É só quase o fim do mundo

Ficção científica de Inácio Araujo requer concentração para acompanhar profusão de personagens numa necessária imaginação sobre o futuro
Inácio Araujo, autor de “Utopia 3 – Últimas notícias do século 25”
01/05/2025

Geralmente é bom ler algo que alguém se divertiu em escrever, e parece ser o caso de Utopia 3 – Últimas notícias do século 25. É preciso ter doses imensas de generosidade para brincar assim ao ar livre, expor sua imaginação de forma tão ampla como exige a ficção científica. Ponto para o crítico de cinema da Folha de S. Paulo Inácio de Araujo, que aos 76 anos publica seu terceiro romance.

Também se requer coragem para imaginar o pior, algo que anda fora de moda e vai na contramão daquilo que ensinam os coaches contemporâneos, pautados por otimismo e meritocracia.

Apesar de situar sua trama numa distopia do século 25, o autor mantém um pé no planeta Terra, mais especificamente no Brasil de 2025, onde o mundo é isso aí que você leu hoje nos jornais. Mas ele vai e vem numa linha do tempo bem elástica, pois o protagonista guarda a memória de alguns fatos do passado graças à escrita de diários, sendo que a maior parte da população desse futuro literário é “ágrafa”, como ele classifica seus semelhantes não tão semelhantes assim.

Vários deles são “replicantes”, os tão queridos robôs que não podem faltar numa obra dessas. Assim como as máquinas pensantes de Isaac Asimov do clássico Eu, robô — que simulam ler mentes, declaram-se profetas, formam piquetes e até dançam em meio ao trabalho —, eles são os seres mais divertidos da obra, capazes de se revoltar, descobrir teóricos do passado e ressuscitar seus ideais.

Nesse vaivém, o leitor de Utopia 3 pode encontrar uma possível verossimilhança entre os dias de hoje, em meio à polarização e descrédito na democracia, e um mundo bem lá adiante que não deu certo, só não sabe disso ainda. Fazemos um salto do hoje para o depois de depois de amanhã imaginado por Araujo, um mundo que degringola totalmente.

Na trama, o mundo passou por uma grande guerra e posterior pacificação, sendo hoje uma única nação, com único CEO, onde cidades e países têm naming rights (imagine visitar TikTokyo). As pessoas vivem diversos séculos, e alguém com 200 anos ainda é um meninão.

Como dito, as pessoas não leem nem escrevem, o sexo é desaconselhado, tudo vem em pílulas e é ditado por uma grande tela. Assim como no distópico 1984 imaginado por George Orwell, o controle pressupõe a existência de espiões, que podem até não ser humanos.

Profusão de personagens
A dificuldade vem na profusão de personagens — seria uma qualidade (ou defeito) da ficção científica? Caso você encare a leitura, sugiro lançar mão de papel e caneta e ir anotando todos que aparecerem — acredite, você vai precisar. É como ler um Tolstói em que, no lugar dos impronunciáveis nomes russos, temos humanos misturados a robôs e até hologramas. Vai anotando.

Algo dá errado, porém. Nessa história, o aquecimento climático foi às alturas e os humanos só sobrevivem graças a uma redoma filtrante, que também mantém longe pragas e insetos devoradores. Fácil imaginar esse salto do calor atual para o insuportável.

É um mundo em que o ESG (esta sigla que ajuda a medir o quanto uma empresa está comprometida em ser sustentável e responsável ambientalmente) não foi suficiente para conter o caos. Já o marketing, sim, teve êxito em criar filtros que simulem uma realidade perfeita em meio à podridão, sem esquecer do olfato, o mais primitivo dos sentidos.

Na trama, foi possível manter a paz durante alguns séculos, enquanto gerações de robôs foram sendo aperfeiçoadas. Os mais antigos mantêm memórias que incluem as obras de pintores como Van Gogh e a música de Beethoven, e é desse cabedal que retiram informações para tentar orientar um grupo que se une para fugir quando o problema explode.

O problema ou solução, conforme a leitura que se faça, é que esses seres de lata se tornam marxistas, aderem à ideologia pregada nos livros que resgatam numa biblioteca e pregam a revolta. As pendengas entre correntes trotskistas e afins são hilárias.

Não à toa, são nomeados como Gagarin e Posadas (em referência ao teórico argentino que adotou a cosmologia), entre outros.

Como não existe mais paixão, e tudo é controlado, resta apaixonar-se por um holograma — também uma cutucada do autor na sociedade do amor líquido e do enrijecimento das artérias afetivas.

Quando o grupo foge, faz uma travessia por um sertão desenhado para matar bandidos, no que restou do Brasil. Bem no meio está Shellbras, novo nome patrocinado de Brasília. Um encontro com indígenas pode ser salvação ou perdição, enquanto o protagonista sem nome anota tudo sem parar. Anote também, e aproveite que os primeiros capítulos trazem um panorama de quem são essas pessoas. Não despreze essa dica descritiva do próprio autor e que pode ser fundamental na leitura.

Assim como as crianças de O senhor das moscas, romance de William Golding, o grupo logo se confronta com as forças e fraquezas de cada um, e a sobrevivência do indivíduo é colocada na balança diante da manutenção de toda aquela sociedade.

O autor não passou vontade de brincar, criar, imaginar, talvez até sofrer com essa distopia, e o leitor precisará topar entrar no jogo para seguir até o fim — esteja ele em que século estiver.

Utopia 3 – Últimas notícias do século 25
Inácio Araujo
Iluminuras
254 págs.
Inácio Araujo
Nasceu em São Paulo (SP), em 1948. Estudou ciências sociais na USP e cinema e história na École de Hautes Études en Sciences Sociales (Paris). Foi o montador de 13 longas, autor de roteiros para cinema e romances, é crítico de cinema da Folha de S. Paulo desde 1983. Autor de Hitchcock, o mestre do medo e Cinema, o mundo em movimento, e do romance Casa de meninas (prêmio APCA de autor revelação, 1987) e do romance juvenil Uma chance na vida.
Helena Carnieri

É mãe da Catarina e do Ivan. Nasceu em Curitiba (PR), em 1978. Estudou jornalismo e Estudos Literários (UFPR), além de relações internacionais e economia. Publica reportagens especiais nos jornais Valor Econômico, Folha de S. Paulo e portal UOL, e crônicas em A vida é palco.

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