🔓 O invasor eterno, a literatura e a democracia

Como a literatura pode denunciar e combater (sem ser panfletária) a violência e o extermínio perpetrados pela elite brasileira
Ilustração: Oliver Quinto
01/10/2022

O fantasma que a tudo assombra
A grotesca comemoração do bicentenário da independência brasileira promovida pela atual presidência do Brasil — com a vergonhosa adesão do comando das Forças Armadas (importante dizer: governo nenhum humilhou tanto as Forças Armadas como este) que admitiu o gasto de dinheiro público para concretizar o que, no fundo, em flagrante descumprimento das leis eleitorais e da constituição vigente, não passou de um comício de mau gosto — é fruto de um modo de pensar, de ver (e desejar) um Brasil que deveria continuar o país da desigualdade extrema, o país do genocídio colonial, o país da escravidão.

Há quatro anos, em minhas falas públicas, venho trabalhando o conceito de invasor eterno (desenvolvo-o com mais profundidade no livro Direito antifascismo brasileiro, que deve sair ano que vem pela Companhia das Letras), que designaria a permanente vontade, o incontrolável impulso, de explorar este território, esta Pindorama, a permanente opção por espoliar, sugar, assaltar destruir as almas e as riquezas naturais deste Brasil (o nome Brasil, por si só, já expõe a ideia de exploração por relacionar produto que pela avidez mercantil praticamente acabou extinto).

Busco circunscrever nesse termo, invasor eterno, a ideia da presença de um fantasma eterno que encarna nos corpos dos integrantes da elite, que a possui; esta elite brasileira preguiçosa e homicida, menos de 1% da população, que não consegue fazer outra coisa que não explorar — um clube acima do bem e do mal que não consegue construir nada que aponte na direção de uma soberania nacional de verdade, de uma independência real, que não consegue projetar justiça, que não consegue ser ética, que não consegue materializar uma nação.

Essa elite amaldiçoada (eternamente possuída pela ambição do primeiro invasor) não quer democracia, não quer os valores democráticos da constituição vigente (que foi o que de melhor produzimos na nossa história), não quer que o país dê certo, porque ela ganha com o caos, ganha com a desigualdade, ganha com a ordem do medo, da violência, da morte, que é o jeito do nosso processo civilizatório funcionar.

O escancaramento das portas do inferno provocado pelo documento intitulado Uma ponte para o futuro, oferecida pelo extremamente hábil político Michel Temer, revelou o quanto a lógica do invasor eterno — aquela que, lá em 1500, se justificou pela busca de riqueza, busca de ouro — permanece condutora suprema (expõe uma supremacia que, mesmo latente, sempre está lá) no Brasil, o quanto consegue se renovar em crueldade ainda maior (famílias inteiras morando em barracas nas praças do Centro de São Paulo, uma das cidades mais ricas do mundo, provam isso).

A condução do atual Ministério da Economia também é confirmação dessa lógica. A gestão do órgão é movida por uma moralidade de favorecimento da elite (de um modelo de sistema econômico e financeiro que só trata bem a elite) e de exclusão das pessoas pobres, da classe média baixa, das pessoas em situação de miséria — é a catedral da exclusão. Repercute uma fórmula de concentração, que deveria ter desaparecido, mas não desapareceu, estende uma violência expressada na própria distribuição orçamentária que impede a dignidade da pessoa humana, impede a realização do sonho do Estado Democrático de Direito, justo porque retira as condições mínimas de emancipação das mentes, das vozes, dos corpos, dos sonhos historicamente condenados a existir na periferia.

Se há algo de aproveitável nessa crise, é o fato de ela desvelar um espelho do qual não conseguimos escapar, um espelho que nos mostra o quanto adoecidos estamos enquanto povo, um povo que não consegue se livrar do ataque contínuo da parcela mínima hegemonizadora dessa condução suicida do saquear, saquear, saquear, não importa o que venha a acontecer com o país. O fato de o Brasil ser campeão mundial de desigualdade socioeconômica não significa nada para essa parcela (na qual estão os bancos, as poucas famílias donas das grandes extensões de terras, os grandes jogadores do mercado financeiro, grupo em que estão as grandes empresas de comunicação, os donos do agronegócio, os novos donos do comércio atacadista e varejistas, beneficiados de maneira desproporcional pela dizimação quase completa dos direitos trabalhistas).

