Inovação e experimentalismo

Resenha de “Alguns aspectos da teoria da poesia concreta”, de Paulo Franchetti
Paulo Franchetti, autor de “Alguns aspectos da teoria da poesia concreta”
01/04/2013

A poesia concreta é um marco na produção literária e artística brasileira da segunda metade do século 20. Pensar na poesia concreta significa antes de tudo pensar na revista Noigandres, lançada em 1952, inicialmente proposta por Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. O programa da revista apresentava todo um perfil experimental, e o nome dado à publicação é a confirmação de um percurso de trabalho que tinha a linguagem como alvo. O que estava sendo colocado era o “trabalho sobre a linguagem”.

Preciosismo verbal e certa desenvoltura auto-irônica já indicam o distanciamento com poéticas anteriores. O abandono do verso tradicional por uma “sintaxe espacial” e pela experimentação da/com a página se delineia e se afirma nos demais números de Noigandres:nº 2 (1955), nº 3 (1956), nº 4 (1958). Neste último é publicado Plano-piloto para a poesia concreta, que, ao lado de Situação atual da poesia no Brasil, de Décio Pignatari, é um programa da nova poética. Plano-piloto… tinha ligações diretas com o Plano Piloto planejado por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, que pretendiam construir no “nada” e num ambiente inóspito a nova capital do país.

No segundo número de Noigandres, saem Ciropédica ou a educação do príncipe, de Haroldo de Campos, Rumo a Nausíaa, de Décio Pignatari, e os poemas espaciais Poetamenos, de Augusto de Campos. Nesse mesmo ano, 1955, durante o Festival de Música de Vanguarda do Teatro Arena, é usada pela primeira vez a expressão “poesia concreta”, termo emprestado das artes plásticas. O jogo com a linguagem, a experimentação e ruptura com os versos tradicionais e a “brincadeira” com a página imprimiam um caráter de plasticidade à própria escrita poética. De fato, no campo das artes plásticas esse termo já era usado para denominar as composições mais racionais, geométricas e, portanto, não-figurativas.

A esse trio concretista outros nomes aos poucos vão se agregando, como os de Ronaldo Azeredo, Wlademir Dias-Pino, Ferreira Gullar e outros mais que tiveram uma participação na I Exposição Nacional de Arte Concreta, realizada em São Paulo, em 1956, no Museu de Arte Moderna (e no ano seguinte no Rio de Janeiro). Poemas-manifesto, quadros e esculturas apresentavam-se ao público — um fluxo contínuo entre literatura e artes plásticas. Uma exposição que recordaria em alguns aspectos a Semana de Arte Moderna de 1922.

Princípios e negações
A quarta edição de Alguns aspectos da teoria da poesia concreta, revista e ampliada por Paulo Franchetti, professor titular de Teoria Literária da Unicamp, é uma grande contribuição para os estudos literários. O livro tem como ponto de partida todo o trabalho desenvolvido para a dissertação de mestrado defendida em 1982, mas, como o próprio autor afirma, “A cada nova edição, considerei a possibilidade de atualizar o livro e a bibliografia, incorporando ao texto as conclusões que foram surgindo nos trabalhos aparecidos nesse intervalo. Terminei sempre por decidir mantê-lo tal como foi originariamente pensado, dentro das limitações do seu tempo e do seu espaço […]”.

Como já está enfatizado no título do livro, o trabalho de Franchetti se propõe a uma leitura atenta e cuidadosa dos textos da teoria da poesia concreta. O objetivo é tentar refletir sobre as articulações desse grupo, sobre suas postulações, sua estética, sem deixar de olhar para as contradições que fizeram parte desse movimento, as mudanças de rumo, as rupturas e discussões dentro do próprio grupo. Como coloca Franchetti, também em outro ensaio, a “poesia concreta não é, portanto, o nome de um conjunto de procedimentos, mas de uma prática poética e crítica orientada por alguns princípios e negações que é possível reconhecer na variedade dos textos e que são reafirmados como conjunto coerente por um discurso teórico-crítico muito persuasivo”.

A poesia concreta, para alguns críticos, é vista como o primeiro “produto de exportação” da poesia brasileira, para retomar a expressão de Oswald de Andrade. Com efeito, a partir do final da década de 1950 há um movimento para além das fronteiras nacionais. Na Alemanha, Max Bense organiza em Stuttgart uma apresentação do grupo Noigandres. Na Itália, são organizadas algumas exposições em Milão, Pádua e Roma, e os poetas brasileiros estabelecem contatos com a neo-vanguarda italiana, o grupo dos novissimi (Nanni Ballestrini é um deles), que mais tarde formam o Gruppo 63. Mas, aqui, também não se deve esquecer do OuLiPo francês.

Percurso complexo
A necessidade de novas formas, novos ares, novos rearranjos fazem com que os concretos produzam discursos críticos, textos teóricos sobre o fazer poesia, publicados nos mais diferentes jornais do país: Jornal do Brasil, Correio Paulistano, Diário de São Paulo, Correio da Manhã. Nesses escritos, a ligação entre arte e techné (atividade produtora) fica clara. Para muitos críticos, além das relações com o formalismo, os futurismos italiano e russo, o dadaísmo e o surrealismo, um ponto crucial para a poética concretista é o texto de Stéphane Mallarmé Un coup de dés jamais n’abolira le hasard (1897), poema em que a própria estrutura, verbo-visual, assume um papel fundamental. Maiakóvski e Marinetti, ao lado de Apollinaire e Soffici, com a desintegração de Joyce e o imagismo de Pound, são outras forças operantes fundamentais na reflexão prática e teórica do grupo concretista. Além, é claro, da lição da montagem com Eisenstein, da nouvelle vaugue e do intenso diálogo com a arte pictórica e com a escultura por meio de Picasso, Braque, Mondrian, Volpi, Klee e Giacometti. Não se pode deixar de lembrar a importância poética-intelectual que a atividade da tradução teve e exerceu nesses poetas. Basta lembrar que Haroldo de Campos traduziu o Jogo de dados de Mallarmé.

Alguns aspectos da teoria da poesia concreta é dividido em quatro emblemáticos capítulos que apresentam reflexões sobre o percurso desse grupo. Os títulos são significativos e oferecem ao leitor uma trilha pelos meandros desses textos que tratam do fazer poético. “A constituição do projeto da poesia concreta: momentos iniciais (1955-1956)” é o primeiro e foca justamente esse momento de idéias efervescentes e de idas e vindas para a elaboração da revista. “A apresentação e a defesa do projeto da poesia concreta (1956-1958)” é o segundo capítulo que adentra nas problemáticas e questões trazidas pelo grupo, o “plano-piloto”, a desintegração da sintaxe, o nonsense. “O ‘pulo da onça’ e outros saltos igualmente interessantes (1958-1962)” e “Geração de 45 e outras idéias correntes e cruzadas” encerram o volume de Paulo Franchetti, acompanhados de uma conclusão, da bibliografia atualizada e de mais dois textos, o adendo da primeira edição e o apêndice da quarta, que foca a relação entre poesia e técnica.

A questão para Franchetti é pensar nas possibilidades oferecidas por esse grupo por meio das diferentes escrituras (texto crítico, poesia, ensaio, tradução, diálogo com as artes em geral), um percurso poético sem dúvida complexo, que muitas vezes ficou cristalizado em estereótipos, como o de grupo fechado e limitado a “algumas regras de escola”. Na verdade, o que o professor de Teoria Literária coloca em evidência ao refletir sobre diferentes momentos da trajetória concretista é o esforço de inovação teórica e experimental.

Alguns aspectos da teoria da poesia concreta
Paulo Franchetti
Unicamp
200 págs.
Paulo Franchetti
É professor titular de teoria literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Publicou, entre outros, Nostalgia, exílio e melancolia — Leituras de Camilo Pessanha, Estudos de literatura brasileira e portuguesa, O essencial sobre Camilo Pessanha e Haikai, antologia e história.
Patricia Peterle

É professora de literatura na UFSC.

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