Muito além do cazzo!

Resposta de Maria Célia Martirani à resenha de Adriano Koehler, publicada na edição 106 do Rascunho
01/03/2009

Um texto de crítica literária que, a priori, se volte aos motivos psicológicos, sociológicos, mercadológicos e todos os demais “lógicos” possíveis, que tentem sondar as intenções do autor ao criar a obra a ser analisada é, para dizer o mínimo, arriscado e obsoleto. Ao assumir tal postura, o olhar do crítico revitaliza as teorias anacrônicas e tendenciosas, que se pautavam muito mais nos elementos circundantes à obra do que à obra literária, enquanto entidade autônoma. O maior perigo da crítica que não parte do texto em si, mas se prende a elementos adjacentes a ele é o de desfocar-se do objeto estético, incorrendo no estereótipo e no preconceito.

Pois bem, Adriano Koehler assim parece ter agido em relação a meu livro: Para que as árvores não tombem de pé/Affinché gli alberi non cadano in piedi [resenha publicada no Rascunho de fevereiro #106], distorcendo e reduzindo meu projeto ficcional ao que procurarei esclarecer a seguir.

Primeiramente, parece um tanto quanto exagerada a preocupação do crítico, no que se refere à minha consciente opção de editar o livro em português e italiano. Se é que há alguma vaidade nisso — grave defeito do qual me acusa — posso afirmar que ela reside no fato, não tão irrazoável, de que sou ítalo-brasileira e tive acesso, desde pequena, ao italiano como minha segunda língua, não só aprendida em casa, em uma de suas riquíssimas formas dialetais, mas também no Colégio Dante Alighieri de São Paulo, onde se aprende, há quase cem anos, o italiano oficial. Esse dado de minha biografia não precisaria vir à tona, assim como também seriam irrelevantes os fatos de que venho trabalhando com esse idioma há muito tempo, como professora e recém defendido na USP (agosto de 2008), na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, justamente na área de Italianística, minha tese sobre o autor italiano contemporâneo Alessandro Baricco, a quem tive a oportunidade de entrevistar, trabalho que será editado, em breve, no Brasil e na Itália.

Outro detalhe, totalmente irrelevante, é que o primeiro texto que publiquei, na edição de número 104, deste Rascunho: Quando o olhar se faz visão foi o mesmo que apresentei, no último congresso da Associazione Internazionale dei Professori di Italiano (AIPI), em italiano.

Mas, muito antes desse bilingüismo acadêmico, há a vaidade, sim, “mea culpa”, de ter como sangue ancestral, o mesmo sangue vulcânico que palpita nos veios das encostas do Vesúvio e que, para a indignação de meu crítico, jamais justificaria uma opção por escrever um livro em português e italiano. Afinal, para quem inicia uma resenha crítica, com a erudição do riso fácil, da chacota, por meio da pergunta: “Ma che cazzo”???, seja dificílimo perceber que há infinitas razões, ben oltre il CAZZO, que possam justificar minha escolha… Quem sabe, diante dessa refinadíssima pergunta, eu pudesse responder, fazendo jus aos melodramáticos neo-realistas italianos, pioneiros em quase tudo que se sabe, hoje, sobre a sétima arte: per motivi di CUORE!!!

E os demais?
Voltando ao rol das acusações, a certa altura, me deparo com a seguinte convicção, quanto aos descendentes de italianos: “[…] Poucos deles ainda falam suas línguas natais, e quando digo línguas é porque muitos deles falavam em dialeto, em especial o vêneto, e não sabem ler em italiano oficial […]” De fato, a questão da língua italiana, mesmo na Itália, é encarada por lingüistas como Giovanni Nencioni¹, por exemplo, como “eterna”, já que os dialetos continuam, em todas as suas formas, a representar a língua viva, que resiste ao que a padronização do italiano standard exigiu, a partir dos movimentos políticos de unificação daquele país. Mas em que enciclopédia está escrito que muitos brasileiros de origem italiana só conheceram ou falaram, em suas casas, o vêneto? Com certeza, essa é uma característica da região Sul de nosso país, em que a maior parte de ítalo-descendentes é vêneta, mas e quanto aos demais oriundos, espalhados aos quatro cantos do vasto território nacional?

Com esse profundo comentário, meu crítico parece ter esquecido os descendentes da Itália meridional, que tanto contribuem para a riqueza do Brasil, concentrados, por exemplo, numa cidade como São Paulo…

Acrescentando outro importantíssimo detalhe à apreciação de meu livro, conclui que tais leitores não seriam capazes de ler em italiano oficial. Além de subestimar a capacidade média de aprendizado do brasileiro que procura conhecer esse idioma, se esquece que a italiana é uma das colônias mais numerosas e representativas, num país que, desde as origens, conhece a miscigenação. Somos brasileiros mescolati (miscigenados) e por que não admitir, com verdade e altivez, essa idiossincrasia? Por que, então, um livro em edição bilíngüe, mescolato, portanto, chancelado pela Travessa dos Editores causa tanto estranhamento, como uma aberração?! Só porque a língua para a qual escolhi traduzir meus contos foi a italiana?

O que dizer, então, das produções ficcionais recentes em que há recortes, bricolagens, paráfrases e procedimentos paródicos, intertextuais, que incorporam expressões idiomáticas diversas, tirando proveito da chamada Babel das línguas, do atualíssimo e fecundo campo das traduções?

Por que uma proposta editorial, que parte de Curitiba–Paraná–Brasil e apresenta ao leitor a possibilidade de uma fruição a mais, em outro idioma, causaria indignação, em vez de potencializar algo positivo, um diferencial???

Passo, agora, a outro gravíssimo problema, pelo qual fui, ironicamente, desafiada. Refere-se aos riscos que assumi, por conta da tradução. Mas não estou só, quando busquei uma tradução “possível”. Meu crítico, que inclusive cita o site Ultralingua como bússola tradutória da internet, certamente deve conhecer o ensaio de Italo Calvino: Tradurre è Il vero modo di leggere un testo² ou o que W. Benjamin propõe, quanto à tarefa do tradutor. Se bem me lembro, ao transpor o francês de Baudelaire para o alemão, não haveria a obrigação de fazer Baudelaire soar como se tivesse escrito em alemão, mas, contrariamente, manter a sensação de que o leitor alemão pode ter algo diferente. Enfim, assegura o filósofo que a tradução pode ser uma oportunidade para permitir que uma língua estrangeira influencie e modifique a língua em que uma obra está sendo traduzida. De outro modo, estará sempre numa atitude defensiva, qual seja a de preservar, embalsamar o estado presente da própria língua do tradutor.

Modo provisório
Talvez, valesse a pena, sugerir ao Ultralingua usado por meu crítico, acrescentar esse pequeno parágrafo de Benjamin: “Toda tradução é apenas um modo provisório de conformar-se à diferença das línguas […] Não constitui o maior elogio possível a uma tradução, sobretudo na época da sua origem, dizer que ela soa como se tivesse sido escrita originalmente naquela língua”³.

A propósito, no que se refere a meu livro, bom saber que a única pretensão foi a de ter tido a consciência plena desse exercício tradutório como possível, assumindo os riscos necessários que toda tarefa de tradução precisa assumir.

Meu crítico, também, demonstra certo desconforto quanto ao que ele chama de “referências” que faço, ao introduzir minhas narrativas curtas. O que me espanta, nesse tipo de observação, é que eu imaginava que procedimentos desse tipo, que eu conheço como “epígrafes”, mais que utilizados na produção ficcional moderna e pós-moderna, por meio da intertextualidade, não causassem “estranhamentos”. O que proponho é, apenas, um diálogo entre o que crio e o que outros já criaram, em reverência aos autores com os quais “esbarrei” ou, até mesmo (e por que não???) li e admiro! Não fosse por esse caminho, como compreender, por exemplo, a epígrafe mantida na íntegra, no original em alemão, da décima elegia das Elegias de Duíno de Rilke, a abrir cada uma das partes do romance italiano Castelli di rabbia de Alessandro Baricco?

Preciso reconhecer, agora, sim que, talvez, quando aponta o tal “lirismo exagerado” com que escrevo, meu crítico acerte, pois concordo que isso, em tese, poderia “atravancar” a leitura. Mas, por que ele apenas se deteve a alguns fragmentos de narrativas, em que o lirismo aparenta exceder o limite que, não sei quem, determinou? Não estaria, nesse caso, forjando uma análise tendenciosa, já que se digna apenas a comentar, de passagem, dois dos quarenta e um textos que compõem a obra? Apenas por uma questão respeitável e subjetiva de gosto?

Por que a parte querendo acusar o todo, nesse caso, demonstra o preconceito dos que, a partir do estereótipo, não admitem que o lírico pode ainda existir e bem, como prosa poética, em meio à avalanche de tudo o mais?

Qualquer crítica será bem-vinda, se for consistente e não induzir o leitor a distorções sobre a obra em análise. Infelizmente, essa é a impressão que me vem, a partir da resenha de Adriano Koehler sobre meu livro: superficialidade e falta de abrangência na análise dos textos.

Finalizo por aqui, dirigindo-me aos leitores do Rascunho que me conhecem, sobretudo pelos textos que venho escrevendo no caderno Viramundo, dedicado à literatura estrangeira. A eles, ofereço o que escrevo e parafraseando, LIRICAMENTE, de Helena Kolody, gosto de pensar que as palavras escritas são como flores que se soltam, ao longe, na correnteza e que, algum dia, alguém distraído, possa colhê-las, de surpresa…

Há também um blog, de Jayme Ferreira Bueno: http://jaymebueno.blogspot.com e o de Franco Fuchs: www.francofonia.blogspot.com, além da crítica de Noel Nascimento e Marcelo Franz, sobre Para que as árvores não tombem de pé/ Affinché gli alberi non cadano in piedi. Cito-os apenas como exemplos, a quem queira conferir, dos que ainda fazem da crítica séria uma profissão de fé.

NOTAS
¹ NENCIONI, G. Di scritto e di parlato. Discorsi linguistici. Bologna: Zanichelli, 1988.

² CALVINO, I. Tradurre è Il vero modo di leggere un testo. In: CALVINO, I. Mondo scritto e mondo non scritto. Milano: Mondadori, 2002.

³ BENJAMIN, W. A tarefa do tradutor. Tradução de Susana Kampff Lages. Em HEIDERMANN, W. Clássicos da teoria da tradução. Antologia bilíngüe: alemão-português. Florianópolis: NUT/UFSC, 2001:211-2.

Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

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