O slogan Eu quero meu Brasil de volta, por exemplo, é vigoroso eco da voz do invasor eterno, a voz daquele homem europeu que não viu problema em escravizar e matar indígenas e negros, que, hoje, não vê problema em destruir o meio ambiente (o que pode ser mais suicida do que o antiDireito que avaliza a destruição da floresta, da natureza?, do que a exploração predatória dos recursos naturais?), a voz daqueles que não veem problema em um soldado da polícia militar do Estado de São Paulo colocar o pé sobre a cabeça de uma mulher negra da periferia, já imobilizada, e, sobre a cabeça dela, apoiar o peso do seu corpo e, assim, permanecer por segundos, minutos, torturando-a, humilhando-a, desrespeitando-a.

Estamos, todas e todos, capturados pela normalização de uma violência imposta (e aperfeiçoada — essa é a grande tecnologia inventada com a América) há mais de 500 anos, estamos dominados por uma ordem de funcionar, por uma moral pervertida, uma ética pervertida, dada há mais de 500 anos. Corpos sonâmbulos, hipnotizados (uma hipnose mantida pelo Direito brasileiro, por parte importante da magistratura, do Ministério Público, um Direito que sempre foi filtro da política e da ingerência econômica e financeira), não conseguimos escapar desse grande pacto social da morte — morte sobretudo das camadas pobres, das comunidades negras e indígenas.

A nunca democracia
Recentemente, participei, como signatário original, de uma carta em defesa do Estado Democrático de Direito, um manifesto pela Democracia (a existência de uma carta desse tipo revela o quão nos encontramos, mesmo, no fundo do poço), que foi lido na Faculdade de Direito da USP, em 11 de agosto. Difícil dizer que exista uma Democracia neste país. A constituição vigente é a que mais avançou em direção a uma conquista dessa ordem, a um viabilizar um país menos cruel, menos colônia de exploração, mas o que está nela é projeção (é garantia, mas é projeção) que precisa ser concretizada.

Penso que, apesar dos esforços de muitas e muitos, aquele primeiro invasor europeu, que fisicamente não existe mais, deixou seus herdeiros — pessoas que, neste momento, perderam o pudor de dizer em público que querem que sua liberdade (a sua arma?) de grupo privilegiado prevaleça sobre os demais, valendo-se de argumentos estapafúrdios que misturam absurdos de todas as espécies, agregando, inclusive, interpretações do cristianismo que ampararam atrocidades históricas em várias regiões do planeta —, tornou-se eterno.

É um ambiente de pressão, de pressionamento de corpos e mentes, bastante grave. Mas também é consequência do que nunca deixamos de ser: ecos da força e da fúria, do ódio e da desumanidade, do invasor eterno.

Falar em Democracia quando, por exemplo, temos indígenas sendo responsabilizados, culpados, criminalizados, pela institucionalidade que, neste momento, dirige o país, por atrapalharem o crescimento econômico — o que, no subtexto, é dizer que devem urgentemente deixar de atrapalhar (talvez não existindo mais?) —, levando a ações de ódio que nunca deixaram de acontecer, mas que se agravam nos dias atuais, é dizer para todos esses povos originários: vocês nunca terão humanidade, nunca terão paz, nunca terão dignidade, nunca terão vida, nunca terão Democracia.

Há muitas idealizações de democracia no Brasil, mas não há A Democracia, há muitas moralidades e moralismos, mas não há uma ética, uma ética constitucional, uma ética social, que inclua, de verdade, quem está no espectro das pessoas dispensáveis, elimináveis, matáveis. A tal liberdade que alguns propagam, desculpem a ênfase, é a liberdade só para o grupo deles, liberdade para ter propriedade improdutiva, liberdade para sonegar imposto, liberdade para não ser fiscalizado, liberdade para explorar trabalhadoras e trabalhadores, para escravizá-los. Há uma imensa insensibilidade decretada como padrão, como normal, como natural. Atravessa-se um momento em que os referenciais éticos não estão nas institucionalidades.

Penso que a Arte e, na Arte, a Literatura — a Literatura brasileira em sua potência atual — se colocam, hoje, como expressões de ética muito mais lúcidas, maduras e realistas do que as cometidas por parte do Poder Judiciário civil e militar, por exemplo — que vêm assumindo (sempre assumiram?), em decisões específicas, posicionamentos de amparo a lógicas neofascistas, não humanitárias, propagadoras das desigualdades etc. —, sobretudo quando essa institucionalidade aplaude convicções do tipo: primeiro eu, primeiro minha classe, direitos humanos para humanos direitos, bandido bom é bandido morto.

