Ficções da memória

"Lar,", de Armando Freitas Filho, é memória da obra do poeta e também dos livros que ele não escreveu
Armando Freitas Filho por Ramon Muniz
01/09/2009

O vigésimo nono livro de poesia de Armando Freitas Filho, com poemas escritos entre 2004 e 2009, traz orelha precisa: “Lar, não é um livro de memórias, mas pode ser um livro da memória”. No primeiro caso, assumiria o poeta a condição de sujeito das vivências passadas trazidas à página, como se fatos que pudessem ser reportados com suposta fidedignidade. Na segunda alternativa, a memória é que seria o sujeito dos versos, a mãe do livro e do poeta. Este, enfim, está sujeito a ela: às vozes que a compõem e decompõem. Ao que nela vacila e recua, se embaça e se esvai. Ao que por ela se educa e ao que com ela se choca. Ao que, afinal, é o seu verdadeiro princípio, e o da escrita, seja factual ou fictícia (e supondo que haja realmente diferença entre fato e ficção): o esquecimento. Sujeitos ao esquecimento, poeta e memória não se repetem, não retornam, tão somente, e tanto, se descriam e se recriam:

Há o que se empilha, inominado
inanimado
perto ou na parte mais ferida do coração
migrando para outro peito, outra vida
dentro da família.

É o esquecimento a possibilidade de um futuro no passado, a possibilidade da criação no devir dos homens, a partir desta impossibilidade do resgate enquanto tal, pois o que passou, se passou, não volta; não passando, é presente, entre ausências, se tudo se move, se rompe, se despede, para apresentar-se involuntariamente mais uma vez, de modo novo: “Anamnésia construída pelo fato/ e pela imaginação: vai do anátema/ ao enaltecimento, expressos em alta voz/ até ao murmúrio cifrado”. Habitaria o “murmúrio” o bloco inicial da obra, Primeira série, desprovido de fio de condução e com poemas sem título a anotar fragmentariamente os anos príncipes do autor. A “alta voz” ecoaria no segundo bloco, Formação, com poemas intitulados a objetivar a subjetividade pungente no primeiro. O terceiro e último, Numeral, cujos poemas advêm de uma numeração ad infinitum (“Contar é se cortar no gume de cada dia”), dá continuidade à série homônima começada em 2003, do livro Numeral nominal, incluso na coletânea Máquina de escrever, em que o tempo se sublinha ímpeto maior dos escritos do poeta desde então.

Nesses termos, falar em autobiografia ipsis litteris nos pareceria quase insultante à capacidade criativa de um poeta que, há décadas, vem produzindo regularmente obras de reconhecida verve imagística. A poesia não deixa de comparecer na medida — ou melhor, na desmedida — das aparentes confissões: “Ao passar a limpo, me sujo”. Para alguém ser leal ao passado, precisaria não se ter esquecido de nada do que viveu; precisaria não ter a experiência deste agora; precisaria não ser o outro que já é no momento em que se lê e (se) escreve; no momento em que o lemos e o/nos escrevemos.

Conflitos
No momento em que Armando Freitas Filho se lê e se escreve, ele é o mesmo e vário. O gago de sempre, a criança e o jovem em conflito com a família, com Deus, com a Igreja Católica e a sexualidade, embora o maduro humano que pondera suas inquietudes com outra respiração. Com outro corpo, este núcleo rítmico e imagético dos versos-vasos sangüíneos de Freitas Filho, sempre tomado de visceralidade, a despeito de qualquer cerebralismo na construção dos poemas (“Escrever a partir da coreografia/ difícil imposta pelo pensamento/ do corpo”).

No momento em que a memória e o esquecimento lêem e escrevem Armando Freitas Filho, as figuras materna e paterna se espraiam com o mesma convulsão, contradição e o embate/combate com que se misturam o outro pai e a outra mãe deste livro, a toda hora, aqui mencionados porque dele (des)educadores: o esquecer e o lembrar. Na leitura de um título como Lar,, o subseqüente à vírgula fica como que esquecido para que, a um só tempo, seja o esquecimento lembrado, a própria vírgula lembrada, ou seja, para que não passe despercebida aos nossos olhos e reivindique seu lugar ao sol e na sombra, graças ao qual sofremos a experiência do que segue em aberto, em suspenso. Lar, abdica de um aposto como se a destituir-se da previsibilidade de uma evocação tradicionalmente bucólica e nostálgica. Afinal, o mais esperado — o mais memorável — após um “Lar,” seria a expressão “doce lar” e parece ser essa doçura o que não vem pela memória das amargas, ácidas, cáusticas, salgadas e até acre-doces cenas pretéritas, mas nunca somente e simplesmente doces:

Escrevo nas costas da mãe
conspurcada pelo amor
nas costas dos tios empertigados
pela indiferença e sarcasmo
na cara dos primos exemplares
reescrevo, corrijo, fazendo
pressão com o lápis rombudo
para marcar minha dissidência
na família programada, mas
sob os olhos sérios do pai
que me desencurva…

Este Lar com vírgula se divorcia do imaginário do aconchego, da segurança, do encontro apaziguador com o si, com a casa pessoal e íntima (“A casa, mesmo se não desenhada/ por mão de criança/ mesmo de pedra e cal, parece/ trêmula”), para casar-se com o próprio adultério de suas motivações: a insegurança, o desencontro, a casa pessoal e íntima despersonalizada e pública por conta dos outros que nela também habitam e a constroem, sempre inacabada ou mal acabada, inclusive no que tange à sua dimensão facial acneica e purulenta. À sua voz, gaga e imperfeita, como a memória. Um lar com vírgula se inscreve sem o ar que precisaria para completar uma palavra adiante, para anunciar o doce lar que fica para trás do que se vê ofegante, ansioso e cioso, na ansiedade e insaciabilidade de não se bastar com o que já lhe é bastante. Porque uma fala só pode tropeçar no muito que tem a dizer e que, por causa disso, não ganha voz de uma vez; ou só pode ganhá-la desta forma, tropeçando, porque indizível, ou apenas dizível no fracasso da pronúncia.

Por essa razão, dispensável a contraposição entre forma e conteúdo, posto que há apenas a unidade do que se diz (não dizendo) e do como não se diz (dizendo), isto é, gaguejando, e que, apesar dos descompassos, se transfigura em versos rítmicos e velozes ante a surpresa das síncopes. Pois bem compassados e vertiginosos são os versos deste poeta, mesmo que beirem muitas vezes o prosaísmo mais descritivo e dissolvido (às vezes, não) pelos enjambements. Julgar que esta escrita é ousada no conteúdo (por se querer e se assumir, pela primeira vez na carreira do poeta, autobiográfica), mas não na forma (por repetir recursos estilísticos já muito explorados por ele, como aliterações, assonâncias, paranomásias), pode esquecer-se de que este é um livro da memória em sentido pleno, o que significa que os outros livros de Freitas Filho também neste se co-memoram, sob a mesma força com que estariam — ou pareceriam estar — esquecidos. Assim, temos uma obra, a priori, tentando ser fiel à trajetória — literária e pessoal (haveria separação?) de quem a delineia e por isso não precisa preocupar-se — para afirmar-se grande — com inovações e audácias formais, mas apenas com a inovação do passado que não desiste de ser presente e futuro. Com o quanto de novo e virgem reside no antigo e maculado. O quanto essa escrita, já amadurecida e reconhecível mesmo que não apresentasse assinatura, pode se sentir infante e se estranhar com uma anônima ou heteronímica autoria — se este livro, sendo da memória, é sem autor (se o esquecimento o assina anonimamente) e de muitos autores, das personas que perfazem o eu que um armando (não) é, uma vez muitos e nenhum, Freitas e Filho, neto e pai, marido:

O que não sei de onde veio
vem do meu pai, do pai dele
do silêncio de um, próximo
superposto ao do outro, longe (…)
através
do filho que me fez de carne
e chega ao neto, ao filho
do seu filho, e a meu filho.

Memória dos outros livros, Lar, também é memória dos livros que o poeta não escreveu, mas, lidos, gostaria de ter escrito: dos autores que amou (e, por isso mesmo, odeia?), pais de sua escrita com os quais se engalfinha, ou mesmo deuses como o Deus católico com o qual duelou. Das referências a grandes nomes de nossa literatura (Manuel Bandeira, João Cabral, Ferreira Gullar, Ana Cristina César…), é Drummond o predileto no que diz respeito ao enfrentamento estético (no duplo sentido). A invejável estética do gauche mineiro se traduz, incrivelmente, na de sua “face azulada, sem marca”, contraposta à de Freitas Filho, cuja “noite adolescente tem espinhas/ implacáveis de pus”. Em um “escritório irritante”, no lugar de uma drummondiana “oficina irritada”, não há o “menino antigo”, mas o desejo de “ficar com o rosto igual” ao dele ou esperar “que o tempo pare e comece/ a corroer a pedra impecável da cara/ que me afronta”.

Escrever o tempo, no tempo, graças ao tempo, significaria, enfim, em Lar, poetar segundo a demanda daquilo que, inegavelmente, é o que realmente interessa e embala o ser humano: a vida e a morte. A ousadia, então, mais do que do poeta, nossa, e necessária, e urgente, consistiria em vencer, em vida, a morte invencível, fazendo dos dias finitos infinitos. Daí, talvez, o tão obsessivo bloco Numeral, em que o poeta enumera infinitamente sua finitude e, na palavra poética — eterna —, se imortaliza.

Lar,
Armando Freitas Filho
Companhia das Letras
128 págs.
Armando Freitas Filho
Nasceu no Rio de Janeiro em 1940. Foi pesquisador na Fundação Casa de Rui Barbosa, secretário da Câmara de Artes no Conselho Federal de Cultura, assessor do Instituto Nacional do Livro no Rio de Janeiro, pesquisador na Fundação Biblioteca Nacional, assessor no gabinete da presidência da Funarte. É autor de Palavra, Dual, À mão livre, 3×4 (Prêmio Jabuti de Poesia, 1986), De cor, Números anônimos, Fio terra (Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional, 2000), entre outros. Reuniu sua obra poética em Máquina de escrever (2003).
Igor Fagundes

É poeta e crítico literário.

Rascunho