O véu da desilusão

A protagonista de "Dora sem véu", de Ronaldo Correia de Brito, parte em busca de algo perdido em meio ao sertão sofrido
Ronaldo Correia de Brito, autor de “Dora sem véu”
30/03/2019

Confesso que, ao começar a ler Dora sem véu, achei que o tema do livro poderia já estar esgotado, porque se trata de um romance de características regionalistas, já escrito e discutido por autores que hoje são clássicos da literatura, como Graciliano Ramos de Vidas secas e São Bernardo, apenas para citar um deles. A literatura brasileira, na primeira metade do século 20, já teria dado conta suficiente deste tipo de discussão. Seria difícil a autores de um período pós-utópico trazer à tona o realismo nordestino e seu sofrido sertanejo. A rigidez do sertão teria sido levada ao extremo em Vidas secas, enquanto sua consequente psicologia sertaneja estaria consagrada no narrador de São Bernardo.

Mas a mesma pós-modernidade é dura com as ideologias, sobretudo com as esperanças ou expectativas dos autores do Modernismo, movimento cultural em que se vê incluído o mesmo Graciliano. Neste livro de Ronaldo Correia de Brito há o desencanto. A personagem principal, Francisca, narradora do périplo, formada em sociologia com pós-graduação fora do país, descarta suas crenças. A esquerda, que sempre lhe rendeu esperanças, sobretudo na juventude, quando atuou como ativista, já não lhe aponta soluções. O jeito é partir em busca de algo perdido, mas mesmo assim sem a certeza de que irá encontrá-lo. A mulher e o marido juntam-se a romeiros e partem a Juazeiro, Ceará. Ela sai em busca de Dora, avó por parte de pai, uma mulher perdida no passado enquanto peregrinava à mesma cidade com os quatro filhos em busca de uma solução milagreira. O pai de Francisca, um dos filhos de Dora, abandonara a mãe e os irmãos enquanto peregrinavam e fugira, sozinho, com apenas doze anos, para o Recife, em busca de uma vida melhor. Mas tal fuga pesa-lhe na consciência no momento em que a morte se aproxima. Incumbe, então, a filha a procurar Dora, caso ainda esteja viva, e os irmãos. O casal ruma para Juazeiro, última cidade que atestou a presença da mulher.

Há temas, em literatura, que são eternos, como o a relação entre os seres humanos, o amor, a solidão, a precariedade da existência, a perspectiva da morte etc. Há narrativas que privilegiam a geografia local, apresentando-a como moldadora de atitudes e sentimentos humanos; outros autores, no entanto, não creem que o locus pode ser determinante para o modo de vida de qualquer pessoa, como consequência investem no comportamento humano como modificador das condições sociais. Dora sem véu aplica-se nas duas vias. Há a paisagem nordestina fustigando homens e mulheres a correrem em busca de milagres nos santos da terra, peregrinos viajantes na boleia de caminhões ou mesmo caminhando em direção a uma espécie de terra prometida, onde esperam soluções para seus problemas. Mas dentre toda essa massa humana, há o relacionamento entre as pessoas, diferentes destinos que se cruzam e que vão além da metafísica. Apesar de crentes, querem a pessoa ideal para viver, o prazer que o corpo permite, o enlevo de conversar, de beber juntos, de amar. Nessa busca desenfreada pela felicidade, multiplicam-se casamentos desprovidos de sentido, amores renegados, o desejo pela mulher jovial, ou mesmo a mulher do próximo, a violência. Há ainda o feminicídio, e sobra a impunidade.

Quando se fala em pagar promessas abrangendo romeiros ou peregrinos, esquece-se a divisão da sociedade em classes sociais, as quais permeiam a relação de poder entre os homens. Mas no livro ela existe e é bastante discutida.

Eis as primeiras frases do romance: “Todos pagam promessa ao Santo e se livram de algum mal. Eu saldo as dívidas do pai. Dora”. E vai Francisca, não em busca de um milagre, mas à procura de pessoas que ela nem sabe se ainda existem. Durante a busca, é possível observar todo um drama de consciência, discussões psicanalíticas e políticas, sobre a existência de cada um e sobre a realidade político-econômica do país.

