Entre as feras

Reedição de “O livro dos lobos”, de Rubens Figueiredo, atesta sua escrita vigorosa
Rubens Figueiredo por Ramon Muniz
01/10/2009

A Roberto Lota

Quando se comentam os problemas atuais, muitos parecem ignorar ou esquecer que outros tempos também se marcaram pela loucura de governantes tiranos, pela submissão do homem ao homem e pela banalização da vida. Mas é inegável ver no agora um tempo doentio, dono de mazelas inéditas e mais absurdas, hipócrita por ter constatado e criticado os erros do passado e repeti-los no presente, selvagem por transformar seus reveses em alta fonte de lucratividade: é assim com a violência urbana, a fermentar as fábricas da blindagem e as firmas de segurança particular; é assim com a manutenção da falência dos hospitais públicos, empurrando a sociedade para os planos de saúde; e é assim com a desordem do trânsito urbano, que fez com que se descobrisse na aplicação de multas uma indústria poderosíssima.

Nos debates sobre arte — naqueles não congelados pela passividade crítica que tudo justifica com os termos “inovação”, “ruptura” e “diferença” —, pergunta-se, invariavelmente, que respostas as produções culturais dão ao cenário atual. Mas elas parecem emudecidas, também coladas na teia do caos contemporâneo. E diante de manifestações como as presentes na Bienal de São Paulo, por exemplo, pergunta-se: as artes apresentam-se assim por serem uma representação ou um produto do caos?

Numa recente entrevista concedida a um jornal do Rio de Janeiro, o escritor Luiz Ruffato disse que a maneira fragmentária como escreve é o modo mais adequado de tratar do tempo despedaçado em que vivemos, num processo mútuo em que o conteúdo exprimido implica diretamente na forma de exprimir. Mas um problema decorrente disso, e facilmente perceptível na prosa e na poesia contemporâneas, consiste em certa confusão que pode fazer passar por expressivo aquilo que é raquítico. Além, deve-se assinalar a necessidade do leitor de encontrar na literatura não só perguntas, mas sólidas respostas; não só trevas, mas uma orientadora luz; não só angústia, mas também um possível conforto. A arte entorta os caminhos pelos quais nos ensinam a andar, ou mesmo chega a contestar se de fato é imprescindível caminhar, mas não podemos nos esquecer de que ela também organiza a desordem, sobretudo numa época — a nossa — que torna estatutária a rebeldia, para colocá-la, logo em seguida, nas prateleiras e vitrines dos shopping centers.

Trajetória
Dentro desse contexto, a obra do escritor carioca Rubens Figueiredo encontra-se numa posição ímpar, pois, por um lado, ela nada deixa a desejar ao que se aponta como fator principal da prosa literária contemporânea — a diluição das noções do real e do fictício —, e, por outro, mantém-se ativamente ligada às reflexões de maior envergadura humana, como os dramas psicológicos dos que se vêem fora de um mundo automatizado, ou as distorções sociais produtoras de distorções espirituais. Por isso, chega muito oportunamente a reedição de O livro dos lobos, volume de contos originalmente publicados em 1994, e “agora quase completamente reescritos pelo autor”, como diz a orelha do livro.

O livro dos lobos pode ser considerado um livro de transição na obra de Rubens Figueiredo, pois a partir dele ganham corpo a forma e alguns temas basilares de sua escrita, surgidos ainda de maneira pouco sólida, ou nem isso, em O mistério da samambaia bailarina (1986), Essa maldita farinha (1987) e A festa do milênio (1990), que eram livros mais dados ao humor, e aparecidos com grande refinamento em As palavras secretas (1998), Contos de Pedro (2006) e no estupendo romance Barco a seco (2001).

Os textos de O livro dos lobos, que nunca se repetem, mas se ligam pelo ecoar de uivos diversos, são verdadeiros “humanômetros”, pois a partir deles é possível, como só as grandes obras possibilitam, ver o quanto de nós está respingado nos personagens, ora por nos identificarmos com muitas de suas ações ou angústias, ora por descobrirmos, perplexamente, o lobo existente em cada um de nós, devoradores ou devorados.

