🔓 Espelhamentos e acasos

Livro da poeta baiana Clarisse Lyra brinca com distâncias, oráculos, temporalidades e a noção de que tudo pode ser reescrito
Clarisse Lyra, autora de “Tanto tempo para aprender a escrever um poema com hortênsias”
01/01/2023

Parece o chat UOL mas melhor. O Tinder é um lugar incrível. Entretenimento privado e nada personalizado é o que ele te proporciona: em qualquer momento, sem perder tempo na Netflix ou fazendo cursos, podendo dar um ghost a qualquer hora, você vai lá, deslizar por um match dos sonhos ou um match mediano. E com sorte engatar uma conversinha fiada sobre signos, opiniões publicamente impopulares, profissão ou poesia. Aí você pode descobrir pessoas que conhecem pessoas que você conhece — geralmente é com essas que você sai. Ou pessoas que de tão interessadas em você descobrem sua minibio na internet muito rapidamente — geralmente você sai com essas também e geralmente elas são as mesmas que conhecem gente que você conhece. Sei disso porque me contaram.

Ironicamente, alguém te envia um poema pelo chat do Tinder e você pensa: meu deus, nem aqui eu tenho paz, fui dar um match e acabei numa conversa sobre poemas. E calhou que vocês já falaram de Ana Martins Marques, já falaram de Filipa Leal, já falaram até de Adília Lopes. A coisa fica tão surreal que você pensa que estão armando pra você, ninguém vai pro Tinder falar de poesia, deve ser pegadinha. Então vocês marcam um date. E cada um vai levar um livro de poemas. Você leva um livro contemporâneo para dar aquele engajamento nas poetas vivas. Você leva Tanto tempo para aprender a escrever um poema com hortênsias, da Clarisse Lyra. Finalmente vocês se sentam no bar em plena luz de meio-dia. E pedem cerveja, e pedem um almoço com peixe frito.

Enquanto esperam, tiram os livros da bolsa. Ele traz Golgona Anghel, Nadar na piscina dos pequenos, e você pensa que isso só pode ser uma piada. E você conta que pegou esse livro emprestado ontem mesmo com uma amiga. Então vocês começam pelo livro de Clarisse Lyra, é fim de semana e, abrindo aleatoriamente numa página, você lê este poema:

Um final de semana

um final de semana
com você
seria tão bom quanto having
a coke with you?
foi o que ela disse
e eu admiro tanto esse
jeito de dizer o desejo
sem constrangimento
ao contrário, x, pra fazer carinho
precisa falar com voz de criança
assim o ridículo se confunde
com o ridículo e
fica tudo bem

Sem dizer nada, ele abre o livro de Golgona, você nunca saberá se foi um poema aleatório ou não, e lê:

Ficamos tanto tempo em silêncio,

que conseguimos,
até que enfim,
confundir-nos com a noite.
Vínhamos, é certo, de sonhos distintos
e ainda não tínhamos aprendido a adormecer
sem que isso não parecesse uma queda no vazio.

Aceitávamos, no entanto,
que os nossos corpos continuassem um caminho
para o qual nós não tínhamos explicação.

O peixe chega junto do pirão, do arroz e da batata frita. Vocês pensam que o bar talvez não seja o melhor lugar para lerem poemas assim, à queima-roupa numa primeira vez. Mas talvez seja só a fome. Você percebe que está faminta e que quer uma coca-cola, como no poema, e pede.

Enquanto almoçam e trocam silêncios, você volta a pensar em encontros e em poemas. Pensa que o peixe está uma delícia e que coca-cola é bom demais. Pensa no título do livro de Clarisse Lyra, o que te faz lembrar que sua mãe ama tirar fotografias ao lado de arbustos de hortênsias. Tanto tempo para aprender a escrever um poema sobre hortênsias. Pensando no nome, você tem a sensação de que ele aponta para um trajeto, “tanto tempo”, anterior a si mesmo. Melhor: aponta para os poemas do livro enquanto fala de um trajeto necessário para escrever um poema “sobre hortênsias”.

E, amiga, eu tô no futuro
E, amiga, eu tô no futuro é o título de um poema de Clarisse. De um poema não, são dois poemas que repetem esse mesmo título, e estão postos lado a lado, em páginas que se tocam de frente.

Um começa assim: “ele cheira a macadâmia e ervas/ pequenas especiarias fumadas/ e nanquim/ é um pouco frio, então/ jogo uma echarpe clara/ sobre minha blusa”. O outro, tem início parecido, mas com algumas alterações: “ele cheira a célula, macadâmia/ pedras/ você não sabe o cheiro que têm/ essas coisas no futuro/ é um pouco frio, então/ jogo uma galáxia/ sobre minha blusa”. E terminam desse jeito, respectivamente: “o amor é doce e perfumado/ cristais de açúcar de fruta/ amanhece devagar, o céu/ tem a coloração de maçãs” e “o amor é doce e perfumado/ fumaça de nanquim/ amanhece devagar, o céu/ se disfarça de maçã”.

Duplicados e alterados, sem que um se perca do outro porque mantém o mesmo título e a opção pelo mesmo universo de palavras, sem grandes mudanças estruturais, são dois poemas que guardam em si um percurso — de alterações, edições que, tornadas aparentes na publicação, deixam à mostra o processo de reescrita.

O poema, carta endereçada a uma amiga que está no passado, dá notícias de outro momento. Nós — e a amiga — só podemos ler e reler a carta no presente. A poeta faz com que a localizemos à frente no tempo e, por isso, enquanto lemos, estamos no passado. Essa configuração temporal estabelece distâncias, reproduzindo o que já vinha anunciado no título do livro, uma marcação de trajetória, reescrita e tempo. Esse não é o único par de poemas que repete um título, há outro, Me esforço em ser perfeita para me sentir invulnerável. O primeiro, um poema em prosa:

dizia Gerda Taro. Gerda Taro foi a mulher que criou Robert Capa. Robert Capa foi a marca que ela e seu marido usaram para vender suas fotografias a veículos de imprensa no período entreguerras. Gerda Taro morreu em 1937 depois de ser atropelada por um tanque. Gerda Taro estava fotografando com sua Leica a Guerra Civil espanhola. Em 2013, Robert Capa foi tema da matéria “homens que você deveria conhecer #42” da revista Papo de Homem.

No segundo, logo na página seguinte, espelhado, lemos:

dizia Gerda Taro.
Gerda Taro foi
atropelada por um tanque de guerra.
São dois dados de sua biografia.
Se os destaco e digo que
isso parece querer dizer algo
sobre se esforçar e sobre sentir
estarei fazendo uma leitura redutora.
O problema com uma leitura redutora
é que uma leitura redutora é uma leitura injusta.
E por que eu faria isso?
Para ter um poema assinado com meu nome?
Gerda Taro, perdão por atrapalhar seu descanso.

Aqui, a poeta também está no futuro — em relação a Gerda Taro, interrompida de seu descanso eterno por conta de uma leitura redutora oferecida por seus biógrafos. E poderíamos até pensar em Gerda Taro como a amiga endereçada no poema E, amiga, eu tô no futuro, para quem são enviadas notícias — de um futuro que cheira a macadâmia, em que o amor é doce e perfumado, futuro onírico, diálogo e temporalidade impossíveis mas, no poema, realizáveis.

Enfim, a ironia
Partindo das definições propostas por Richard Rorty sobre ironia, Rosa Maria Martelo diz que reescrever o mundo é uma das atribuições de uma ironista: “Em termos rortyanos, o principal alvo de desconfiança de uma ironista é o senso comum, e, para a ironista, o senso comum é, antes de mais nada, uma linguagem que só pode ser objeto de distanciação mediante o recurso a outra linguagem.” Isso faria com que estivessem sempre em dúvida os vocabulários tidos por finais. A poesia ofereceria, assim, uma possibilidade de reformular, refazer, esse vocabulário final. Martelo continua citando Rorty: “Neste processo de redescrição, as ironistas nunca se levam completamente a sério porque entendem que ‘os termos em que se descrevem a si próprias estão sujeitos a mudanças, [e] por estarem sempre conscientes da contingência e fragilidade dos seus vocabulários finais e, portanto, dos seus eus’”.

Assim, nos deparamos com a possível ironia contida em Tanto tempo para aprender a escrever um poema com hortênsias — e voltamos ao date.

Você se lembra que tinha começado a pensar em temporalidades e em distâncias, se dá conta do bar, do encontro do Tinder, do peixe frito, da coca-cola e que having a coke with alguém vai ser pra sempre uma coca-cola com Frank O’Hara. Levanta a cabeça e vê um homem mastigando à sua frente, você então sente vontade de pedir a opinião dele sobre o título do livro de Clarisse. “E esse título, heim?” E levanta o livro diante de si mesma, aproximando a capa do rosto dele. Ele diz alguma coisa mais ou menos comum sobre o perecível das flores e você rapidamente esquece. Você pergunta onde ele mora e ele diz que no Catete. Você diz que o seu sonho é morar no Catete com ele. Ele ri e você também. Você ri mais ainda por dentro porque de algum modo acredita estar dizendo a verdade. Então, você fica com duas palavras na cabeça: tempo e contingência. Duas palavrinhas que produzem distâncias, pois sustentam relação entre elementos.

Todas essas são questões recorrentes no livro de Clarisse Lyra, que não para de produzir relações por meio dos espelhamentos e dos acasos mais ou menos controláveis da escrita — não só pelos títulos idênticos, mas pela repetição de estruturas com pequenos desvios, pela insistência na temática dos oráculos, pela recorrência de marcações temporais nos poemas, pela dicção próxima da fala da própria Clarisse etc. Esses espelhamentos, modos de reescrita, podem até deixar a sensação de que os poemas são inocentes, desprovidos de armadilhas. Mas não. Como no fim de E, amiga, eu tô no futuro, em que o céu se disfarça de maçã, não é maçã.

Tanto tempo para aprender a escrever um poema com hortênsias
Clarisse Lyra
Jabuticaba
52 págs.
Clarisse Lyra
Nasceu em Feira de Santana (BA), em 1988. É poeta, professora, tradutora e revisora. Mestra em Letras pela USP. Foi editora no zine Felisberta e coedita a revista Capivara. Organizou e traduziu, junto com Mariana Ruggieri, o livro Discoteca selvagem, da poeta argentina Cecilia Pavón (Jabuticaba).
Ana Luiza Rigueto

É poeta, jornalista e especialista em literatura brasileira. Atualmente, é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, com pesquisa em poesia contemporânea. Publicou Entrega em domicílio (Urutau, 2019) e tem poemas em diversas revistas online.

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