O homem comprado por Deus

Em "Eisejuaz", a argentina Sara Gallardo contorce idioma e sociedade ao assumir o ponto de vista de um indígena de crenças profundas
Sara Gallardo, autora de “Eisejuaz”
01/09/2021

Eisejuaz é enorme. Alto e temido por sua força, é destinado a ser o chefe que nunca será. Lisandro Vega, nome que recebe dos padres de uma missão, é também colossal em espírito, capaz de trazer dentro de si, em harmonia insuspeita, crenças cristãs e xamânicas, integradas de maneira única. Este Também, outro de seus nomes, tem também grandeza como personagem. Inesquecível, ele é Água Que Corre, atravessando e vivendo nas fronteiras que separam religiões, idiomas, que diferenciam a existência indígena daquela do colonizador que lhe traz a peste e espanta, com seus barulhos e sujeiras, os bichos do mato.

Sua primeira aparição acontece numa crônica de Sara Gallardo, La historia de Lisandro Vega. Segundo a autora, foi numa viagem a Salta, na Argentina, que conheceu o Eisejuaz de carne e osso, inspiração de seu personagem. Trabalhando como lavador de pratos do hotel em que a autora se hospedou, Lisandro Vega teria perguntado se havia ali alguém capaz de escrever sua história; disse que há um ano esperava por esse alguém. Gallardo se propôs a ouvi-lo. Eisejuaz lhe deu fotos de diversas épocas de sua vida, sua família, seu casamento. Contou a ela de seus sonhos, repetidos três vezes por semana, em que buscava sua esposa Maurícia, e como reconheceu as ruas do sonho na época em a esposa precisou de atendimento hospitalar e acabou por não sobreviver ao câncer. Contou também seu sonho de melhorar a vida dos indígenas miseráveis como ele. É possível encontrar entrevistas recentes com esse Eisejuaz, responsável por inspirar uma das obras mais singulares da literatura argentina.

Inspirado por figura tão única, o romance de Sara Gallardo também escapa à definição fácil. Alguns de seus traços são tão pronunciados que acaba comparado a obras completamente diversas. Para uns, lembra o conto Meu tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, por seus neologismos, alguma ressonância temática, certo tom no falar; outros se lembram do Pedro Páramo, de Juan Rulfo, por seus silêncios, lacunas que cabem ao leitor preencher; a mim, vem a poesia de João Cabral de Melo Neto, que às vezes assume simplicidade tão complexa com suas repetições vocabulares, e também aborda, por vezes, a experiência de um povo miserável.

Todas essas comparações têm algo de apto, e ainda assim falham, incapazes mesmo de insinuar a linguagem de Sara Gallardo, traduzida tão bem por Mariana Sanchez. As comparações, insuficientes, podem mesmo parecer contraditórias; mas assim como o personagem Eisejuaz acumula em si contradições aparentemente impossíveis, Gallardo consegue contorcer a linguagem, escrevendo num espanhol mais chão o que se diria em wichí, idioma nativo de Eisejuaz.

Ainda assim, apesar da harmonia que reina nessa linguagem tão trabalhada, os temas que o romance aborda estão longe de harmônicos. Eisejuaz, ainda criança, é levado com os pais para uma missão norueguesa, que o batiza novamente como Lisandro Vega e lhe ensina a religião católica. Com o tempo, torna-se capataz da missão, e chega a ter uma vida tranquila, de certo nível social, chegando inclusive a ter uma bicicleta, coisa falada como símbolo de riqueza no romance.

Como Alexandre Nodari nota em texto crítico que acompanha a edição, o livro trata, em parte, de um conflito entre visões a respeito da religião, mostrando o cristianismo de um ponto de vista xamânico. Contudo, no próprio Eisejuaz, Lisandro Vega, esse conflito não existe. Nele, as duas possibilidades convivem; seus rituais persistem, mas renovados. Ele vê nos bichos e nos paus e no ar manifestações múltiplas do Deus único em que crê profundamente. Graças a essa maneira única de enxergar a presença de Deus, ele acaba expulso da missão norueguesa. Vende tudo que possui para tentar tratar os problemas de saúde da mulher, que ainda assim não sobrevive.