A vida uiva
Como um primeiro exemplo, cito o último conto, A escola da noite. Nele, narra-se a estória de Andreia, uma professora recém-aprovada num concurso público, destinada a lecionar para jovens em uma (de acordo com as pistas do texto) favela — situação, aliás, vivida pelo próprio Rubens, que é professor da rede estadual do Rio de Janeiro. No enredo, os professores evocam a sua essência de lobo já na hora da escolha do colégio em que seriam lotados, pois, a fim de garantirem vaga numa escola bem localizada, passavam informações distorcidas aos mais desavisados, dando a entender que fossem recomendáveis as escolas das áreas geralmente preteridas pela maioria. Um sinal da lógica que pretende nos tornar competidores ferozes em todos os setores de nossa vida.

A seu redor, alguns aprovados tomavam ares de entendidos. Falavam alto, faziam declarações categóricas a respeito das vantagens e desvantagens de cada escola. As condições de transporte, a índole dos diretores, a boa ou má fama das localidades. Essas opiniões, no entanto, se contradiziam sem a menor cerimônia. Tiveram o efeito de atiçar a desconfiança natural de Andreia. Talvez espalhassem informações falsas com o intuito de afastar das escolas melhores os candidatos menos esclarecidos. O bom podia ser um despistamento do ruim, e o péssimo um ardil do ótimo.

Andreia é uma moça que tem no novo emprego a possibilidade de ver a si própria como alguém independente: “Assim como não precisou pedir a nenhum conhecido que a ajudasse a arranjar trabalho, também não teve que perguntar aos pais onde ficava esse ou aquele bairro para escolher o colégio. Sentiu-se sólida, um pouco instável, talvez. Mas pesava no chão, oferecia uma resistência”.

A professora carrega o entusiasmo brotado disso para o seu posto de trabalho, mas é contida pelo medo derivado do cenário desalinhado com que se depara: “Logo que se apresentou à escola, Andreia percebeu que o lugar era um pouco pior do que tinha imaginado (…). Toda a área era mal iluminada (…). Ela começou a ter a sensação cada vez mais forte de que a escola estava próxima demais de uma espécie de força desagregadora”. No entanto, o discurso da professora tenta pautar-se por uma suposta postura politicamente correta, fugindo de opiniões que se amarrassem aos preconceitos elitistas.

Mas a realidade é bruta em sua pedagogia, e sem nenhum didatismo exibe a fragilidade de determinados debates. E o conto é extremamente preciso ao desmontar o velho esquema da compensação: de um lado, estão os que vêem nas zonas periféricas a fonte das calamidades sociais; do outro, os que se rebelam contra tal pensamento e (registre-se que não generalizo), na ânsia de uma intervenção justa, idealizam a figura do pobre e favelado, como se esses fatores, por si sós, bastassem para tornar íntegro o caráter de um ser humano.

O drama de Andreia intensifica-se quanto mais ela sente na pele a desarmonia entre aquilo em que quer acreditar e aquilo que não quer ver. No fundo, ela sente pavor e repulsa por aquele ambiente desconfortável e pelos seus alunos, despossuídos de qualquer traço formal ou de amabilidade:

Nas reuniões com os outros professores, se aborrecia consigo mesma por sentir que concordava quando algum colega mais nervoso resmungava que os estudantes eram uns burros, uns selvagens, verdadeiros retardados (…). Em voz alta, apressava-se em tomar o partido de um certo professor, sempre pronto a justificar os alunos levando em conta as circunstâncias em que viviam. Palavras como pobreza, opressão, serviam de apoios em que Andreia se agarrava.

Até que uma noite vociferou para a professora e, em face da turvação da rua e da narrativa, ela parece sofrer uma tentativa de estupro, da qual consegue se livrar matando o rapaz que a abordara com a própria faca que ele carregava. Com os dias, Andreia, que não se lamenta pelo acontecido, perde o pavor pelo lugar, ao mesmo tempo em que se vai descobrindo constitutiva dele e por ele também constituída. A escola da noite, texto mais curto de O livro dos lobos, é um excelente exemplo, como é próprio da escrita de Rubens Figueiredo, de que a escrita de caráter social ainda tem espaço digno em nossa literatura, e ela, ao contrário de empobrecer, como sugerem alguns, revigora as ruminações de ordem formal. São obras dessa natureza que ainda podem fazer com que compreendamos melhor o real, mostrando ser válida a máxima de Augusto dos Anjos: “O homem, que, nesta terra miserável / mora, entre feras, sente inevitável / necessidade de também ser fera”.

