🔓 Da crítica ao estereótipo

"A vida futura" acerta nos debates em torno da literatura, mas não aprofunda questões identitárias relevantes
Sergio Rodrigues, autor de “A vida futura” Foto: Renato Parada
01/01/2023

Se 2022 foi um ano de celebração e debate dos cem anos da Semana de Arte Moderna, este 2023 agora iniciado assinala o sesquicentenário da publicação do ensaio Notícia da atual literatura brasileira, com que Machado de Assis, embora em ato individual e discreto, também estabeleceu um marco de reflexão sobre as letras nacionais. Naquela oportunidade, o ensaísta reconhecia a procedência do nacionalismo literário para a consolidação de uma literatura nacional, mas sublinhava o ponto a partir do qual o fator procedente degenerava no dogma, quando a retórica laudatória de certos temas literários se sobrepunha ao exame efetivo de obras. Machado assim diagnosticava o que chamou de “instinto de nacionalidade”, exibindo rara capacidade de discernimento, própria das mentalidades autônomas. Adiante voltarei a este raciocínio.

Chama a atenção que nos últimos anos uma interpretação da obra e da figura de Machado de Assis tem sido feita literariamente, pela via da ficção narrativa, dentro da qual o autor consagrado no gênero aparece como personagem. Nesse sentido, destacam-se os romances Machado (2016), de Silviano Santiago, e O homem que odiava Machado de Assis (2019), de José Almeida Júnior.

Tal expediente é também praticado por Sérgio Rodrigues, que em 2019, com a publicação de A visita de João Gilberto aos Novos Baianos, deu interessante sinal nessa direção, vista a presença do conto A fruta por dentro, com que reverbera a Capitu de Dom Casmurro. O autor agora aprofunda esse trabalho, porque A vida futura, seu novo romance, tem em Machado de Assis seu protagonista e narrador.

Literatura e política
O enredo de A vida futura se desenvolve tocando em pautas políticas muito reverberadas atualmente, e em geral causadoras de contendas quando transpostas para o campo das artes em geral e o da literatura em particular. Em certo momento, Machado de Assis e José de Alencar, outro personagem destacado na trama, partem de sua habitação metafísica rumo ao planeta Terra, para conferirem de perto um plano de reescrita de obras suas, liderado pela professora Stella McGuffin Vieira, apresentada pelo narrador como

a principal ativista brasileira da compreensibilidade textual como ferramenta de inclusão social e plenitude cidadã num país de gente semialfabetizada uma gente que ela defendia ter o direito inato de saber o que escreveram fundadores da nacionalidade como Jota e Jota [José de Alencar e Joaquim Maria Machado de Assis]. Um dia, no clímax de sua carreira, lançou o ambicioso projeto Luta de Clássicos, dedicado a reescrever linha por linha os principais livros daqueles autores, ou seja, nós pondo assim em movimento, embora disso não pudesse saber, as engrenagens da história de assombração que aqui se narra.

A iniciativa escandaliza os falecidos autores, que se movimentam para obstruí-la. Para isso, Alencar e Machado, ou Jota e Jota, conforme identificados no livro, percorrem espaços e situações ilustrativos da vida contemporânea, no Rio de Janeiro, desde um ato acadêmico-político na Escola de Comunicação da UFRJ até uma festa na Zona Sul da Cidade. Se no primeiro se formula uma cena de julgamento de obras de literatura que não se baseia em critérios literários, a segunda sugere um episódio muito próprio da milicianização da vida carioca e fluminense, elevada a um patamar ainda mais forte pelo bolsonarismo. Afinal, a recreação é oferecida por Beto Ferrão — “o Rei das Vans”, e presenciada por um grupo aparentemente heterogêneo, em meio ao qual “deputados federais e militares de alta patente confraternizam com cafetinas consagradas e talentosos matadores de aluguel”.

Por duas vias, portanto, o romance de Sérgio Rodrigues se manifesta politicamente. Se por um lado parece prioritário formular um quadro de curto-circuito entre a procedência de discursos inclusivos e os excessos de algumas situações em que são concretizados, por outro a narrativa aponta sem rodeios para um submundo que está consumado sem disfarces na superfície de nossa vida política e social. E o autor assim procede sem sobrepor o político ao literário, porque A vida futura é, antes de tudo, uma obra que reflete literariamente sobre debates e encaminhamentos em torno da literatura. Tanto é que, além dos célebres e já aludidos defuntos-personagens, outros autores do cânone ocidental são mencionados direta ou indiretamente. Além disso, e de modo principal, o romance é narrado por Machado de Assis e em estilo machadiano, que Sérgio Rodrigues pastichou com habilidade, sobretudo na conjugação de crítica e ironia:

Mas será demasiado pedir que não sejam mais ingênuos que o habitual? Fazer uma versão simplificada dos meus livros ultrapassa o vocabulário; há que cortar fundo na carne, na proporção exata do analfabetismo funcional cultivado com tanto esmero no corpo do povo. Ocorre que o mesmo pensamento nu, límpido embora, é hermético para quem não aprendeu a pensar. Em caso extremo pode ser de bom alvitre suprimir a obra de todo, deixando o nome do autor na capa e um maço de folhas virgens de entremeio; teria sua graça.

Inconsistências
Retomo o raciocínio de Machado de Assis aludido no primeiro parágrafo para estabelecer um paralelo com Sérgio Rodrigues. Assim como o autor de Várias histórias anotou o sim e o não de algo tão decisivo para a literatura de seu século — a expressão nacional —, o escritor de O drible se interessa por observar, com independência intelectual, equívocos e contradições em torno de pautas identitárias.

Este subsídio ensaístico é uma das duas chaves de leitura de A vida futura; a outra é fornecida pelo próprio autor em entrevistas sobre o livro, por ele concebido como investida humorística. É pela conjugação desses dois fatores que lemos construções do seguinte teor, quando Jota narrador se dirige a quem acompanha seu relato: “Não fui prudente, leitora ou leitora — ou leitore, cousa de doudo, como logo aprenderei”. A circulação contemporânea dos fantasmas de Alencar e Machado motiva a elaboração de cenas caricaturais, especialmente as que exibem dificuldades de comunicação: “Todes?! Seria um deus nórdico? Logo me perdi”.

Mas justamente nesse ponto A vida futura acaba por se trair e contradizer, tornando-se o próprio livro algo caricatural, indo pouco além disso como enredo e como crítica do tempo, por lhe faltar consistência no desenvolvimento de personagens, seus destinos na narrativa e situações em que se inserem. Daí vermos no romance muitas cenas previsíveis, como que apostando na redução superficial de debates contemporâneos que, mesmo não sendo isento de incoerências, são de inegável importância. Nesse sentido, o capítulo Reescrever-me chega a soar ingênuo, por do princípio ao fim se desenrolar como coleção de estereótipos incompatíveis com a densidade da pauta em questão e com a experiência do autor. E sequer a pretensão humorística do livro justificativa o resultado, porque tanto o referido capítulo quanto as demais partes correlatas também não se sustentam comicamente. O prejuízo do conjunto narrativo geral é inevitável.

A vida futura
Sérgio Rodrigues
Companhia das Letras
168 páginas
Sérgio Rodrigues
Nasceu em 1962, em Muriaé (MG). É autor, dentre outros, dos romances Elza, a garota (2009) e O drible (2013) e dos livros de contos O homem que matou o escritor (2000) e A visita de João Gilberto aos Novos Baianos (2019). Publicou também o almanaque Viva a língua brasileira! (2016).
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho