Metal contra as nuvens

Állex Leilla problematiza o vazio da adolescência numa época que parece carecer de sentido
Állex Leilla, autora de “O sol que a chuva apagou”
01/10/2009

Na noite de 9 de outubro de 1994, durante um show da Legião Urbana no Rio de Janeiro, Renato Russo disse, a respeito da canção Giz: “Essa é a música de que mais gosto, é a letra de que mais gosto, é a coisa que eu mais fico feliz por ter conseguido fazer, eu espero que o som esteja bom pra vocês, e que vocês cantem com a gente”. Giz é uma canção do álbum O Descobrimento do Brasil, de 1993, e tem na letra um discurso melancólico a respeito de alguém que se foi — um amor que aconteceu e acabou, mas que não desaparece. A letra fala, em determinado momento: “Desenho toda a calçada/ Acaba o giz, tem tijolo de construção/ Eu rabisco o sol que a chuva apagou/ Quero que saibas que me lembro/ Queria até que pudesses me ver/ És parte ainda do que me faz forte/ E, pra ser honesto,/ Só um pouquinho infeliz/ Mas tudo bem”.

Giz é uma balada, uma em meio às muitas músicas que credenciaram Renato Russo (1960-1996) como um dos mais talentosos letristas, e compositores, da música brasileira recente, sobretudo do chamado rock brasileiro, especificamente brasiliense. Russo fez escola. Muitos tentaram, em vão, seguir os rastros dele. Ainda hoje, anos depois, mais de uma década passada, há gente tentando ser Renato Russo. Mas não há mais Legião Urbana (1982-1996). Hoje, quem presta atenção em letras de canções? Agora, quem está a fim de encontrar vida inteligente no discurso de um cantor? Há discurso nas canções brasileiras em 2009? O Brasil do tempo da Legião Urbana não existe mais. Mas a banda deixou rastros, marcas — e isso marcou muita gente.

A escritora baiana Állex Leilla, nascida em Bom Jesus da Lapa no dia 21 de novembro de 1971, deu nome a seu mais recente livro a partir de um fragmento da canção Giz, de Renato Russo. Seu fragmento final diz o seguinte: “Eu rabisco o sol/ que a chuva apagou…”. Állex, então, deu à sua novela, publicada agora em 2009, o seguinte título: O sol que a chuva apagou.

Depois do começo
O livro não apenas dialoga com a canção, como tem no universo musical a sua ambientação. O sol que a chuva apagou coloca em cena adolescentes de uma banda de rock brasileira. Thiago, um dos músicos, é gay. Ele sofre pela ausência de seu ex-namorado, que morreu há algum tempo, e, durante a maior parte da relativamente breve narrativa, estará sozinho. A trama problematizará a dor, o sofrimento de Thiago, o que dialoga com a letra de Giz, de Russo, que fala de alguém que se foi, mas foi porque esteve, e deixou um legado emocional.

O adolescente Thiago vai superar o problema. Thiago é um herói, talvez um anti-herói, que se transforma antes do fim. Ao final do livro, haverá uma surpresa, que não é tão surpreendente assim — há algumas pistas deixadas ao acaso, ou não, ao longo das 48 linhas e entrelinhas do livro. Felipe, o líder e vocalista da banda, vai se descobrir gay também, apesar de negar e nem mesmo desconfiar de que era gay durante a maior parte da narrativa. O sol que a chuva apagou termina com a insinuação de que Thiago e Felipe vão transar e começar a ser felizes juntos, pelo menos durante algum tempo. “E depois do começo/ O que vier vai começar a ser o fim.”

Állex realizou uma obra que fala de adolescentes com uma voz narrativa adequada ao tema e ao universo mental e emocional dos personagens: a narração, o eu que conta, é um tanto limitado, simplório, não maduro, mas perfeitamente adequado ao assunto — e isso pode ser apontado como o grande mérito da autora.

Além disso, há alguns outros temas abordados, como, por exemplo, a performance de muitos escritores brasileiros contemporâneos, a exemplo do que se lê nas páginas 23 e 24:

Nada de novo no front: resenhas de livros, alguns filmes, contos sobre a velha história de marido que mata a mulher ao se saber traído. Variações de Machado de Assis ou de Nelson Rodrigues, e muita, mas muita repetição cafrenga de Bukowsky. Os novos escritores brasileiros acabaram de descobrir que as mulheres são inimigas mortais e precisam ser humilhadas, é o grande salto qualitativo, há derivações aos montes, pomarola, rabichola, bandierola, camisola, sabe o Cão o que mais.

O Cão, uma outra maneira de nomear o capeta, Belzebu, aquele não se deve pronunciar, é um nome, expressão recorrente em meio a essa narrativa que fala do vazio que é, ou pode ser, a existência dos adolescentes brasileiros, os adulteeens ou kidults, que se afogam em álcool, drogas e música pop. Os personagens centrais dessa trama encontram-se, durante a maior parte do livro, entediados, entre viagens, shows, ensaios e flertes. Quase não conversam. Querem — o querer significa consumir — alguém, para justamente consumi-lo, como se fosse carne, ou um sapato, um filme na tarde do domingo, ou uma tarde na Disneylândia. Não fazem nada. Seguem, deixam-se ir, let it be.

O sol que a chuva apagou fala da tragédia que é ser adolescente, entre lágrimas, canções, porres, ressacas e muita solidão. (Ser adolescente, acima de tudo, é buscar um discurso pronto em letras de músicas, como as escritas por um sujeito como Renato Russo?)

O sol que a chuva apagou
Állex Leilla
P55 Edições (Coleção Cartas Bahianas)
48 págs.
Állex Leilla
Nasceu em Bom Jesus da Lapa (BA), em 1971. Escreveu os livros de contos Urbanos, Obscuros e O livro dos elefantes e o romance Henrique. Participou das antologias 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira e Tanta poesia. Professora de Produção de Texto e de Teoria da Literatura, é formada em Letras pela UFBA, onde fez mestrado em Letras e Lingüística. Vive em Salvador (BA).
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho