Memória, tempo e morte

"Flor de pedra", de João Anzanello Carrascoza, trata da perenidade da memória e da fragilidade da vida
João Anzanello Carrascoza, autor de “Flor de pedra” Foto: Marcos Vilas Boas
01/05/2025

Flor de pedra, de João Anzanello Carrascoza, apresenta um feito singular: transforma um cemitério em protagonista e narrador de uma saga que oscila entre o lirismo e a reflexão filosófica sobre o tempo, a memória e a própria existência. Com ecos do realismo fantástico e inspirações perceptíveis de Memórias póstumas de Brás Cubas, o romance se divide em duas partes: A vida até agora (Livro I), que revisita o passado do cemitério e daqueles que por ele passaram, e A vida daqui em diante (Livro II), que começa com a transformação da casa do coveiro em biblioteca pública, compondo uma rapsódia que imita a desordem arquitetônica dos pequenos campos santos e a imprevisibilidade da existência humana.

O Livro I é composto por 112 capítulos, enquanto o Livro II reúne 76 capítulos. Em ambas as partes, os capítulos são curtos, o que confere um ritmo ágil à leitura e intensifica a fragmentação da memória e do tempo na narrativa.

Desde as primeiras páginas, percebe-se a escolha estilística do autor por uma prosa poética, marcada pela musicalidade e pelo uso de figuras de linguagem, como a personificação do próprio espaço sagrado, que se humaniza e se torna testemunha da condição humana. O cemitério de Cravinhos, desprovido de “atrativos”, como ele mesmo se define, é um arquivo de memórias, um campo onde a morte repousa e também se ressignifica.

A estrutura fragmentária do romance, semelhante a uma rapsódia, mimetiza a própria aleatoriedade das memórias. Episódios aparentemente dispersos convergem para uma reflexão maior sobre a finitude e a continuidade da vida por meio da recordação. Esse efeito é potencializado pelo recurso da anáfora e da repetição, como nos capítulos XV: Sempre é hora, mas nunca é a hora e XVI: Quando eles concordam que chegou a hora, nos quais o uso insistente de “justo agora” e “pelo menos” dramatiza a impotência humana diante da morte.

Carrascoza, com sua linguagem elaborada e densa, transforma um espaço de fim em um lugar de início, ressignificando a existência para além do túmulo. Flor de pedra é, acima de tudo, um romance sobre a perenidade da memória e a fragilidade da vida, um tributo à nossa efemeridade e à força das lembranças que resistem ao tempo. Um livro que, como um epitáfio bem escrito, reverbera muito depois da última página.

Espaço da memória
Desde as primeiras linhas, o cemitério se apresenta como sujeito da narrativa: “E eu, eu sou apenas o cemitério da pequena cidade de Cravinhos”. Essa declaração estabelece o tom do romance, em que um espaço tradicionalmente associado ao silêncio e ao fim assume voz, subjetividade e reflexão. Como em Memórias póstumas de Brás Cubas, a voz narrativa se distancia do homem comum para oferecer uma perspectiva transcendental e atemporal.

O cemitério é mais do que um abrigo aos mortos — ele se torna guardião da história. “Pelo meu intermédio, é possível rastreá-la.” Assim, Carrascoza redefine o conceito de memória, conferindo-lhe materialidade. O cemitério armazena lembranças e lhes dá forma, preservando-as contra o esquecimento. Essa ideia de memória como algo guardado e transformado em forma concreta também ressoa nas reflexões de Italo Calvino (1990) sobre as “cidades invisíveis”. Para Calvino, o espaço transcende o físico, sendo um símbolo carregado de múltiplos significados, em que a história das pessoas e seus destinos se entrelaçam. O cemitério de Carrascoza, como um espaço simbólico, ressignifica essa ideia, tornando-se um lugar onde vida e morte se entrelaçam, preservando memórias como um reflexo de uma narrativa que ultrapassa o visível.

Dimensão memorialística
No Livro II, essa dimensão memorialística se amplia com a criação da biblioteca anexa ao cemitério. Esse espaço se torna metáfora da permanência do saber e da continuidade dos vínculos humanos por meio da literatura, mostrando que, assim como os mortos, os livros também carregam memórias e histórias de tempos passados. Esse conceito de permanência e continuidade por meio da literatura também pode ser interpretado a partir do pensamento de Maurice Blanchot, que argumenta que a morte não é o fim, mas uma presença que atravessa a vida. No romance de Carrascoza, o cemitério testemunha essa continuidade entre a vida e a morte, funcionando como um portal entre as gerações, onde as memórias permanecem vivas, transformadas em símbolos como os livros na biblioteca.

