Falso romance

"O mirante do Baixo Amazonas", do paraense Raimundo Morais, apresenta uma narrativa tosca e poluída por discursos enciclopédicos
Raimundo Morais, autor de “O mirante do Baixo Amazonas”
28/02/2019

O paraense Raimundo Morais é um exemplo de autossuperação. Nascido em Belém, nas últimas décadas do século 19, cresceu acompanhando o pai no trabalho de prático, condutor de embarcações fluviais. Assim, dominou a ciência dos acidentes hidrográficos e topográficos que se escondem nos rios amazônicos, tornando-se também piloto experiente. Autodidata, retornou à capital para atuar no jornalismo e ocupar cargos públicos. Salomão Larêdo, em sua dissertação de mestrado, Raymundo Moraes — Na planície do esquecimento, apresentada ao Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Pará, revela alguns momentos dessa biografia romanesca, na qual não faltou o assassinato — ao que parece, em legítima defesa — de um jornalista, a fuga para Manaus e, depois, à Bolívia. Eram os anos conturbados que antecederam a Revolução de 1930, episódio-chave da perene instabilidade republicana, cujas sucessivas crises experimentamos até hoje. Larêdo revela inclusive o perfil sedutor de Morais, a quem o filho chama de “silencioso déspota de fêmeas”. À parte seus dotes físicos, o que chama nossa atenção é o sucesso alcançado por um de seus livros, a coletânea de ensaios Na planície amazônica, que, entre as décadas de 1920 e 1930, superou a marca de 19 mil exemplares vendidos, fez parte da renomada Coleção Brasiliana, cujos volumes ainda são disputados nos sebos, e chegou a ser traduzida para o russo. Fatos que confirmam o julgamento, segundo Larêdo, de Humberto de Campos: “(…) É um escritor vitorioso que inverteu a frase de César, pois venceu, viu e chegou, desarticulou no Brasil a mecânica dos sucessos literários, conseguiu, de um ponto remoto da selva amazônica, impor-se ao país inteiro”.

No que se refere à ficção, o autor produziu três romances, cujas histórias retratam diferentes regiões da Amazônia: Os igaraúnas, O mirante do Baixo Amazonas e Ressuscitados. O segundo, a respeito do qual falaremos a seguir, é o único com data de publicação certa: 1938.

O mirante do Baixo Amazonas abre com o protagonista, Florêncio Timbira, paraense, engenheiro que agora se dedica à fazenda herdada de uma avó. Sua presença, contudo, é apenas uma desculpa para a longuíssima descrição não só da paisagem que o ginete vislumbra sem apear do cavalo, mas dos pormenores da geografia, num estilo que repete, em diferentes trechos, as modulações da frase euclidiana. Semelhante ao que ocorre na parte inicial de Os sertões, o vocabulário técnico torna impossível ao leigo visualizar o panorama. Há duas louváveis tentativas de estilizar o detalhamento — ao comparar os maciços guianenses a um “bando silencioso de gigantes que andassem de bruços, roçando o peito no chão” e sugerir, diante do relevo entrecortado de rios, que o “cavaleiro, em vez de rédeas, parecia ter na mão um remo” —, mas ambas se perdem no emaranhado de “enfeites petrográficos”, “grimpas de arenito”, “restingas sinclinais” e “arenitos caulínicos”.

O problema se repete — veja-se o parágrafo que abre o Capítulo 3:

(…) O solo exsicado emitia reverberações de escamas na superfície do Amazonas. Fronteirando pelo montante o ponto que se remarca, branquejava a cidade de Monte Alegre, trepada num platô serrano que serve de batente à escada gigantesca encostada ao Ererê.

É possível imaginar, com algum esforço, a superfície do rio refletindo algo do solo ressequido; as linhas seguintes, entretanto, não compõem uma descrição, mas, sim, mero exercício de estetismo pretensioso, incapaz de recriar o cenário.

O autor não impõe limites à permanente tentação de injetar seus conhecimentos científicos. No Capítulo 4, por exemplo, o sonho febril do engenheiro é sequestrado pelo narrador e se transforma em mais uma aula de geologia, botânica e pinceladas de antropologia — com tal exagero, que passamos a compreender a finalidade do romance: produzir novos ensaios. Em nome desse objetivo, compõe-se um enredo primário, que poderia ser utilizado num verdadeiro romance com relativo sucesso, mas que se perde nas sucessivas demonstrações de conhecimento enciclopédico, pafioso. Fere-se, assim, uma das regras básicas da ficção: permitir que o leitor se identifique com algum personagem, encontre-se nas suas escolhas, nos seus medos, nas hesitações e certezas que marcam seu cotidiano, de maneira a perceber, em si mesmo, alguma parcela da verdade que nasce de uma ilusão do verdadeiro.

