Na tarde ociosa

“Marcelino”, romance de Godofredo de Oliveira Neto, explora as contradições de um Brasil em formação
Godofredo de Oliveira Neto, autor de “Marcelino”
01/05/2009

Quando peguei o livro em mãos, fiquei tenso. Não conheço o autor, Godofredo de Oliveira Neto, achei o título nada interessante, Marcelino, e as duas fotos antigas na capa, colocadas sobre a areia, perto de uma rede de pescador, cheiravam mal. Quando li a contracapa do livro, o veredicto foi seco: “Meu editor está de sacanagem comigo!” Afinal, o que se poderia esperar de um livro cuja contracapa diz: “Um pescador de ‘pele cor de canela escura e cabelos escorridos’ é bruscamente invadido por torrentes impetuosas que levam à descoberta do sexo, da perfídia e da política varguista dos anos quarenta. O belo e virgem cafuzo, cercado por peixes e pássaros em deslumbrantes praias sulistas, traça o caminho dos heróis, vive suas contradições e paga com a carne e com a ingenuidade a construção de uma nação brasileira tecida nas hesitações do Palácio do Catete”. Armadilha na certa, o editor deste Rascunho está me castigando.

No entanto, e aí vem a grande surpresa, enquanto a leitura ia correndo fácil, fui desmontando minhas opiniões pré-concebidas montadas com base no que havia visto fora do livro, e percebi que tinha em mãos um romance que, se não é uma obra-prima, pelo menos garante algumas horas de boa diversão e entretenimento. Certamente, discordo do que é dito na contracapa do livro, de que Marcelino (o protagonista) tem uma “densidade psicológica raramente alcançada na literatura brasileira contemporânea”, que Marcelino (o livro) “é um mergulho nas entranhas da história do Brasil e na alma da nação brasileira”. Noves fora a pretensão um tanto quanto exagerada ali, é um bom livro.

Marcelino é um pescador cafuzo que vive na Praia do Nego Forro, próxima a Santo Antônio de Lisboa, na Ilha de Santa Catarina. Seu mundo consiste na pesca, na lida com seus passarinhos e na vida com os amigos pescadores. A cada verão, seu universo é invadido pela família do ex-senador e alto funcionário do governo federal Nazareno Correa da Veiga di Montibello. O ano é 1942, época em que o governo Vargas resistia aos seus impulsos naturais de aderir ao Eixo e ensaiava uma maneira de se aliar aos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. É neste cenário instável que Oliveira Neto ambiciona colocar seu personagem como uma síntese de um momento de transição, de um Brasil em formação, duvidoso de seu próprio caráter, dividido entre um poder longe demais de seu povo e um povo ainda um tanto quanto inocente. Além disso, Marcelino também é um homem em maturação, virgem para o sexo mas já sabendo o que deseja para aplacar os desejos do corpo. Logo, são dois entes em transição para a maturidade. Nesse paralelo, Marcelino é envolvido em uma trama para forçar o governo Vargas a aderir a um dos lados da Guerra.

Rapidamente, nos vemos envolvidos pela história de Marcelino e ficamos desejosos de saber que destino o autor lhe reserva ao longo do livro. Será que ele vai sucumbir à tentação da filha do Senador, Sibila, sua antiga amiga dos verões pueris mas agora transformada mulher? Ou será que ele cairá nas mãos da mais que experiente governanta da família, a polaca Eve? Ou ainda, será que ele assumirá o estereótipo do “pescador inocente bonitão” que traçará a mulher do senador, a socialite Emma? E ainda, como diabos o pescador conseguirá se entranhar na vida nacional a ponto de chegar perto do núcleo decisório para mudar a história do País para algum lado? Todas as perguntas são muito boas, e são elas que nos fazem pegar o livro com vontade.

Instável
No entanto, em algum momento Oliveira Neto parece que perde a mão para contar a história. A relação entre Sibila e Marcelino, tão explorada no começo da história, vai se enfraquecendo ao longo da narrativa até sumir no mapa. A relação entre o pescador e a governanta, que em determinado ponto é muito quente, depois fica meio que perdida entre a trama política e a confusão sentimental. A mulher do senador é pouco explorada na trama, e até mesmo o senador parece meio perdido na história. Essas relações interpessoais, mais sugeridas que exploradas de verdade, ficam parcialmente em aberto no texto. O que poderia ser considerado uma virtude, caso elas abrissem espaço para nossa imaginação. Infelizmente, não é o que acontece, pois elas são até um certo ponto pouco profundas, sem chances de grandes nuances.

Em alguns trechos do livro, principalmente quando Emma desata a falar da vida na Capital Federal, de seus hábitos e costumes, sabemos que é o autor colocando para o leitor a realidade cotidiana daquela época, daquela gente. No entanto, a impressão é que aquela fala está fora de lugar, e que se dá a voz a um personagem perdido no texto até para dar-lhe um sentido de existência. Em um determinado ponto do livro, quando Marcelino viaja para o Rio de Janeiro, há todo um grupo de personagens que praticamente desaparece da narrativa, sem explicação. Ficaram em Florianópolis, sabemos disso, mas e aí, o que mais fizeram?

Outro ponto que pode estranhar um pouco é a riqueza do vocabulário empregado por Oliveira Neto. Claro, escrever bem é uma virtude, usar todo o vocabulário da língua portuguesa da maneira correta também, mas em alguns momentos a riqueza vernacular arrasta a leitura, em vez de auxiliá-la. Fica algo semelhante a um escritor erudito tentar escrever um cordel, algo não soa bem. Novamente, reafirmo, não há uma palavra fora do lugar, mas a profusão delas causa uma certa estranheza, principalmente nas cenas mais picantes da trama.

Por fim, confesso que fiquei um pouco incomodado com a maneira um tanto quanto abrupta que o autor termina a aventura de Marcelino. Primeiro, ela é abrupta na maneira como a trama política chega ao seu desfecho. É inesperada como um bom policial deve ser, mas ela não é construída de maneira gradativa. De repente, a solução à trama aparece ali, quase do nada, e fim. Segundo, é radical também a mudança no discurso para falar do destino de Marcelino após o fim da trama política. Passamos de uma realidade bem concreta para um plano mais onírico, quase sagrado, sem que previamente tivéssemos mais contato com essa possibilidade. Como o livro nasceu de uma idéia de roteiro para cinema, como o próprio autor diz, fico imaginando um típico filme brasileiro alternativo, em que o final colocado ali o é por falta de opções mais lógicas. Marcelino merece o fim que tem, mas talvez não merecesse a maneira como o teve.

Lendo esta resenha, parece que Marcelino não é bom. No entanto, se deixarmos as pretensões de lado, podemos encarar o romance numa boa, sabendo que teremos alguns bons momentos de leitura, alguns instantâneos da vida brasileira daqueles anos, um pouco de psicologia, ao acompanharmos o crescimento de Marcelino, algum thriller policial com fundo político, e só. Um livro adequado para uma tarde ociosa, mas não mais que isso.

Marcelino
Godofredo de Oliveira Neto
Imago
300 págs.
Godofredo de Oliveira Neto
Nasceu em Blumenau (SC), em 1951. Em 1973, foi morar em Paris, onde se graduou em letras e relações internacionais pela Sorbone, alcançando os títulos de mestre e doutor. É autor de diversos livros, como Menino oculto, Faina de Jurema, Marcelino Nanmbrá, o manumisso, Pedaço de santo, O bruxo do contestado, Oleg e os clones e Ana e a margem do rio.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho