O trigo inesperado

“Em Memória futura”, Paulo Franchetti esboça um modelo exemplar de escritura, que dispensa rebuscamentos gratuitos
Paulo Franchetti, autor de “Memória futura”
01/01/2011

Conforme a mitologia grega, Mnemosine é a deusa da memória. E, da união de Mnemosine com Zeus, nasceram nove musas, responsáveis pela poesia épica e romântica, pela história, pela música, pela dança, pela tragédia e pela comédia, entre outras coisas. Em seu recente livro de poemas, Memória futura, editado pela Ateliê, Paulo Franchetti esboça um elogio à deusa da memória. Ainda que os poemas não estejam alinhados a essa premissa de forma evidente, é possível lê-los dessa forma não apenas em virtude do título da obra, mas, sobretudo, porque o autor privilegia a idéia da memória como esteio dos poemas que compõem o livro. Além das alusões diretas à temática central da obra, existem, ainda, os temas correlatos, como a velhice e a passagem do tempo, sem mencionar a proposta da reflexão pretendida pelos versos do autor.

Com 45 poemas distribuídos em 57 páginas, Memória Futura é um capítulo novo da produção literária de Paulo Franchetti, professor-titular do Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas. Diante desse fato, era natural se esperar que o texto de Franchetti viesse prefaciado de maneira a estabelecer um sentido aos versos que compõem o livro; no entanto, a não ser por um texto curto que apresenta a obra (na quarta capa), nada existe para além dos poemas. De qualquer modo, é possível, mesmo a partir dessas poucas palavras iniciais, buscar um sentido à proposta autoral de Franchetti, como se lê a seguir: “Acredita o autor deste livro que cada um dos textos nele recolhidos, embora forme com os demais uma espécie de poema único, é suficiente em si mesmo”. O trecho pode ser entendido como uma justificativa à falta de um prefácio mais substancial. Em seguida, o texto vaticina: “Talvez [o autor] se iluda também julgando que a memória ou a arte possa redimir o que, nem por ser verdadeiro, teve algum sentido que perdurasse por si mesmo”. E assim, entre a crença e a possibilidade de ilusão, abre-se o livro em busca dos poemas que podem, eventualmente, tornar mais clara essa explicação.

Com efeito, é a idéia da memória que se torna mais patente à medida que se avança na leitura. Exemplo disso pode ser constatado em Manhã fria, onde está escrito: “A memória trabalha escondida/ E de súbito emerge (….) Enquanto o café esfria, a memória desce pelo corpo”. E mais para o final do mesmo poema, outra vez o tema central: “A memória supre, o coração suporta/ O corpo, sem rumo, se conforma/ E distrai”. De forma semelhante, em Epitagmata epitatten, a idéia reaparece, outra vez associada ao corpo: “O corpo fabrica/ A memória que o sustém”. E já quase ao cabo do livro, embora sem a menção direta, a questão está ali: “Com cinqüenta anos, um homem/ Começa a se esquecer./ Crê que se recorda, busca/ Imagens do passado. Elas comparecem tímidas, depois, como parentes, habitam a casa. A despeito desses excertos que justificam, de forma evidente, o título da obra, seria por demais objetiva a leitura de Memória futura tomando como esteio tão somente o tema central, a saber, a questão da memória. Em verdade, com o propósito de perceber quais são os artifícios e as outras matérias utilizadas por Franchetti, cumpre observar outros elementos constitutivos desse ensaio poético.

Outros elementos
Um bom exemplo disso são os insights articuladamente compostos para conceber uma bela imagem ao leitor. Em Franchetti, a poesia não poderia ser mais visual, conforme se lê em o sol estático e instável ou o sol se espalha na neblina. Nesse último, aliás, até a sonoridade, que em outros textos seria um detalhe a mais, aqui é peça-chave desse fazer poético. Já em outras passagens, pode-se atentar para o tratamento do corpo como objeto central do texto. É o caso do já citado Epitagmata epitatten, onde está escrito: “A nuca fique em abandono/ A carne em desmaiada espera/ Fingindo/ Embora ou a valer/ A volúpia de ceder”. Aqui Franchetti utiliza palavras que, aparentemente, sugerem outro elemento: o sexo. Nas palavras do autor, não há espaço para afirmações explícitas e declarações sórdidas. É inegável, no entanto, que esse elemento aparece de forma elaborada nos versos do poeta. É o que se lê no poema O cheiro da pele: “O cheiro da pele/ Pronta a repartir/ Envolto na sombra/ Tateia, persegue, encolhe/ Recebe a oferta/ Na voragem”.

O professor de literatura da Unicamp, ainda que sub-repticiamente, também abre espaço para uma digressão pré-socrática no texto O mais poderoso elemento. Ao escrever: “O ar se move e passa/ A água escapa pelas fendas/ O fogo a si mesmo devora”, o poeta revisita a discussão que envolvia os filósofos que concebiam como busca fundamental da filosofia alguns dos elementos citados no verso de Franchetti. E se, conforme escreve Alberto Caeiro, há muita filosofia em não se pensar em nada, Paulo Franchetti não se perde em abstrações que poderiam levar o leitor a crer que a poesia é preparada apenas para iniciados, pois, já no poema seguinte, O lugar é de cinema, reverte uma conhecida passagem bíblica, quando assinala: “A fonte outra vez corre para o mar/ A colheita era de joio, eis o trigo inesperado”. Se na escritura sagrada, o joio deveria ser separado do trigo, no verso citado, mais que o trocadilho, nota-se que o joio é o próprio trigo.

A remissão ao sagrado reaparece em Beleza maculada. Aqui, logo no início, o poeta louva o Criador, só que por razões que mesmo os cristãos atualmente não costumam agradecer: “Glória ao Criador pelas coisas machucadas/ Pelas veias partidas nos casais de ocasião/ Pela mancha rosa, toda pontilhada (…)”. Mais adiante, uma passagem indicativa da presença das rimas internas, peculiaridade hoje em dia não tão evidente: “pela unha que arranha a coxa fugitiva (…) Pela pele rompida, logo emendada (…) E por toda ferida de amor/ Incendiada e acariciada”. Dito de outra maneira, o poeta concebe sua poesia no limite das justaposições, do embate, de uma dicotomia que, ao contrário de ser gritante, chama a atenção por ser delicada e sutil. Um pouco adiante, na contramão do culto à sabedoria e à experiência da “melhor idade”, Franchetti questiona certa tese sobre a velhice: “O tempo da velhice não amadurece/ O azedo persiste até que a fruta esteja podre”. E se alguém procura alguma redenção, ou um consolo à maneira de um Saber envelhecer, de Cícero, o autor lembra em outro poema: “A velhice tem suas vantagens: nada vem em vão/ Quase nada se recusa”.

Se Mnemosine é a grande homenageada de Memória futura, também é possível afirmar que neste breve ensaio poético o autor se credencia para exercícios mais sofisticados na seara da poesia. Ao articular imagens e sensações, Paulo Franchetti esboça um modelo exemplar de escritura sem precisar do rebuscamento gratuito. Antes, escreve em busca de um sentido, adotando uma espécie de minimalismo como premissa.

Memória futura
Paulo Franchetti
Ateliê
64 págs.
Paulo Franchetti
Professor-titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de obras como Oeste, O sangue dos dias transparentes, Nostalgia, exílio e melancolia e Alguns aspectos da teoria da poesia concreta, entre outras.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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