A incapacidade do autor para a ficção se reafirma no Capítulo 5, que inicia com o detalhamento do “coberto” amazônico, “revelação geobotânica” construída graças ao auxílio da velha e conhecida retórica nacional, em que os adjetivos se irmanam à fraseologia supostamente culta no intuito de, quem sabe, conceder ao autor alguns minutos de vanglória:

Na que chamou de Oreades, região de platô campestre, parece-me entrever o coberto, encantado sulco alpestre, à semelhança dum rio sinuoso e verde que houvesse, por um milagre da natureza, volvido em pastagem sob a linha astronômica do Equador. Derivando imaginariamente no lombo serrano com o álveo tapetado de gramíneas agrestes, as margens desse curso por mim fantasiado, altas cortinas de folhagens, invocam a selva arbórea dos altiplanos, também classificada pelo naturalista bávaro (refere-se a Alexander von Humboldt) de Dryades. Porque a verdade, para quem descortina o coberto nos seus mil aspectos geográficos, é que ele teria sido um curso imemorial, tais os estirões, as curvas, as bacias, as ilhas que o integram na tabela dum rio meândrico. Rechã desértica, mal se encontra, de longe em longe, um habitante que nos informe ou oriente sobre páramos e aquelas plantas.

Enquanto a trama se desenvolve de maneira previsível, a retórica telúrica é despejada nas páginas — e qualquer mínima escolha do protagonista, nas raríssimas vezes que o autor lhe concede tal liberdade, serve para nova, hermética, cansativa aula, à qual se adiciona o discurso utopista da Amazônia celeiro do mundo, esperança dos corações, luzeiro dos povos.

O esquematismo do enredo comprova a bisonhice do escritor, que nunca deveria ter abandonado o ensaio. No Capítulo 8 surge, de repente, um geólogo, especialista em paleontologia, para falar, claro, das “rochas paleozoicas”, de “graptólitos” e da “concreção calcária”. Logo a seguir, no 9, mal se conhecem, Florêncio e a cabocla Angélica se atracam como símios, não sem que, antes, na escuridão rompida por uma débil lamparina de querosene, o protagonista consiga penetrar “bem dentro das meninas dos olhos” de sua recém-adorada. Durante o jantar, somos presenteados com a melhor babugem alencariana:

(…) O engenheiro parecia magnetizado, não arredava a vista da cunhã. Bebia-lhe o semblante pelos olhos, grandes, brilhantes, mas verdes, curiosamente verdes, refletindo talvez a selva nas suas mil nuanças de clorofila. Neles repontava a sinfonia da folhagem, desde os tons brandos e desmaiados até o vivos e glaucos. O que todavia entornava nesses olhos um tom misterioso era não lhes saber jamais, com precisão, a tonalidade exata: escuros? Claros? Verdadeiramente enamorado, a atenção do dr. circunscrevia-se apenas a uma pessoa: Angélica.

No regresso à fazenda, Capítulo 10, a decisão por uma viagem fluvial não serve à aventura, mas à verborreia do autor, sempre pronto a nos enfadar com seu, reconheçamos, vastíssimo conhecimento da região.

O mirante do Baixo Amazonas é, na verdade, uma coletânea mal cosida, à qual não faltam relatos autobiográficos, como o abalroamento narrado no Capítulo 14, que o autor testemunhou por ser o imediato de uma das embarcações: para surpresa do leitor, Florêncio Timbira presencia os fatos, mas não esboça nenhuma reação. Há também longa crítica, cravada no Capítulo 16, à construção do farol do Frechal — que acaba por desabar, mas sem contribuir para o enredo. Somando-se a tais apensos, temos o encalhe de um vaticano no Capítulo 17.

É revelador do nosso atraso que, no final da década de 1930, editores ainda aceitassem vender uma narrativa assim tosca como romance. Nenhuma característica do gênero está presente: à escassez de fluência somam-se o texto algumas vezes jornalístico e os personagens apartados de qualquer introspecção, de qualquer mínimo questionamento a respeito da vida. Na verdade, tudo se submete à onipresença do autor, timoneiro dessa crônica em que o discurso empolado assume o papel de verdadeiro protagonista.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Barretto Filho e Sob o olhar malicioso dos trópicos.

Raimundo Morais
Nasceu em Belém (PA), em 1875, e faleceu na mesma cidade, em 1941. Da sua experiência — durante 30 anos comandante de gaiola no Amazonas — resultaram, além dos três romances citados, estudos de caráter etnográfico: Na planície amazônica (1926); Cartas da floresta (1927); País das pedras verdes (1930); O meu dicionário de cousas da Amazônia (1931); Anfiteatro amazônico (1936); Aluvião (1937); Histórias silvestres do tempo em que animais e vegetais falavam na Amazônia (1939); O homem do Pacoval (1939); À margem do livro de Agassiz (1939); Notas sobre o Eldorado (1939); Cosmorama (1940); além de outros ensaios.
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

Rascunho