Apesar de todo o sofrimento, Eisejuaz, Lisandro Vega, segue firme em sua crença, tendo ouvido diretamente a voz do divino e tentando sempre entender seus mistérios. O silêncio de Deus, para ele, é sempre temporário, pois a repetição de uma voz direta e clara é desnecessária: através dos inúmeros sinais presentes na natureza ou mesmo num encontro casual, ele ouve, e cumpre. Certos poemas de William Blake afirmam que somos incapazes de abarcar, com nossos limitados sentidos, a grandeza da criação, e mal percebemos a maravilha do mundo. De algum modo, Eisejuaz, Lisandro Vega, parece escapar a essa limitação, percebendo cada elemento da natureza como o milagre que é.

Poder e sabedoria
Homem “comprado” por Deus, por muito tempo Eisejuaz, Lisandro Vega aguarda que lhe seja indicada sua principal tarefa nesse mundo, a razão por que Deus se revelou a ele. Essa tarefa vem na forma do Paqui, um homem branco que encontra às portas da morte e que, entende, lhe foi dado por Deus. Embora o chame meu, o protagonista não vê nele tanto propriedade quanto responsabilidade; ser dono de algo é ganhar a obrigação de protetor e, nesse caso, ele entende que deve proteger um homem ganancioso, traiçoeiro, que desafiará sua determinação a cada passo.

Nas idas e vindas de Eisejuaz e de seu Paqui, o livro se forma, passando pela pobreza das populações indígenas da região, pela dificuldade de muitos deles em conseguir trabalho depois de serem retirados da mata, pelas mortes indígenas causadas pela peste traga pelos brancos. Mesmo o interior da mata parece inacessível, tendo os brancos espantado animais e peixes com seus barulhos e poluição, além de assediarem os índios isolados para explorá-los, catequizá-los, ou para tomar deles a terra em que vivem.

Eisejuaz cumpre, acredita, se sacrifica para cumprir o que lhe foi pedido, e enquanto isso chora pelo seu povo, pelas outras nações indígenas, por tudo que perde ao seguir esse caminho. Ainda assim, apenas temporariamente nos parece derrotado. Mesmo quando, humano que é, abandona sua missão, se deixa levar por desejo, por ódio, por exaustão, acaba por encontrar no mundo outro sinal, outra mensagem divina — e volta.

Darcy Ribeiro afirma que os índios que moravam no Brasil durante a colonização, ao contrário do que às vezes se pensa, não se entregaram pacificamente ao genocídio, nem foram alvos fáceis. Ainda que tivessem armas mais simples, menos tecnologia, e fosse difícil organizar povos tão diversos em grupos coesos de combatentes, foram lutadores muitas vezes temidos. Impuseram derrotas ao colonizador que, em vários casos, ameaçaram a permanência europeia. É essa, afinal, a imagem que me ficou de Eisejuaz, Lisandro Vega: embora se sacrifique por sua crença, nunca deixa que isso se torne uma demonstração de fraqueza. Enxerga-se sempre nele poder, força, e não raro sabedoria.

Contudo, nessa belíssima obra de Sara Gallardo, o destino e o fim de Eisejuaz, Lisandro Vega, estão atrelados de perto aos de Paqui — e é difícil não pensar em como o nosso próprio destino pode bem estar, da mesma forma, conectado àquele de nossos compatriotas indígenas.

Eisejuaz
Sara Gallardo
Trad.: Mariana Sanchez
Relicário
240 págs.
Sara Gallardo
Nasceu em Buenos Aires (Argentina), em 1931. Publicou os romances Enero (1958), Pantalones azules (1963), Los galgos, los galgos (1968) e Eisejuaz (1971), entre outros. Ignorada em vida, sua obra foi recuperada por autores como Ricardo Piglia e Samanta Schweblin. Morreu em 1988.
Bruno Nogueira

É mestre em Estudos Literários e autor do livro de contos A síndrome do impostor.

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