Ética e literatura
Nesse período de cinco anos, em que venho trabalhando com a interdisciplinaridade entre Direito e Literatura, em encontros com estudantes, magistrados, pesquisadores, servidores do judiciário, advogados populares, mestrandos e doutorandos das Letras, do Direito, da Economia, da História, da Psicologia e da Sociologia, percebi o quanto a linguagem do Direito é insuficiente, é precária, quando se trata de entender a complexidade da desigualdade brasileira, a colonialidade brasileira, a necropolítica brasileira.

O Direito tem uma língua quase infantil perto das linguagens das outras dimensões, das outras disciplinas — nele se constroem edifícios (castelos) no ar, um projeto de ilusão que gira em torno de uma linguagem capenga, quase obtusa, por não enfrentar o que tem de enfrentar. Não é de graça que grandes juristas brasileiros e europeus denunciam, em algum momento de suas carreiras, de suas análises, o Direito como uma grande ilusão.

Tenho trabalhado com a possibilidade dele, O Direito, ser a tecnologia, a linguagem, a cultura, que, em um país ex-colônia, como o Brasil, perpetua a hipnose produzida pela política (e pelos titereiros da economia e do mercado financeiro), pela opressão, pela estigmatização de quem está por baixo — no caso do Brasil, com certeza, independentemente da cor e da classe, mais do que 95% da população.

Nesse cenário, Direito é limite, é ordem — uma ordem que, nestas terras, como já afirmei, se sustenta no medo, na violência e na morte (poucos países matam tanto como o Brasil e tratam a morte, sobretudo de pessoas negras e indígenas, de maneira tão natural). A literatura seria, no campo da linguagem e — como acontece no Direito, nas decisões do Direito — dentro do compromisso de construção de narrativas, aquilo que enxerga (que projeta) além do Direito, expondo os espaços onde o Direito erra, onde o Direito é antiDireito, onde ele só serve para oprimir e chancelar a violência.

A mediação que se dá por meio da leitura, da análise e do debate de obras literárias expressivas — como, por exemplo, S. Bernardo, A festa, Querô, Viva o povo brasileiro, Cidade de Deus, Capão pecado, Eles eram muitos cavalos, Ponciá Vicêncio, Um defeito de cor, O voo da guará vermelha, Os Malaquias, Diário da queda, Pssica, Noite dentro da noite, Por cima do mar, Torto arado, Mulheres empilhadas, Solitária —, obras que fundam (ou refundam) um modo de olhar a realidade brasileira, é de uma potência única; expõem possibilidades éticas que o Direito brasileiro, no estágio em que se encontra, é incapaz de proporcionar.

Ilustração: Oliver Quinto

O poder (renovado) da literatura hoje
Não penso que a Arte, a Literatura, possa operar milagres. Pelo contrário, não acredito em Arte ou literatura engajadas. Acredito em leitura engajada, leitura criativa, em mediação sensível, madura, inteligente, crítica, ética, inclusiva. Mas não se pode desconsiderar, como já vêm apontando pensadores contemporâneos — eu destacaria as manifestações recentes de Hans Ulrich Gumbrecht[1] realizadas no Brasil —, a função que a Literatura tem ocupado ao dar um sentido ao caos proporcionado pela horizontalidade posta pela internet (esse é apenas um dos elementos do contexto geral), por meio de uma intensidade, uma epifania, que só ela, a Literatura, neste momento, poderia desencadear, permitindo que a experiência estética (a partir da leitura de certas obras) ajude no encontro de “sentimentos renovados de comprometimento , lugar, pertencimento, propósito existencial e comunidade”[2].

A Literatura — sua leitura, a mediação que proporciona, os debates, as reflexões decorrentes — sensibiliza, interfere no automatismo que é parte de nossa reificação e de nossa tragédia colonial. Na justiça, nas instâncias da máquina da justiça, o interromper a inércia opressiva, que só beneficia a tal elite, só pode se dar por meio de um esforço de diálogo (da construção de uma dialética) que admita o sentir a dor que a construção de uma sociedade justa, mais justa, demanda. O atalho de uma frase do tipo “bandido bom é bandido morto” é o oposto disso.