Na pele dos lobos
Se A escola da noite faz uma abordagem mais detidamente social, os outros contos são, no geral, sondagens psicológicas de personagens com algum grau de complexidade.

A abertura do livro se faz com Os biógrafos de Albernaz, no qual Nestor e Torres, o Cego, escrevem biografias do pintor e professor Rodrigo Albernaz. Aparentemente, temos de maneira muito bem definida as posições do bem e do mal, do justo e do corrupto, do falso e do verdadeiro, pois Nestor escreve sobre Albernaz por mero oportunismo, enquanto Torres é admirador do alvo de sua pesquisa.

Com o desenrolar da trama, Nestor não hesita em agir de qualquer forma para alcançar seus objetivos, mesmo que para isso tenha que trapacear. Passo a passo, Torres vai mostrando sua integridade, o que leva o leitor a se solidarizar com ele e desejar o fracasso de Nestor. Mas descobre-se que o afamado Rodrigo Albernaz cometeu uma grave imprudência: o professor-pintor plagiou o trabalho de uma aluna e, para se desculpar com ela, deu-lhe um cargo na universidade.

A descoberta causa uma reviravolta na narrativa, pois o episódio chega, por um descuido de Torres, ao conhecimento de Nestor, que se vê tentado a publicar o escândalo. No outro extremo, movido pela admiração e cioso de resguardar a imagem apreciável de Albernaz, Torres não admite a possibilidade de tornar público o que se poderia manter em segredo. É aí que o conto ganha seu tom mais vigoroso, quando, conforme dissemos acima, Rubens Figueiredo trabalha com a construção das verdades:

Era impossível que Torres, depois de todos aqueles anos, aceitasse ser o criador de um novo rosto para Rodrigo Albernaz. Seria traição. Acuado por suas descobertas, Torres viu com clareza o impasse. Seu pacto era com um homem morto, com uma vida completa, sem espaços em branco, uma vida que se podia pôr em ordem e narrar em linha reta. Era o Albernaz morto e não algum outro, uma forma espúria que começaria a viver agora, com um novo caráter, um outro corpo que pesava no mundo e riscava no chão seu rastro torto.

O jogo embaralhado entre verdade e mentira aparece com novo matiz em Um certo tom de preto, história em que a narradora vive amargas experiências desde que chegam a sua casa dois novos irmãos, Custódio e Isabel, para lá levados por se tornarem órfãos. É o suficiente para que a personagem mergulhe num inferno, pois, de acordo com seus relatos, os novos companheiros roubam seus pertences e acusam-na de outras delinqüências que eles cometem. No seio familiar, ambiente da união, os lobos fazem sua morada cativa, sem se cativarem uns aos outros, para o desespero da narradora e a poeticidade da narrativa: “Foram os juros do tempo, o agiota de todas as alegrias”.

Os outros contos do livro confirmam, em maior ou menor grau, a grandeza da obra. A terceira vez que a viúva chorou, O caminho de Poço Verde, Os anéis da serpente e, fundamentalmente, Alguém dorme nas cavernas são contos em que a vida humana é escavada de maneira profunda e poética, e das cavidades escorrem, sempre, sombras e uivos. Contos que confirmam a arte de Rubens Figueiredo, cujo nome caminha, solidamente, para se tornar o maior prosador de nosso tempo.

O livro dos lobos
Rubens Figueiredo
Companhia das Letras
160 págs.
Rubens Figueiredo
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1956. Graduado em Letras pela UFRJ, é professor do ensino médio e tradutor, especialmente de literatura russa. Publicou, entre outros, os livros As palavras secretas, Barco a seco e Contos de Pedro.
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho