O grito íntimo na vastidão

Nos contos de Emmanuel Mirdad, os dramas humanos se impõem à vasta e opressora realidade
Emmanuel Mirdad, autor de “O grito do mar na noite”
18/04/2016

“Ser homem é assumir a realidade.” Tal frase, que não admite concessões, é de Hélio Pólvora, escritor baiano falecido em 2015, e é escolhida como epítome para o livro de contos O grito do mar na noite, do também baiano Emmanuel Mirdad.

De fato, a citação é bússola eficiente para a leitura do livro (mais incisiva que as demais citações, também de autoria de Hélio, que antecedem todos os dez contos): o leitor, ao empreender essa viagem, notará que a realidade, sem filtros, será sempre o elemento dominante, cuja ação torna-se explícita nas articulações dramáticas das histórias, submetendo seus personagens sem, contudo, tragar-lhes o suspiro íntimo, lírico.

É o que ocorre em sol de abril, a título de exemplo: a personagem principal, talentosa tocadora de sanfona itinerante, acaba por ser violentada por Bené, “boa praça” que se junta a ela e a seu tio na turnê, logrando seus sonhos mais íntimos de um amor redentor para sua vida (a musicista é caolha e introspectiva). Mas a desgraça não cala seu canto; antes o tinge de um tom mais pungente e melancólico, harmonizando com as matizes agradavelmente regionais deste conto.

Assim também com chá de boldo, o conto inicial do volume: não obstante a figura amável do ancião, centro da história, e seu trato atencioso com os bisnetos e com a própria filha, a realidade está fadada a intervir, em seu modo costumeiro e protocolar: o ancião é relegado a um asilo e seus bens são espoliados pelo neto, sob a vista condescendente da filha. Mas “o mundo dá voltas” e a mesma filha não terá com quem contar, senão com o velho, quando se encontra doente terminal num leito de hospital. Caberá então ao ancião optar pela compaixão não-ressentida ou pela “pena de Talião”.

Nos exemplos acima, percebe-se um traço característico desse universo ficcional concebido pelo autor: os gestos nobres, a boa índole de um personagem nada mais são que simples elementos sem qualquer distinção dos demais que compõem a realidade: a depravação, a perversidade, a falsídia.

Isso explica a volatilidade moral das ações praticadas nesse universo: em banquete, o delegado que salva o boliviano de ser linchado num beco, atirando e matando um dos agressores, tem seu heroísmo posto em xeque no desfecho do conto, pelo comentário corrosivo do implacável narrador:

A polícia estourou a fábrica ilegal. Comandando a invasão, o delegado, que nunca teve receio em matar. Derrubou quatro. Para ele, fazia parte do heroísmo ter que matar alguém. Satisfeito e orgulhoso, libertou centenas de bolivianos (…)

Em alguns casos, um gesto humano e fraternal torna-se um mero capricho ou uma excentricidade, em uma natureza viciosa e corrompida. É o caso do narrador homossexual e devasso de bonecas que, sadicamente, observa o íntimo “processo de homossexualização” do protagonista do conto:

Tadinho do Bodão, me ligou umas quatro, cinco vezes esta semana (…) Acho que se tocou que eu sou mais compreensivo que os outros símios. Por sinal, não tô me reconhecendo (…) Acho que o Bodão é um Ken em versão BBB alfa, desses amiguinhos manipuláveis que também coleciono aos montes (…) só pra orbitar meu ego-rei.

A amoralidade desse narrador (que ecoa a dos demais no livro) é digna de nota, embora no caso acima se manifeste numa voz pouco convincente ao se autorreferir, como na última oração do trecho.

Não é o único senão a ser levantado na obra. Tanto no conto em questão quanto em receba, no qual o leitor acompanha os diversos “foras” que o personagem Pedro Henrique leva de diferentes mulheres, um elemento em especial incomoda: trata-se da maneira estereotipada que homens (bonecas) e mulheres (receba) são concebidos. No primeiro caso, como visto, os homens “de academia” são meros “símios”, cujos interesses se restringem à trindade “futebol, buceta e cerveja”; o drama do próprio protagonista está em lidar com sua ambiguidade sexual sendo uma criatura desde sempre circunscrita a esse mundo oco que, apenas na superfície, existe tal qual retratado aqui. Mas todos os seres humanos têm suas “profundidades obscuras” (como o prova o narrador do conto); região limítrofe ao estereótipo, e matéria-prima da arte.

receba tem tudo para mexer com os brios das mulheres (e não necessariamente feministas): a caracterização das diversas beldades que descartam o personagem principal, em sua maioria pelo fator financeiro, é tão estereotipada que chega a resvalar na misoginia.

No entanto, justiça seja feita, em ambos os contos há uma inversão de perspectivas realmente interessante em seus desfechos, recurso muito recorrente na prosa de Mirdad, como visto em chá de boldo, e de forma enviesada em o banquete e aqui se paga, este um sintético conto sobre a dor e a morte nas primícias da vida.

De maneira geral, em todos os contos de O grito do mar na noite, o escritor está preocupado em focalizar o mundo íntimo de suas criações, para além do espaço geograficamente variado onde circulam (o ambiente urbano da Bahia, o interior, os estados carioca e paulistano, etc.).

Estilo
A prosa do autor e seu estilo apresentam uma diversidade ampla, embora, avaliando o livro como um todo, pode-se concluir, sem receio de se incorrer em equívoco, que se trata de uma prosa mais convencional, no que diz respeito ao trato com a linguagem. Mirdad é parcimonioso no uso de metáforas, e seu campo de experimentação está antes na estruturação das histórias que na linguagem.

A esse respeito, são ilustrativos os contos não escaparás, o banquete e quase onze dias. Este, que encerra o livro, se desenvolve numa espécie de “estrutura coordenativa” como que a acentuar a autonomia dos dias (o conto é dividido em onze, que se tornam então capítulos); além disso, tais capítulos, antes de enfocarem os personagens propriamente, tergiversam para eventos ilustres ocorridos na história da humanidade na mesma data, num despropósito joyceano:

Ducentésimo octogésimo dia em anos bissextos, em seis de outubro, Emerson Fittipaldi conquistou o mundial de F1 de 1974 sob o signo de Libra, sagrando-se bicampeão; Ulysses Guimarães nasce na pequenina Itirapina, SP; o Sega Game Gear é lançado no Japão.

Nos demais exemplos, a relação forma-conteúdo é mais feliz, como em não escaparás, em que os capítulos autônomos, enfocando diferentes pessoas e seus dramas, convergem ao fim, num desfecho elíptico e tenso.

Mas apesar dessa recorrência de recursos, e como já dito, o livro é diversificado, ora em breves e expressivos contos, ora em outros mais extensos e de dramas diluídos; ora em uma prosa sintética em seus períodos, ora em períodos mais longos e líricos.

Em síntese, por fim, temos na obra um autor mais preocupado em contar suas histórias, e estas, em sua dramaticidade, exercem bem o papel de envolver o leitor. Não se fica indiferente a seus dramas, e a forma com a qual são conduzidos é eficiente e segura.

O grito do mar na noite
Emmanuel Mirdad
Via Litterarum
172 págs.
Emmanuel Mirdad
É escritor baiano, nascido em Salvador, em 1980. É autor dos livros Abrupta sede (contos) e Nostalgia da lama (poesia). Integrou, de 2012 a 2014, a curadoria da Flica, a festa literária internacional de Cachoeira, na Bahia, e também é produtor cultural.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

Rascunho