No céu e no inferno

"Caminhando com os mortos", de Micheliny Verunschk, trata de um mundo violento, feroz e esquisito, engendrado por fundamentalistas, fanáticos e messiânicos
Micheliny Verunschk, autora de “Caminhando com os mortos”
01/10/2023

O tom grave da escrita de Micheliny Verunschk dá forma viva à violência encrustada na história do Brasil. Segundo a autora, para se compreender o Brasil como nação é preciso antes explicar o que é ser brasileiro, respondendo aos genocídios, às guerras e às batalhas que se sucederam e, junto a isso, à violência religiosa e contra a mulher. Pensando no Brasil colonial, Sérgio Buarque de Holanda disse que todo brasileiro é filho de um estupro. Caminhando com os mortos fala desse mundo violento, feroz e esquisito, engendrado por fundamentalistas, fanáticos e messiânicos. Esquisito sim, porque traz o assombro de um passado brutal para muito perto de nós.

A escrita é dura, bem construída e potente, como alguém que está pronto para brigar pelas palavras e tem pleno domínio sobre o que está falando. Mas também é macia, com uma dicção nordestina, uma melodia e um ritmo que parecem amortecer a brutalidade dos fatos e das palavras.

Composto por múltiplas vozes, o romance começa com um narrador distante, apresentando uma descrição realista, com a certeza de que os fatos narrados de um modo cru serão suficientemente perturbadores para arrebatar o leitor.

Suspense e ocultamento
A cena inicial ocorre em um terreiro onde todos olham para o centro “mas ninguém consegue ter uma visão total que explique o que aconteceu”. Poucos movimentos são registrados nessa cena, enquanto alguém rumina reminiscências do que um dia fora aquele lugar. Agora, um lugar de ausências, poeira e chão estéril. Nas paredes não há mais santos nem santas, apenas “santinhos”, ou seja, propaganda de um político local.

Chama a atenção a ausência de um protagonista e tudo se passa como se um acontecimento aterrador devesse ser ocultado. E é sobre o ocultamento que se ergue o suspense. Não é preciso que nada seja explicado para que se perceba que uma coisa monstruosa ocorreu naquele lugar onde varejeiras rondam, ocupando o vazio deixado por rastros humanos. Finalmente uma revelação. Há um cadáver recém-incinerado e logo em seguida o som estridente da sirene de um carro de polícia.

A ausência de santos e a propagada eleitoral que toma o seu lugar não são à toa. Os evangélicos são iconoclastas e, portanto, aí encontramos alguma referência sobre quem são essas pessoas. O curioso, porém, é que nesse terreiro há uma carpideira que reza agarrada ao terço. O terço é um artefato católico e os evangélicos não rezam, eles oram. Esses detalhes evidenciam que aquele ritual religioso é sincrético. E, como se sabe, o sincretismo é uma das marcas da religiosidade popular brasileira.

Ainda no fim do primeiro capítulo, a narradora volta ao início do livro, em que todos estão olhando o centro do terreiro e, portanto, para a mesma coisa. Mas a interpretação do fato ocorrido parece inacessível e não é passível de ser compartilhada. É nesse momento que a narrativa nos induz a caminhar com os mortos, mortos há séculos e mortos recentes, para contar uma história ocorrida no Brasil do século 21 e que nem todos enxergam da mesma forma.

O livro prossegue com uma série de depoimentos prestados na delegacia de polícia e o leitor vai descobrindo que uma mulher foi queimada viva e que a principal suspeita de tê-la matado é a mãe. Mas não apenas ela. Nos depoimentos, outras mortes acabam sendo relatadas e outras pessoas envolvidas. A vida é um desamparo, um amontoado desarticulado de solidariedades equivocadas e de pessoas desesperadas que, por não conseguirem encontrar explicação para o próprio sofrimento, se vêm diante do apocalipse.

Na sequência dos depoimentos e dos relatos de uma perita, o leitor acompanha a vida miserável de uma família originalmente católica que mora no sertão, ou no meio rural. Porém, apesar das rezas e das súplicas, a família se vê desamparada. A vida só andava para trás, até que um templo evangélico foi construído no lugarejo, por um pastor mais pragmático e interferente, apontando outra direção.