Essa ideia ressoa ao longo do romance, enfatizando a fragilidade da memória e a necessidade de preservação — seja por meio dos livros, das lápides ou das histórias transmitidas oralmente.

Linguagem poética e simbolismo
A prosa poética de Carrascoza é marcada por um jogo constante entre tempo e destino. No capítulo V (Advertência), o narrador subverte a ideia da morte como fim absoluto: “porque a vida, quando vê outra vida se findar, obriga-se a resistir”. Essa reflexão ressoa no conceito filosófico do eterno retorno, sugerindo que os mortos permanecem na materialidade dos vivos — seja por meio de memórias, objetos, ou até mesmo na própria terra que os acolhe.

A tensão entre efemeridade e permanência se intensifica no Livro II, no qual o narrador passa a refletir sobre a pandemia, que introduz um ritmo acelerado de despedidas (“Foram quase vinte mortes em menos de trinta dias.”). O cemitério observa, perplexo, a dor dos que ficam e percebe que a perda é mais avassaladora no porvir dos familiares do que no instante do falecimento. Esse ritmo acelerado de despedidas também pode ser interpretado com base nas Cidades invisíveis, de Calvino. Para Calvino, as cidades existem não apenas como locais físicos, mas como imagens simbólicas das relações humanas e do tempo. O cemitério, ao se tornar um observador dessas despedidas, transforma a pandemia em um ponto de reflexão sobre o ritmo acelerado do tempo e sobre como as histórias, as memórias e os próprios espaços são constantemente moldados e remexidos pelo fluxo do tempo.

Carrascoza conduz sua narrativa com um apuro estético notável, criando imagens sensoriais e jogos sonoros que evocam o Simbolismo. O capítulo Vozes murmurejantes ilustra essa musicalidade: “Vão vagar nos velhos vórtices velozes dos ventos, vãs e vulcanizadas”. Esse aspecto também pode ser associado ao simbolismo calviniano, em que a estética do espaço e da narrativa transcende o físico e o concreto, transformando-se em um meio de reflexão profunda sobre os grandes temas da vida e da morte, com o espaço atuando como um reflexo das emoções humanas e da efemeridade da existência.

No Livro II, o próprio título Flor de pedra se torna um símbolo central. O narrador reflete sobre sua própria existência, oscilando entre a rigidez da pedra e a efemeridade da flor (“Flor de pedra, eu era e sou.”). Esse contraste sintetiza a condição do cemitério: fixo e eterno, mas repleto de histórias fluidas e passageiras. O autor nos conduz a um universo onde a linguagem narra e também modela a percepção do tempo e do espaço, tornando a leitura uma experiência sensorial e filosófica.

Aceitação do incontrolável
Flor de pedra é uma experiência literária singular. A escolha de um cemitério como narrador expande os limites da narração tradicional e a prosa poética de Carrascoza reafirma sua posição como um dos grandes estilistas da literatura contemporânea brasileira.

O Livro II acrescenta uma camada ainda mais existencial à obra, explorando a aceitação do incontrolável (“Aceito que, a cada instante, estou menos vivo, e que chegará o tempo de estar tão morto quanto aqueles que para cá se mudaram.”) e a impossibilidade de reverter a morte (“Com exceção de morrer.”). A reflexão final do narrador — que aguarda sua própria morte — encerra a obra com uma expressiva imagem de serenidade e inexorabilidade (“Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.”).

No fim, Flor de pedra nos lembra que a existência é efêmera, mas a memória, mesmo frágil, resiste — seja na terra, nos livros ou na própria linguagem. Uma obra para ser lida e relida, como um epitáfio em constante reescrita. Leitura essencial para aqueles que buscam um romance que emociona e, ao mesmo tempo, provoca profundas reflexões sobre o sentido da vida, do esquecimento e da permanência.

Flor de pedra
João Anzanello Carrascoza
Faria e Silva
240 págs.
João Anzanello Carrascoza
Nasceu em Cravinhos (SP). É autor dos romances O céu implacável, Inventário do azul e Trilogia do adeus, além de diversos livros de contos, entre os quais Tramas de meninos e Aquela água toda. Sua obra já recebeu os prêmios Jabuti, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, da Fundação Biblioteca Nacional, APCA, da Cátedra Unesco e o Candango, além dos internacionais Radio France e White Ravens.
Luciana Ferreira Leal

É professora de literatura da Universidade Estadual do Paraná (campus Paranavaí).

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