Na trilha dos loucos

Nos contos de "Dedos impermitidos", Luci Collin desvia da morna convenção para entrar em um território que se sente à vontade, o da experimentação
Luci Collin, autora de “Dedos impermitidos”
01/10/2021

Sugestão simpática a quem adentra o novo livro de contos da paranaense Luci Collin, Dedos impermitidos, é se despir antes da ideia de tranquilidade. Como sugere o poeta Paul Valéry, ao dizer “o meu fácil me enfada, o meu difícil me guia” e ao insistir que todos os livros que lhe foram úteis eram necessariamente difíceis, a dificuldade é porta de entrada para o livro de Collin.

A questão é que ela não precisa ser encarada em absoluto de maneira negativa: a dificuldade pode fazer parte de um jogo diferente, ambicioso e, por que não?, instigante. Muita literatura de alta qualidade parte do mesmo pressuposto, aliás tão legítimo como o rival, ou seja, o livro que se deixa deslizar pela leitura sem qualquer ruído ou acidente. Na boa parte dos casos, a melhor manifestação da literatura veio de livros ruidosos e provocadores de acidentes.

Se nuns versos de Querer falar Luci diz “ter vindo segredar os contornos” e “eu fiz a escolha dos loucos”, o que o novo livro de contos aponta é para a possibilidade de o gênero ser renovado por uma linguagem diferente, uma procura por ultrapassar limites. Por exemplo, talvez seja possível esquecer a noção de enredo aplicada a conto. Embora algo de narrativa persista, em boa parte dos casos. A investigação pode alcançar a própria estrutura da fabulação.

No primeiro dos contos, Intro-, uma pessoa vai até ao shopping a pretexto de comprar um sofá, mas termina por entrar numa livraria para pedir informação e adquire um livro que nas entrelinhas parece ser o mesmo que o leitor tem em mãos, sobre o qual tece comentários ásperos: “Pra que complicar a coisa toda? Título idiota. Gosto de coisa que se entende”. A sugestão de que se trata de um comentário a respeito do próprio livro cresce à medida que esse narrador (ou seria narradora?) fala de dedos e provérbios e conclui ter levantado da cama com dois pés esquerdos: “Isso é que devia ser impermitido”. Ao mesmo tempo, se faz um cutucão ao leitor acomodado, que descarta muito facilmente com um destempero quaisquer livros que saiam dos trilhos da convenção.

Inovação da forma
Às vezes a novidade vem de uma inovação de formato. Em Dias contados, uma sucessão de vozes se articula, mas tudo em torno do mesmo tema da mortalidade e da finitude humana. Por exemplo, a sra. T pode, certa manhã, “tomar uma cápsula de cianureto em vez de sua tradicional pílula de polivitamínico”, ou melhor, até poderia, mas “isso não acontecerá pois ela jamais teve cianureto em casa”. Menos mal para a sra. T.

Noutra das narrativas do mesmo conto, uma pessoa vai até a delegacia e conta para o encarregado que o atende “que havia um corpo guardado no freezer da minha casa”. As perguntas que se seguem mostram o absurdo da situação, porque o policial interroga se: o freezer é vertical ou horizontal; você sabe algo a respeito da translação da Terra; você tem “noção de semeadura de orquídeas a partir de matrizes clássicas”. Nesse universo desconcertante, as personagens se movimentam entre inquietação, alguma (pouca) dose de surpresa, e uma tranquilidade conformada — o que, aliás, dificilmente se aplica ao caso do leitor.

Busca pela linguagem
É possível pensar numa incessante busca pela linguagem, pelas nuances, pelos experimentos formais como técnicas de despertar toda sorte de inquietudes. Se em Trato de silêncios era possível ler dois versos como estes:

Senhor eu vendo melancolia
portanto ficai longe

Neste livro de contos, ao contrário, a melancolia, se há, aparece em meio à veemência de uma procura vibrante pelas nuances de uma vida escorada em absurdos. Como diz Maria Esther Maciel no prefácio (o primeiro a aparecer numa publicação de Luci Collin, diga-se de passagem), as narrativas deste livro “abrem linhas de fuga em direção a vários outros tipos e formatos de escrita”. É como se os contos fossem potenciais aberturas para novas e incessantes histórias.