Obras literárias relevantes, para além do inevitável oportunismo do mercado, vêm gerando debates, aberturas, frestas, que têm destravado um repensar coletivo nada trivial. Esse lugar, revalorizado (pelas políticas públicas, pela internet, pelo tempo, pelas reações, pelos desejos potencializados), merece ser melhor estudado; a Literatura oferece uma linguagem, uma lente, uma chave (e a Psicologia percebe muito bem isso) que pode, em algum momento, confrontar o Direito que abraça a morte, que dá suporte à propagação da morte, enfrentar a muito bem calculada produção do antiDireito.

Esse Brasil condicionado pela voz propagadora da solução civilizatória autoritária por meio do jogo de todos contra todos — esse Brasil que não deixará tão cedo de ser cada vez mais miliciano, mais afetado pelos grupos de extrema direita, esse inferno só está começando, pelos grupos religiosos que, a partir da ideia de guerra santa e muita hipocrisia, assaltaram a política, o núcleo da política institucional, a comunicação, o setor econômico e até o campo financeiro —, é propício a novas leituras, novas soluções, novas transdisciplinaridades. A literatura brasileira contemporânea — a sua leitura possível, insisto — vem sinalizando nesse sentido. Há maturidade — maturidade do tipo daquela que foi desfeita com o golpe militar de 1964 (veja-se o quanto regrediu o debate público em torno do racismo estrutural brasileiro que vinha se acumulando nos anos 1950, não é pouca força do recrudescimento da falaciosa ideia de democracia racial brasileira —, há possibilidade de conexões, de empatias, de afetos positivos).

No Direito e Literatura, no viés que pesquiso, que é o do Direito na Literatura (ou pela lente da Literatura), alcançar as epifanias negativas, como trabalhou recentemente Flora Süssekind[3] — e, por outras vias, como também pesquisam e refletem alguns professores de Direito que, neste século no Brasil, vêm tratando dessa interdisciplinaridade de maneira muito interessante, como é o caso de Germano Schwartz, na sua obra A constituição, a literatura e o direito[4] —, é uma forma de estabelecer um desconforto que abale a disposição, a passividade, diante da tal inércia do poder, da opressão, da qual é lacaio o universo do Direito brasileiro. Flora trabalha com a ideia de epifania negativa, que parte da abordagem de Gumbrecht quando sublinha “o potencial de certos textos e situações para a palpabilidade, a presença, para uma percepção intensificada, do corpo, do espaço, do mundo material” — a Literatura seria a lente que exporia a imperfeição da chamada eficácia do Direito em choque permanente com o AntiDireito e da ética da violência.

A Literatura e o desmascaramento do invasor eterno
Os zumbis e os clones do invasor eterno (os possuídos pelo fantasma do invasor eterno, essa lógica sombria, autodestrutiva, que vai se renovando de ciclos em ciclos) não querem a Democracia; querem, sim, a escravidão — essa escravidão que os bancos impõem a todo o povo brasileiro (o Brasil é o único país do mundo nessa situação) —, querem que o povo continue à disposição para, não sendo reconhecido como humano, não tendo direito à dignidade, possa ser sugado, abandonado, eliminado.

A Literatura tem a potência que faz acordar, porque realiza uma verdade única, a verdade ficcional, capaz de gerar uma empatia que nenhuma outra expressão possui, trabalha com a linguagem (com o compromisso narrativo) que está justamente diante do campo em que se encontra a linguagem do Direito, com a vantagem de ser mais variada e esclarecida, mais carregada de complexidades, já que não tem o compromisso de amparar a ordem da morte, a ordem que cala, a ordem que propaga o temor (e o terror contra as pessoas subalternizadas copatrocinado pelo Estado).

Nunca foram, na história brasileira recente, tão explícitos os instrumentos de dominação — a destruição que começou com o já citado documento Uma ponte para o futuro somente se agravou —, pessoas voltaram a passar fome numa proporção que se imaginava superada.

Não é, por conseguinte, ousadia asseverar que Democracia para o povo nunca existiu neste país; mas, dentro da lógica liberal, teve um suporte significativo na redação dos artigos 1º e 3º da constituição vigente, que são os mais importantes — porque tais dispositivos, nas perspectivas da disputa histórica, política, educacional, muito mais verdadeira do que a do formalismo jurídico, fundam, em perspectiva histórica, marcos dos quais não se pode retroceder.

