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Com influências do trovadorismo e da Bíblia, "Knulp", do alemão Hermann Hesse, influenciou a geração hippie e reverbera agora nos millennials
Hermann Hesse, autor de “Knulp”
01/12/2020

Um jovem caminha com ar pândego por ruas, avenidas, estradas. Assobiando, para e papeia com um transeunte qualquer, sem pedir informações sobre como se chegar em lugar algum. Lá está para jogar conversa fora. Sem maiores pretensões, despede-se apenas com gracejos. E vaga até encontrar um rosto conhecido. Depois da surpresa do reencontro, a vã filosofia embala o cumprimento, que se estende em convite e por aí vai. Poderia ser mais um jovem da Geração Z, mas não. É Knulp, o filho pródigo do escritor alemão Hermann Hesse.

A filosofia de viver o momento é a essência do livro que, depois de anos sem nova tradução, é relançado no Brasil. Knulp — Três histórias da vida de um andarilho narra o espírito errante que guia o protagonista por sua vida. Tão admirado quanto criticado pelos muitos amigos que fez pelo caminho, Knulp envereda para si mesmo, desenvolvendo reflexões ricas, mas ao mesmo tempo incompletas, acerca da gravidade da vida e de seu papel como personagem estrada afora.

Profundas e fluídas, as três histórias que o livro apresenta têm o sagaz Knulp sempre em busca de algo que lhe falta. Ele pensa excessivamente, é um poeta das ruas. Dissabores da vida o levam a descaminhos fora do eixo tradicionalista — a estética “papai, mamãe, filhinhos”, uma carreira promissora no funcionalismo público, etc. Ele vaga sob o lema carpe diem, um clichê que influenciou o movimento hippie — que, por sua vez, foi influenciado por Hesse — e mais tarde, os millennials.

Sábio e maluco
Ao mesmo tempo considerado tão sábio quanto maluco, o protagonista não abandona uma conversa sem antes plantar ali uma reflexão. Florescer ou não, não é de seu interesse. O personagem de Hesse é autocentrado, não leva jeito para pedagogias, mas sim para filósofo — título que o persegue através dos anos, com as devidas críticas a seu estilo de vida andarilho. “Esperava mais de você, um prodígio do Latim”, vai ouvir o mestre Knulp, já calejado após anos de estrada.

O personagem cultiva a figura do trovador da Idade Média, com retoques cômicos e humor refinado. A tradução de Julia Bussius revigora essa figura, que ora é prosaica, ora profunda, resumindo em poucas palavras um questionamento cabeça, digno de filósofo e de poeta expressionista. Suas palavras atravessam o tempo: “Porque morri cedo demais/ Agora cante, jovem senhorita/ Uma canção de despedida./ Quando eu voltar à vida/ Quando eu voltar à vida/ Serei um belo rapaz”, declama em um dado momento do livro.

Influências
Escrito no século 20, Knulp mantém viva a tradição dos périplos, característica do bildungsroman. No entanto, o livro não é um romance de formação, apesar de ter influências inegáveis do gênero, assim como tem do trovadorismo e da bíblia. Hermann Hesse, um conhecedor das escrituras, não traça o caminho por acaso — o faz com sagacidade e simplicidade, adaptando-o aos seus tempos. O livro foi lançado em 1915 e, exatos 30 anos depois, o autor foi indicado ao Prêmio Nobel, arrematando-o em 1946.

Momento oportuno
A obra voltou às prateleira brasileiras em bom momento, sendo uma ode ao wanderlust, essa palavra que floresceu do idioma de Hesse — em alemão, wandern é “caminhar” ou “vagar” e lust é “desejo”; em português, seria algo como “desejo de viajar”. É uma mensagem oportuna em tempos de confinamento. Embarcar na leitura Knulp é uma opção segura para não se contaminar com o sentimento de estagnação produzido pelas impotências nascidas da pandemia do novo coronavírus e da conturbada política brasileira.

Hoje, em tempos normais, Knulp poderia ser representado como um jovem hipster, de dreads, bermudão cáqui, com pele queimada de sol e uma voz doce; o encontraríamos a caminho de alguma praia, certamente fumando o cachimbo da paz, levando a um desconhecido uma palavra amiga, ou simplesmente um aperto de mão firme para depois sumir. Em tempos de coronavírus, talvez não sucumbisse às lives, mas ficasse entretido em um diário, algo que fosse deixar para depois de sua caminhada enquanto abre uma cerveja artesanal.

Knulp
Hermann Hesse
Trad.: Julia Bussius
Todavia
112 págs.
Hermann Hesse
Foi um escritor, poeta e pintor alemão, nascido em 1877. Sua obra é fortemente influenciada pela literatura bíblica. Filho de missionários, Hesse não seguiu os conselhos do pai e logo cedo foi trabalhar com comércio, tornando-se livreiro. Autodidata, escreveu os romances Sidarta (1922) e O lobo da estepe (1927). Recebeu o prêmio Goethe e foi agraciado com o Nobel de Literatura. Morreu em 1962, aos 85 anos.
Matheus Lopes Quirino

Jornalista, é editor revista eletrônica de literatura Fina e colaborador do jornal O Estado de S. Paulo.

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