Na cama de Procusto

"O próximo da fila", de Henrique Rodrigues, apresenta uma vida crua, dura, sem concessões
Henrique Rodrigues, autor de “O próximo da fila”
07/12/2015

A mitologia grega fala de um bandido terrível que se chamava Procusto. Costumava abrigar em sua casa todos os viajantes que passavam pela serra de Elêusis. Depois de alimentar, dar de beber e conquistar a confiança do visitante, o punha para deitar em uma curiosa cama. Os pequenos eram amarrados e esticados até ficarem do tamanho do móvel. Para os maiores o castigo era ter os membros cortados na medida exata da cama. Claro que ninguém escapava à morte, ficando Procusto com os bens de suas vítimas. E assim teria vivido até ser assassinado por Teseu.

O protagonista do romance de estreia de Henrique Rodrigues, O próximo da fila, deitou na cama de Procusto, e por ser pequeno foi esticado até crescer de fato. Mais que um romance de formação, o enredo despe todos os charmes, todo o glamour do subúrbio para falar de uma vida crua, dura, sem concessões. Uma vida em que a vaga de ocorrências vai se desenrolando até virar um terrível tsunami, tudo bem ao gosto das lendas gregas.

Aliás, a tragédia é uma das maneiras mais tradicionais de se traçar o perfil do subúrbio, sobretudo o carioca, como é o caso do romance em questão. Dela se aproveitou Lima Barreto e Nelson Rodrigues, passando por Marques Rabelo, Vinicius de Moraes e até Chico Buarque. Naturalmente que Chico e Vinicius em suas peças retrataram um ambiente quase folclórico dos morros com seus sambas e seus gingados. Mesmo assim sobrevive aí o espírito suburbano, onde os dramas crescem à medida que se desvenda a psicologia de seus habitantes.

Voltando a Procusto e a Henrique Rodrigues, estamos diante de um romance de formação, mas neste caso tal amadurecimento se dá a fórceps. O protagonista nasceu de uma paixão entre o filho de um militar e a empregada da casa. O militar, claro, não admite o casamento do filho e o expulsa do lar com a mulher grávida; uma cena bem subúrbio, bem Nelson Rodrigues. Esta mãe, por sua vez, traz nas costas um episódio de violência com um pai bêbado e promíscuo, lembranças antigas do tempo em que morava na roça. No entanto, teve uma vida confortável com o marido que se tornou exímio vendedor. E a tragédia retorna com força quando este marido morre subitamente.

Todos os sonhos se dissolvem e o filho mais velho, o narrador e protagonista do romance, se vê obrigado a trabalhar. E daí chega à lanchonete e cresce, espicha, tornando-se um excelente caixa, não sem antes queimar as mãos num acidente de trabalho. Mesmo tímido e com todas as cicatrizes que carrega, conhece uma moça também tímida com quem namora. E tudo parece rumar para um final feliz, com o caixa cursando uma faculdade de jornalismo, quando o mundo volta a desabar em tragédias, e tragédias, e tragédias…

O autor fala, enfim, de uma sociedade menor e de uma geração em transe, uma geração que se formou num instante de poucas esperanças, com a hiperinflação dos anos Collor e as músicas desesperadas do Legião Urbana.

Nivelamento
Há em todo texto de Henrique um sentimento de impessoalidade. Começa pela falta de nome de todos os personagens. Narrado na primeira pessoa, fala sempre do gerente de bigode, da tia rabugenta, do padrasto bêbado, do irmão, da tia benevolente, do negro, da treinadora. E todos escritos em letras minúsculas. Ou seja, além da impessoalidade, temos um nivelamento pelo patamar mais baixo e insignificante da sociedade. E isso atinge mesmo os mais grados da trama, como o dono da rede de lanchonetes, o franqueado.

O autor fala, enfim, de uma sociedade menor e de uma geração em transe, uma geração que se formou num instante de poucas esperanças, com a hiperinflação dos anos Collor e as músicas desesperadas do Legião Urbana. Além disso, no caso de O próximo da fila, uma geração suburbana espremida entre as injustiças inerentes ao meio e a baixa expectativa de ascensão social. Tanto que quando o protagonista vence o monstro do vestibular, recebe dos amigos mais ciúme e inveja que solidariedade e parabéns sinceros.

E assim segue esta sociedade tão previsível e medíocre.

A própria menina tímida e de tranças renega o ambiente familiar onde grassa a miséria do desleixo. Além, claro, a inveja por ter ela uma possibilidade real de futuro como professora, posto que cursou letras em uma faculdade. Seu namoro com o protagonista, assim, é o caso de dois iguais num microcosmo de diferenças. Eles se assemelham, mas tudo em volta deles destoa, fere suas sensibilidades e esperanças.

O casal, o protagonista e sua namorada, sente a necessidade de afirmação profissional e não é a lanchonete nem a loja de roupas onde ela ganha a vida que os satisfaz. Eles querem mais e, ao contrário de seu universo e mesmo dos jovens de seu tempo, lutam por estes novos e possíveis espaços. Em parte conquistam seus sonhos, mas a vida terrível onde estão inseridos não os perdoa.

O enredo, enfim, sobrevive às indagações e inquietudes da literatura atual, mas sua linguagem formal soa com o ar de dèjá vu, de passadismo. Talvez Henrique Rodrigues buscasse se aproximar o mais possível dos mitos literários que lhe orientaram nesta travessia, mas premido pela necessidade de modernizar a linguagem a empobreceu. Este fenômeno pode ser visto com mais clareza no poema Elegia da passarela que transcreve no final.

Enfim, um romance divertido, com bons lances de suspense e emoção, mas que se perde ao querer se fazer raso, coloquial, suburbano demais.

O próximo da fila
Henrique Rodrigues
Record
192 págs.
Henrique Rodrigues
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ). É doutor em Letras e trabalha em gestão de projetos de incentivo à leitura. Participou de várias antologias e publicou livros infantis e juvenis. Lançou o livro de poemas A musa diluída e organizou as antologias de contos Como se não houvesse amanhã e O livro branco. O próximo da fila é seu primeiro romance.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

Rascunho