Francisca pertence à elite, é professora universitária, viverá durante algumas semanas junto a pessoas do povo, pagadores de promessas desescolarizados, plenos de fé em Deus e no Santo máximo de Juazeiro, o Padre Cícero. Mistura-se a eles num caminhão que leva os peregrinos. Seu marido é médico, a princípio um intelectual, mas que se deixa levar pelo relacionamento perverso com mulheres mais jovens.

Enunciação feminina
A meu ver, o que há de marcante no romance é a enunciação feminina. A visão de mundo da narradora tenta envolver não apenas sua posição de classe, mas também a de outras mulheres, como Maria do Carmo, uma nordestina pobre que vai com a família a Juazeiro pagar uma promessa porque a filha fez um aborto. Francisca, porém, não consegue chegar a um denominador comum em relação à Maria do Carmo, mesmo utilizando toda a argumentação que adquiriu no mundo acadêmico. A sertaneja crê, e contra quem crê não há argumento que o valha.

Discute-se não apenas o relacionamento amoroso, mas a relação de poder e os benefícios que a união a alguém pertencente a uma classe social superior pode proporcionar. Durante boa parte da narrativa há dicotomias entre fé e descrença, religião e mistificação, virtude e pecado, culpa e perdão.

Sob a voz de Francisca o tempo transcorre multifacetado, antecipando situações e expondo os traumas de cada personagem. A viagem não é apenas física, mas permeia o mais recôndito da alma humana.

Conforme o romance se aprofunda, Francisca percebe que seu casamento há muito vêm fazendo água. Outro ponto pertinente, que a narrativa não deixa calado, é que há muita conveniência em manter os relacionamentos. No caso do sertanejo, ele transparece como um destino natural, onde o ser humano se ancora para sobreviver num tipo de sociedade que refuga o indivíduo e o leva ao crime. Em relação às elites, há os bens materiais e o modo como são vistos pelas classes inferiores.

O ponto alto do romance é a apresentação dos intelectuais como aproveitadores, sempre dispostos a satisfazer primeiramente seus desejos e caprichos, tendo perdido qualquer tipo escrúpulos e interesse em tentar soluções para os problemas que assolam o país. Resumindo: cada um que trate de si. O exemplo máximo é Afonso, marido de Francisca, que se enamora à jovem sertaneja filha de Maria do Carmo. Os pais da moça nada comentam, acabam por compactuar, porque acreditam que o homem tem bens materiais, é importante e poderá ajudar a família da moça. Mas não desconfiam que o tal relacionamento pode significar a beira do abismo. A esposa de Afonso, Francisca, do mesmo modo não sai incólume. Ela inicia um relacionamento com um homem chamado Wires, pequeno empresário mais novo que ela quase vinte anos, que está em Juazeiro também para pagar uma promessa, pois sobrevivera a um grave acidente de moto. Pouco a pouco, a narradora vai tentar, inicialmente através de amizade, compensar o desastroso casamento. Wires percebe a manobra e começa a se sentir usado pela mulher.

Fica a questão: de quem é a responsabilidade em um universo social revolvido pelo fanatismo, usurpado pelas paixões e pelos interesses materiais? O livro soa como um ajuste de contas sobre o fracasso dos intelectuais e do poder político.

Dora sem véu
Ronaldo Correia de Brito
Alfaguara
239 págs.
Ronaldo Correia de Brito
Nasceu no Saboeiro (CE), em 1951. É médico formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Foi escritor residente da Universidade da Califórnia, em Berkeley, em 2007. Vive no Recife. É autor dos livros de contos Faca, Livro dos homens, Retratos imorais e O amor das sombras e dos romances Galileia — vencedor do prêmio São Paulo de Literatura e traduzido para o espanhol, o francês, o italiano e o hebraico — e Estive lá fora.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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