Uma frase de Florilégio talvez dê conta do recado: “As noites são indormidas e rochosas e essa história portanto não termina”. Um pouco como James Joyce, à procura de leitores insones que pudessem passar a vida a lhe decifrar a obra, Luci Collin aposta em desafios colocados ao distinto público, suavizados no entanto pela cadência que lhe vem do ritmo poético afeito a sua produção e que gera frases de alto impacto em meio aos enredos algo rarefeitos.

Ou, talvez como se encontre em Divinatório, as histórias têm diferentes constituições que levam a resultados distintos: “Uma parte é inventada e disforme, uma parte mentira, uma parte foi apagada deliberadamente e pouco a pouco”. Talvez pedaço da resposta a esta modalidade de experimentos possa ser encontrada no texto de fechamento do livro, Absoluta depuração, que parece retomar a reclamação da personagem do primeiro conto, mas agora em outra clave, a da autodefesa dos próprios procedimentos. “Respiro isto”, ela diz, para logo em seguida acrescentar: “E tudo é exercício de raios, perímetros, curvas fechadas”.

Narrativa biográfica
No mais longo dos textos, O deão não rasteja, uma nova modalidade possível de narrativa biográfica é apresentada. Assim, acompanha-se a vida de Jonathan Swift, o escritor irlandês que criou As viagens de Gulliver e alimentou ao longo da vida um grande número de polêmicas (por exemplo, com Uma modesta proposta sugeriu satiricamente que se poderia resolver o problema de superpopulação e de fome que assolava a Irlanda se as pessoas se alimentassem com recém-nascidos) num modelo de mosaico.

As vozes que se escutam no relato dificilmente são a do próprio Swift: ora a mãe, ora a empregada ou a parteira, a irmã, as amantes, a narrativa convida pessoas em torno do que será o futuro escritor para tecer considerações a respeito dele e o que aparece, claro, não é o retrato simpático de um escritor clássico que a história da literatura chancelará, mas o retrato conturbado de uma pessoa mergulhada em toda sorte de tumultos, inclusive e principalmente pessoais, vista pela ótica dos outros.

A escolha de uma frase que sintetiza isso, aliás, é do próprio Swift e abre a narrativa: “Quando aparece no mundo um verdadeiro gênio é fácil de se reconhecer: os idiotas se juntam e conspiram contra ele”. Há o severo problema de audição que resultará não só na surdez, mas talvez em loucura; há a ambição literária; a carreira clerical; a vida política. Mas tudo em breves pinceladas — talvez por isso o texto consiga ser tão contundente. É o sujeito que, como ele mesmo postula no próprio epitáfio, “se consumiu até o extremo pela causa da liberdade”.

Pequeno em formato e número de páginas, o livro de contos de Luci Collin é no entanto gigante em propostas e atentados ao bom comportamento. Resta ao leitor saber se vai se permitir entrar com todos os dedos nesta aventura.

Nascida em Curitiba (PR), em 1964, tem formação musical como pianista pela Escola de Belas Artes do Paraná e estudou linguística e literatura. Os poemas de Rosa que está (2019), os contos de A peça intocada (2017) e o romance Papéis de Maria Dias (2018) são alguns de seus mais de 20 livros publicados.
Nascida em Curitiba (PR), em 1964, tem formação musical como pianista pela Escola de Belas Artes do Paraná e estudou linguística e literatura. Os poemas de Rosa que está (2019), os contos de A peça intocada (2017) e o romance Papéis de Maria Dias (2018) são alguns de seus mais de 20 livros publicados.
Paulo Paniago

É jornalista, escritor e professor. Venceu prêmio Cidade de Belo Horizonte com  Quando termina. Publicou também os ensaios de  Outra viagem: Machado de Assis e a revolução da literatura brasileira e o romance Com meus dentes de cão.

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