O livro do livro

Trabalho central na obra de Valéry, “Meu Fausto” foi concebido como esboço de uma comédia intelectual
Paul Valéry por Robson Vilalba
01/08/2011

Para João Cabral de Melo Neto, as idéias de Paul Valéry sobre a composição poética foram decisivas. Aquele modo de fazer planejado, a forma regular do poema sonhada antes de fazê-lo, e depois executada. O artesanato dos versos sem outra mistificação que não a do trabalho árduo com as palavras. A leitura do poema interessada no processo, não no resultado da composição. São, estas, algumas idéias que Cabral assume durante o período de elaboração do seu projeto literário. O efeito é duplamente crítico: à geração de poetas que com ele surgia, a geração de 45, que recusava a estética modernista, e ao próprio modernismo, cuja novidade não trouxera um poeta antilírico no jogo das técnicas poéticas tradicionais (Oswald de Andrade foi antilírico utilizando as novas técnicas da modernidade, como os recursos do cinema transpostos ao poema).

Para Carlos Drummond de Andrade, uma afirmação, em primeira pessoa e no original de Paul Valéry, escolhida como epígrafe de Claro enigma (1951), era a indicação de uma reviravolta pela qual o autor dos poemas políticos de A rosa do povo (1945) mostrava seu engajamento, antes de tudo, poético: “Os acontecimentos me entediam” (na tradução). O livro que acompanha esta epígrafe dividiu, por algum tempo, os leitores de Drummond entre aqueles que admiravam mais sua poesia até 1945 (como inclusive Cabral) e aqueles que a admiravam mais após 1951.

Nos dois casos, a repercussão da obra de Valéry acaba por produzir um corte. Ainda nos dois casos, o corte incide sobre a permanência de valores literários do romantismo, o que diz muito sobre a obra de Valéry, e pode nos dizer um pouco também sobre a última obra que ele compôs durante os últimos cinco anos de vida — e que deixou inacabada —, “Meu Fausto” (esboços), cuja tradução de Lídia Fachin e Sílvia Maria Azevedo foi recentemente publicada pela Ateliê Editorial.

O livro reúne dois trabalhos, Lust: a donzela de cristal (Comédia) e O solitário ou as maldições do universo (Féerie dramática), que deveriam se completar com “um número indeterminado de obras mais ou menos feitas para o teatro”, como afirma o autor na advertência. O projeto da composição, ele mesmo fáustico, realizou duas pequenas peças, também elas inacabadas, que apresentam um Fausto consciente da sua condição de mito literário, leitor das obras que narraram sua vida, ao qual resta escrever suas memórias ou se aventurar escalando altas montanhas. A situação imaginada por Valéry produz diálogos maravilhosos, ao mesmo tempo muito engraçados e analíticos a respeito da experiência estética ou da experiência histórica. Um trecho do diálogo entre Fausto e Mefistófeles pode dar uma idéia da obra.

Depois das falas de Fausto defendendo, para Mefistófeles, a tese de que o diabo encontra-se em crise na modernidade, um estranho desejo é posto em cena: “Fausto: Ouça: quero fazer uma grande obra, um livro… Mefistófeles: Você? Não lhe basta ser você próprio um livro?…” O humor produzido pela ambigüidade de Fausto, que não se contenta em ser um clássico da literatura e deseja, ele mesmo, escrever um “grande livro”, convive com um paradoxo da representação, que é encenada “em abismo”: um livro a escrever um livro, o Fausto do Fausto. Na cena, o Fausto vive numa espécie de limbo, em que nada acontece após a glória alcançada com a obra de Goethe ou com as óperas do século 19, por exemplo, somente à espera do encerramento de sua história, que, não se dando pela morte, se dará pela escrita de suas memórias. Numa das anotações dos Cahiers, dentre as diversas apresentadas por João Alexandre Barbosa no prefácio à edição, Valéry afirma que o “Meu Fausto” consiste num “diálogo semi-sério; sério no fundo e antes blague na forma”. Uma obra assim, com diversas camadas de leitura, costuma ter o saudável efeito de expandir seu público e surpreender o leitor mais atento.

Ao explicar um pouco mais para Mefistófeles a idéia do seu “grande livro”, Fausto oferece uma imagem, no mínimo, curiosa:

Fausto: Tenho minhas razões. Seria uma miscelânea que reúna minhas verdadeiras com minhas falsas lembranças, minhas idéias, minhas previsões, hipóteses e deduções bem pensadas, experiências imaginárias: todas as minhas diferentes vozes! Poder-se-á começar a leitura por onde se quiser e interrompê-la em qualquer parte…

Mefistófeles: Nada de novo. Isso o leitor já faz.

Digo curiosa pelo seguinte: o projeto do personagem Fausto é praticamente o projeto dos chamados Cahiers (cadernos), do próprio Valéry, os cadernos que passou a vida escrevendo e nos quais anotava, diariamente, toda a sorte de pensamentos e idéias, um trabalho que não tinha prazo para acabar e que, ao fim da vida, totalizou quase 30 mil páginas manuscritas. Mas não só: um livro que contenha “todas as diferentes vozes” de seu narrador-personagem também lembra alguns dos grandes livros do alto modernismo, como o Ulisses (1922), de Joyce, Em busca do tempo perdido (1913-1927), de Proust, além de, a seu modo, O som e a fúria (1929), de Faulkner.

