Habeas asas, sertão de céu! é um romance que cumprimenta o leitor com muito prazer de linguagem. Nele, o mundo se refaz e os parâmetros de tempo, espaço, sujeito que organizam nossas vidas são rearrumados por um “sentimento de significado”, nas palavras do narrador. Há nele o desejo de afirmação absoluta das forças da ficção, o que o faz desde o título exclamativo e convocatório, até a fabricação de um fluxo de linguagem radiante que, em tantos momentos, dura sem haver narrativa.
A força de convocação, e portanto de chamamento de várias vozes que comparecem no livro — a dos homens, a dos urubus, a dos peixes, a da ilha, a das águas etc. — manifesta uma dimensão ética, de formação de comunidade, muito presente neste romance. E a força de enxurrada aparece na prosa de imaginação exuberante que arrasta e embriaga o leitor, e se constrói em longas frases e espaços em branco. Vamos chamar, então, de escritura esta conjugação de forças: o lance deste livro está menos naquilo que é representado nele, e mais no ato de transformar a representação cotidiana do mundo através das palavras.
Durante a apresentação dos personagens do grupo dos homens, encontramos um trecho como este:
Aqueles homens bebiam das cachaças com os olhos a ficar cheios de ouro mirando o horizonte com os lábios fazendo punhos o que buscavam estes homens senão sonhar o naufrágio dos peixes entre as ascensões das ondas__________Miravam um nada alguns até choravam__________outros até vetavam os olhos__________enquanto o mar bailava os ocasos entre os descasos das vagas_______________certo é que eles viam algo que só se dizia nos olhos a seco__________o caminho para lá saía pelas ilusões quando pássaros batiam seus cotovelos para aquelas ilhas natas
O mundo se reescreve: a partir da cena de homens bebendo cachaça e, com o brilho da bebida nos olhos, contemplando uma ilha no horizonte de um rio ou um mar, somos logo lançados à ambigüidade de cachaças bebidas pelos olhos, de olhos repletos do ouro com que o bêbado sonha, do Eldorado (o ouro na ilha perdida) que formou o imaginário dos povos do norte do Brasil, de onde vem o livro de Arthur Martins Cecim. Somos lançados mais ainda aos jogos de palavras ao mirar os vazios em branco que cercam a frase “Miravam um nada” (confundindo leitor e personagens), ou o trocadilho “vetavam os olhos”. Vendo um nada ou não vendo, “certo é que eles viam algo que só se dizia nos olhos a seco”. Certo é que esta é uma escrita da vidência: ela não vê, ela faz ver.
Apesar de ser uma estréia, Habeas asas, sertão de céu! participa de uma tradição específica da literatura brasileira que merece mais atenção e só permanece pouco conhecida devido a fatores extraliterários. Trata-se da literatura produzida sob o signo do estado do Pará. Há, ali, um caso da literatura brasileira que ainda não foi pensado em sua relação com as literaturas do nordeste, do sudeste ou do sul, ou de maneira descolada da noção de regionalismo — com a qual, no fundo, nada tem a ver. Grande parte da literatura do Pará se constrói mesclando duas forças que apenas ali se juntaram deste modo: a de uma literatura construtivista — de que a poesia concreta é o mais claro exemplo no Brasil — e a de uma literatura de dimensão filosófica — de que a obra de Clarice Lispector é melhor exemplo.
Não deve ser à toa a coincidência de que Mario Faustino, nascido no Piauí, mas criado em Belém, foi decisivo para a divulgação dos primeiros textos da poesia concreta, nem a de que Clarice viveu um tempo em Belém. Benedito Nunes, paraense, crítico falecido há poucos meses, conheceu Clarice no Pará, é autor de um dos mais importantes livros dedicados à obra da escritora, e ao mesmo tempo um dos principais intérpretes de João Cabral de Melo Neto. Lembro ainda Max Martins (1926-2009), poeta pouco lido, e o contemporâneo Age de Carvalho, ambos de dicção construtivista e simbologia metafísica, além de Vicente Franz Cecim, seu livro invisível, sua viagem a Andara, e, agora, seu filho Arthur a publicar este Habeas asas. A reunir atualmente esta posição literária, a revista Polichinelo tem sido publicada nos últimos anos, menos como divulgação de escritores paraenses e mais como encontro entre escritores de diversas partes do país afins a essa conjugação de forças singular da tradição paraense.
Mas o que explica esse caso? Ora, a literatura do Pará possui uma referência quase incontornável: a floresta. Não qualquer uma, mas a maior de que se tem notícia. E, em se tratando de espaços monumentais, a literatura brasileira produziu o seu — o sertão. Em Habeas asas, encontramos o sertão de céu, que, mais que um espaço, é um ponto de vista, uma perspectiva. Começa o romance: “Ó: assim o céu olhava para todos”. A travessia, aqui, é vertical, pois não é a caminhada que orienta os personagens, mas o vôo: “Pois os homens precisam entender que ser da terra é ter asas do céu, pois que nós, pássaros do mundo Ó, sabemos que ser do céu é ter asas da terra”.
Estas asas que fazem a mediação entre céu e terra guardam, no contexto do romance, uma memória jurídica. O habeas corpus garante o direito à liberdade de quem tenha sofrido algum constrangimento legal. Mas o corpo libertado ainda está sob o jugo de um outro cerceamento, que é o da própria linguagem jurídica, cujas palavras controlam os corpos dos cidadãos, e têm o poder tanto de soltar quanto de prender. O habeas asas que é concedido ao leitor de Arthur Martins Cecim consiste num habeas corpus elevado à segunda potência: garante o direito à liberdade de voar — e voar, aqui, é um dos nomes para o poder transfigurador da literatura.
“Mítico”
Esta dimensão política do livro de Cecim não se separa, portanto, da escritura. Há uma aposta tão grande no poder de transformação da linguagem que o narrador chega a elevar a voz e discursar para o leitor: “Assim Sendo, conclamo-os:/ Voar e Sertanear é preciso, viver não é preciso,/ Assim Sendo, conclamo-os:/ HABEAS ASAS, SERTÃO DE CÉU!!!”. Esta grande fé, em que há pouca ou nenhuma desconfiança, acaba por requerer uma disponibilidade quase religiosa do leitor. E é ela que explica alguns exageros do estilo entusiasmado, em trechos nos quais o excesso de sentido ou de repetição acaba por diminuir, em vez de aumentar, o choque das imagens: “As sombras que se faziam entre cada fio de início de onda cediam e um meio-rosto se mostrava e desaparecia quando desaparecia reaparecido um peixe lábio e aparecido”.
Estamos diante de um romance que venceu, em 2010, o Prêmio Sesc de Literatura. A garimpagem que este prêmio faz entre autores que desejam estrear é de se acompanhar; afinal, ele permite que a literatura renove suas gerações através de algumas surpresas que possam estar escondidas pelo Brasil. A bela capa é acompanhada pela contracapa de Alice Ruiz, que, com sua sempre leve e concisa inteligência, defende que “mais importante do que inovar nos personagens e no contexto, este livro acontece e inova na linguagem, na trama entre as palavras, que é o lugar certo de um livro acontecer”. Ainda na orelha, Seraphim Pietroforte propõe que estamos diante de um “romance mítico”.
Há nestas apresentações algo que não deve passar despercebida: a defesa do romance nos parâmetros modernos. Mesmo o discurso do autor traz essa marca moderna, como de vanguarda, ao afirmar na entrevista ao Prêmio Sesc: “Sigo o caminho de uma não-literatura, algo que está na terra, antes de chegar aos livros”. Seu livro, no entanto, apenas poderá ser percebido como tal se a sua linguagem for tomada como absoluta. Ao lado dos outros lançamentos e ao lado dos romances mais conhecidos da literatura brasileira, Habeas asas parece, e muito, literatura. É até literatura exageradamente, no sentido de afirmar a autonomia da ficção com base numa escrita potente.
Por algum motivo que tem sido muito discutido nas últimas polêmicas, livros que parecem literatura costumam deixar uma sensação de déja vu, inclusive pelo seu desejo tão explícito de fazer diferente.
3 Perguntas – Arthur Martins Cecim
• Como foi o seu primeiro contato com a literatura? E o que ela representa atualmente em sua vida?
Foi quando eu tinha oito anos de idade, quando meu pai lia livros para mim e para meus irmãos, e lembro bem de Moby Dick, de Herman Melville. Também foi aos oito anos que escrevi um pequeno livro, de umas oito páginas, baseado numa aventura no mar, e nunca me esqueço do prazer intenso que eu sentia ao ver quantas páginas o escrito já tinha, e o prazer indescritível ao ver minhas letras e palavras e de imaginar que aquilo era uma estória escrita por mim, este prazer está na minha memória até hoje. Na mesma época um primo me deu de presente o meu primeiro livro: O menino dos olhos vermelhos, não lembro do autor, sobre um menino que é abduzido por seres do espaço. Foi para mim como que o “melhor” livro que já li, porque foi o primeiro que li em minha vida, a primeira sensação da leitura.
• O que você pretende com sua escrita, o que espera alcançar?
Bom, tenho um forte vínculo estético com o surreal e o onírico. Eu acredito que uma bela realidade, verdadeiramente estética, não é a comum, mas a realidade oculta, que chamo de irrealidade; surreal, que é um outro real, e onírico, que é sonho, são modos de expressão da irrealidade, para mim. Estas coisas estão escondidas, e eu gosto de achá-las, mas acho mesmo é que elas estão por todo o “aí”, nossos olhos é que têm de se despir; a escrita nada mais significa do que a possibilidade de tornar visível, real para outras pessoas estas realidades subjacentes, que podem ser um vale abandonado cheio de pássaros, uma casa esquecida numa floresta… esta estética incomum me atrai. Para mim, quanto mais irreal, mais belo: quanto mais onírico, surreal, mais estético. Porque é quando a realidade vai além de seus limites é que ela se torna estética verdadeira. A realidade é como uma mulher com um véu: seu verdadeiro rosto, o mais belo, é o mais escondido. Na minha escrita posso revelar isso, além do sabor cosmológico que é escrever.
• Por que a escolha do romance como gênero literário a ser encarado em seu trabalho de criação?
O romance é perfeito para quem gosta de criar mundo na literatura, que é meu caso: eu gosto de cosmologizar e criar outras realidades, revelar as realidades ocultas; gosto de onde há silêncio, sombra, natureza, “realidade morta”, onde os homens não pisam. A consistência do romance permite devaneio e liberdade também. No romance posso poetizar e prosear. É nisto que vejo a importância da literatura: libertar as pessoas revelando novas realidades, puxando-as para o irreal, o que é uma causa estética para mim. Então o romance é a única forma de tornar uma realidade irreal algo concreto, com nervura; a duração do romance é perfeita para mergulhar aquele que lê nas minhas irrealidades; enfim, a realidade só pode caber num gênero literário único, que é o romance. Não é necessário fazer poesia, quando em um romance há liberdade e espaço para todas as modalidades da realidade; a prosa e o verso estão na realidade, só precisam de um espaço maior onde se expressar, e este lugar é o romance. Meu fôlego é para o romance, pois nele sinto liberdade geral…