O apocalipse nas raízes do Brasil
O fanatismo religioso conduzido ao extremo, ou seja, até a morte, é o tema do livro. Os personagens centrais são evangélicos, mas na história do Brasil a religião da penitência e do sofrimento tem raízes nos jesuítas. O messianismo foi muito bem retratado por Capistrano de Abreu e Euclides da Cunha, entre outros estudiosos, que personificaram no sertanejo o profeta justiceiro.

Lendo Micheliny Verunschk ficamos com a sensação de que esse passado persiste, em meio a recursos tecnológicos e científicos disponíveis apenas a uma parte da população. Os personagens ocupam uma franja social inatingível e isolada, exceto para os políticos e para congregações religiosas. É nesse cenário que os templos se implantam: no sertão que não se integra, onde o prefeito e o pastor oferecem oportunidades em troca de adesão e apoio.

A cultura do fim do mundo começa a ser introduzida no sertão por missionários católicos já no século 16, que pregavam o castigo como uma porta para a salvação. Examinando os principais momentos da construção histórica desse ideário, a socióloga e antropóloga Cristina Pompa mostra um longo processo de “tradução cultural e de negociação simbólica” entre o catolicismo ibérico e a cosmologia indígena nas aldeias jesuítas nos séculos 17 e 18, e depois com as “missões capuchinhas junto à população cabocla até́ o século 19”. Os fanáticos do apocalipse, segundo Pompa, demostram ter uma extraordinária força de mobilização e adesão ainda hoje, basta ver o sucesso da pregação pentecostal, “com sua poderosa carga apocalíptica” que permanece viva “nas falas do povo do sertão”.

Sempre se buscou entender o fanatismo pela fome, pela miséria e pela ignorância, ou seja, pelas condições materiais, e não pela simbologia religiosa e pelo isolamento sociocultural. Nesse sentido, o universo semântico construído por Micheliny Verunschk pode ser considerado uma chave de acesso para se compreender o fenômeno religioso no Brasil.

As ideologias religiosas dão sentido ao mundo e, acredito, o que vivemos hoje no Brasil é o crescimento de uma ideologia religiosa que tem como principal antagonista a pauta de costumes, ou seja, não é uma questão material, mas é sobretudo comportamental. É sobre a pauta de costume que vem se reconstruindo uma ideologia religiosa baseada numa visão de futuro escatológica e sincrética que prega o retorno a um mundo que se acredita já ter sido melhor.

Caminhando com os mortos prende a atenção do leitor não apenas pela relevância do tema, mas pela tensão provocada na própria escrita, pela força de passagens poéticas que evocam a ferocidade das crenças, do misticismo, e das obsessões, de tal modo que nos aproxima dos sentimentos e das justificativas de uma pessoa capaz de matar uma filha, uma irmã, num ritual realizado em nome de Deus. Violência contra crianças, que os próprios algozes chamam de “anjinhos”, contra mulheres que já foram “santinhas”. O castigo físico é visto como regenerador, assim como a morte salvadora é o modo de honrar os ensinamentos de Deus. Rituais que matam, não a pessoa que está sendo assassinada, mas o mal nela encarnado. É nisso que acreditam. Para quem a vida vale muito pouco e a solidão é imperativa, os mortos fazem companhia viva, expondo, sem ser preciso escavar, as raízes do Brasil.

Caminhando com os mortos
Micheliny Verunschk
Companhia das Letras
142 págs.
Micheliny Verunschk
Nasceu no Recife (PE), em 1972. É escritora, crítica literária e historiadora. Com o romance Nossa Teresa — vida e morte de uma santa suicida (Patuá), venceu o Prêmio São Paulo de Literatura 2015. O som do rugido da onça (Companhia das Letras, 2021) conquistou o Jabuti e o terceiro lugar no prêmio Oceanos. É autora, entre outros, de A cartografia da noite (poemas), O peso do coração de um homem (romance).
Ana Cristina Braga Martes

É socióloga e escritora. Autora de A origem da água.

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