sua autoria) que integram o livro são por reflexo comprobatórias da consideração que lhe devotavam célebres escritores do início do século 19. Numa delas, Byron agradece a Madame de Stäel, escritora francesa do ensaio Da Alemanha e de romances bem-sucedidos, a respeitosa reverência. Numa outra, muito gentilmente, ele externa a Goethe imensa gratidão pelo poema e pela carta.

Essas deferências certamente não eram unânimes, como se depreende dos depoimentos a ele alusivos feitos por Friedrich Schlegel, já convertido e escandalizado com os modos do Lord escritor; por Heine e tantos outros. Mesmo o compêndio História da Literatura Ocidental, de Otto Maria Carpeaux, reserva no capítulo Romantismos em oposição uma longa digressão ao predomínio dentro da literatura europeia de três poetas ingleses, Shakespeare, Scott e Byron. Carpeaux interpreta o byronismo mais como atmosfera, como uma conduta na vida e na poesia: “Todos só pensavam em imitar-lhe o gesto, a fronte pálida reclinada na mão, o olhar para longe onde há mulheres a amar e corromper, povos a libertar”.

O subtítulo do livro aponta aos adendos, poemas, cartas, diários &c. São complementos intermitentes na edição. Há listas de livros lidos com fragmentárias anotações e sínteses dos teores que delineiam desistências e mudanças de planos de leituras, e tudo isso propicia aproximações ao modus operandi do escritor. Muito curioso ler esses apontamentos e ouvir ao mesmo tempo o historiador Carlo Ginzburg na série Fronteiras do Pensamento, quando ele discute os recursos da internet ao estudo da história, por facultar o acesso a um quadro amplo em termos da dimensão universal e filigranado em termos dos traços de uma personalidade humana. O apreço pelas miscelâneas e pelos esboços do pensamento era uma metodologia de Byron, que recomenda Anatomia da melancolia, de Robert Burton, a quem queira se munir de um instrutivo arsenal para o estudo literário. Loas à erudição das miscelâneas, que a edição brasileira desta coletânea de Byron, como uma espécie de mise en abyme, oferece igualmente ao leitor do século 21.

Poemas, cartas, diários &c.
Lord Byron
Trad.: André Vallias
Perspectiva
640 págs.
Lord Byron
Nasceu em Londres (Inglaterra), em 1788. Foi uma das figuras mais influentes do romantismo. Entre os seus trabalhos mais conhecidos estão os extensos poemas narrativos Don Juan e A peregrinação de Childe Harold. Morreu em Mesolóngi (Grécia), em 1824.
Maria Aparecida Barbosa

Professora de Literatura e tradutora do alemão.

Rascunho