Ter a consciência de que não existimos como nação, de que não somos livres, não somos respeitados em nossa dignidade, não temos Democracia, penso, ajuda muito na busca pela Democracia. A elite brasileira quer retroceder ao tempo da invasão, do tal descobrimento do Brasil, da tal restauração do Brasil. A Literatura, o poder da ficção, escancara essa distância porque conta, mostra, fabula — e não apenas normaliza, ordena, oprime, como é o caso, hoje (e desde sempre?), do Direito e da política institucional.

Temos de entender que esse menos de um por 1% da população, que é a elite brasileira, é consequência direta e ininterrupta, é obsessão fantasmagórica, do invasor eterno, aquele que se pronunciava lá em Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral e se renovou quando Dom João VI decretou a “guerra justa” contra os indígenas ou quando o governo republicano, resultado do golpe militar de 1889, assumiu, nas entrelinhas (não tão entrelinhas assim), como política de Estado a eliminação das vozes, mentes e corpos negros (além, é claro, do perpétuo genocídio dos corpos indígenas), dos ex-escravizados, negando-lhes moradia, trabalho, educação, saúde, dignidade, paz.

Tempo e reflexo
Não há dúvidas de que, hoje, estamos sob o comando de uma lógica neofascista, supremacista atrelada à extrema direita mundial. A lógica, a presença, neofascista está posta.

Os neofascistas têm pavor da Arte, da liberdade real (aquela que não seja a deles, das famílias deles, dos privilégios deles), de tudo que abraça a vida e combate a morte (a morte diante da qual o fascista sempre se coloca de joelhos — a morte do outro), têm pavor de diálogo, de poesia, de alegria.

Falar de fascismo diante da trágica colonialidade brasileira, da inarredável violência estrutural brasileira, é entender que nosso modelo civilizatório, nosso escravagismo eterno — a solução moderna, fundadora da modernidade lá em 1500, do invasor eterno — é muito maior e inclinado a aceitar a retórica da violência, da eliminação do outro, da eliminação da diferença do outro, da vida do outro, do que se pode imaginar (a realidade hoje confronta constantemente a ficção).

É trágico. Um trágico que, neste momento, só a Arte, a Literatura — e o resgate ético que podem gerar, pela mediação realmente engajada e democrática —, da forma que vem sendo salientado, podem cindir, gerar frestas, aproveitar frestas, reinventar. Tenho me questionado sobre ser essa uma perspectiva ingênua, uma perspectiva ingênua demais. Penso que não é, como penso sempre que antes a ingenuidade, como desencadeadora de conexões positivas, humanitárias, humanizantes, do que o cinismo.

Há muitas democracias, muitos direitos, muitas independências (o que foi a imagem do coração do tutor, reflexo direto do invasor eterno, sendo trazida em formol para a cretina não comemoração do bicentenário da independência do país sob a moldura das Forças Armadas colocadas de joelhos em função de um comício de campanha eleitoral nunca visto na história brasileira e de figuras civis que expressam o pior do que há em termos éticos por aqui), muitas ilusões, muitas mentiras, muitos medos. Mas há um só espelho, um espelho que até agora a elite (nunca é demais lembrar que boa parte dessa elite mora fora do Brasil) deste país (com reflexos espalhados a toda gente), por não se sentir nacional, mas ainda invasora — sempre invasora, eternamente invasora —, nega-se a encarar. E a Literatura é parte da expressão (da escolha ética) que não deixa esse espelho, e o seu redentor desconforto, desaparecer.

NOTAS

[1]GUMBRECHT, Hans Ulrich. A vida da literatura. In: Vida da literatura. Organizadores Flora Süssekind e Guilherme Foscolo. São Paulo: n-1 edições, 2022, pp. 13-25.

[2]GUMBRECHT. Op. Cit. p.19.

[3]SÜSSEKIND, Flora. Epifanias negativas. In: Vida da literatura. Organizadores Flora Süssekind e Guilherme Foscolo. São Paulo: n-1 edições, 2022, p. 19-57.

[4]SCHWARTZ, Germano. A constituição, a literatura e o direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2006.

Paulo Scott

Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1966. Pela sua obra, já recebeu os prêmios Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional, APCA, Açorianos de Literatura. É autor de Marrom e Amarelo (romance) e Luz dos monstros (poesia), entre outros. Vive em São Paulo (SP).

Rascunho