A ironia com que Mefistófeles responde ao projeto de Fausto é engraçada e reveladora: todos estes livros são, antes de tudo, projetos de leitores que desejam transformar a experiência de leitura em livro. Trata-se de uma hipótese indiretamente produzida pelo livro de Valéry, cuja força advém em grande parte do lugar em que o leitor é colocado.

Composto pela fala
Numa passagem em que Lust, a secretária de Fausto, relê em voz alta um trecho já escrito do livro de memórias de seu mestre, compondo um jogo de vozes teatrais, encontramos o seguinte: “Tanto se escreveu sobre mim que já não sei mais quem sou. (…) Destarte posso escolher livremente o lugar e a data de meu nascimento”. Esta indeterminação que recai sobre o Fausto de Valéry se aplica, portanto, a estes “faustos” que produziram alguns dos livros mais admiráveis do século 20, o que sugere também que todo leitor tem algo de Fausto.

O grande livro desejado por Fausto não será escrito por ele: será ditado a Lust, sua secretária, que passará sua fala para o papel. O livro será composto pela fala. Valéry compôs diversos outros “diálogos”, como o Eupalinos ou O arquiteto, e seus Cahiers são escritos ao correr da pena, à velocidade da fala, além do gosto, em sua lírica, por poemas dramáticos. A fala como um procedimento de composição responde a uma preocupação não só de Valéry, mas de diversos artistas, como os citados, que, ao desejar escrever “O Livro” (como o poeta francês Stéphane Mallarmé, referência maior para Valéry), escreveram livros inacreditavelmente possíveis.

Em mais uma das anotações dos Cahiers citadas por João Alexandre Barbosa, lemos: “Quantos homens que escrevem não têm consciência de tudo o que o simples fato de escrever impede escrever. (…) Escrever é entrar em cena”. Esta observação pode dar uma pequena noção de que a escolha do texto dramático (cuja leitura é, assim como a do livro de poemas, tão preterida pela prosa de ficção) resulta da preocupação de dar conta, na obra, das diferentes vozes de si, e assim tentar escrever, inclusive, o que o autor não escreveria se não tivesse partido entre tantos personagens, sobretudo entre Fausto e Mefistófeles, no caso. Como definiu um dos personagens, trata-se de pensar, e o pensamento são os ecos da solidão.

O aspecto diabólico das obras fáusticas, como esta de Valéry, pode acabar por conduzir a algumas estranhas coincidências. Depois de tomarmos conhecimento do projeto de livro do personagem Fausto, há um novo contrato entre ele e Mefistófeles, que Fausto se recusa a assinar, pois “Acabaram-se os papéis e as assinaturas. Os escritos hoje voam mais rápido que as palavras, que, por sua vez, voam mais rápido que a luz”. Ora, não teríamos aí, a nossos olhos, uma pequena imagem da internet e, mais especificamente, das redes sociais, nas quais “todas as diferentes vozes” se manifestam num só texto que circula à velocidade da luz, ou quase lá?

Não é muito difícil dar-se conta de que estamos diante de um grande livro. Difícil é tornar-se o leitor de um grande livro: por isso mesmo os clássicos, às vezes tão famosos, são pouco lidos. Talvez também por isso esta edição de “Meu Fausto”, assim como outras de Valéry no Brasil, apresente uma quantidade significativa de textos de apresentação, com destaque para o de João Alexandre Barbosa. No ensaio, lemos a gênese do livro desde uma nota de 1919, em que Valéry projetava escrever uma “comédia intelectual”, da qual o “Meu Fausto” constitui um esboço. O ensaio interessa tanto mais porque foi João Alexandre Barbosa, professor da USP e crítico de poesia moderna (com livros pouco lidos mesmo na universidade, mas tão boas fontes de estudo, como A metáfora crítica), falecido há cinco anos, um dos principais divulgadores da obra de Paul Valéry no Brasil, a quem dedicou um livro justamente intitulado A comédia intelectual de Paul Valéry (2007).

“Meu Fausto” é, pelo que se vê, um livro central na obra de Paul Valéry. Quatro anos após a interrupção de sua escrita, o crítico francês Maurice Blanchot escrevia que este é “o livro exemplar de Valéry”, por aliar as perfeições e imperfeições de que Valéry era capaz, incluindo seu trágico e, talvez, planejado inacabamento. Trata-se, então, de uma obra que “compreende esse demônio que a nega na pessoa daquele que a cria”, como lemos no ensaio Valéry e Fausto, de A parte do fogo.

O autor é Fausto, e é também Mefistófeles. Lança-se com toda ambição, e com toda fúria à obra. As lições de Valéry, para além daquelas que receberam Cabral e Drummond, estão em “Meu Fausto” sob outras chaves de leitura — com riso e erotismo pouco falados, vale rir do diabo.

“Meu Fausto” (esboços)
Paul Valéry
Trad.: Lídia Fachin e Sílvia Maria Azevedo
Ateliê Editorial
176 págs.
Paul Valéry
Nasceu em 1871. Poeta e ensaísta francês, ocupou-se toda a vida da relação entre arte e pensamento, tendo produzido os ensaios de Variedades (1924-1945), as anotações dos Cahiers [Cadernos] (1894-1945), além de poemas (como A jovem parca) e diálogos (como Eupalinos) diversos. Morreu em 1945.
Luiz Guilherme Barbosa

É especialista em literatura.

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