Corpo pelas palavras

Je Nathanaël começa com uma espécie de alerta já na epígrafe. “Essas transformações nos habitam”, diz a autora
Nathanaël, autora de “Je Nathanaël”
01/12/2013

Je Nathanaël começa com uma espécie de alerta já na epígrafe. “Essas transformações nos habitam”, diz a autora. E numa frase revela de maneira mansa o que prova em sua obra — a palavra transforma. Mas a maneira com que Nathanaël realiza isso não é tão fácil de ser explicada. Não se trata de um ensaio, muito menos de uma obra acadêmica — o livro fala sobre as relações envolvidas na literatura usando ficção, e de uma maneira não convencional.

Há basicamente quatro personagens em Je Nathanaël: aquele que lê um livro (referido nessa resenha como “leitor”); um livro (instintiva e obviamente chamado de “livro”); aquele que é um personagem dentro desse livro lido pelo leitor (a ser chamado de “personagem”); e as palavras. São integrantes que interagem entre si, estabelecem relações, por vezes íntimas.

Dividida em cinco partes, a obra retrata como o personagem seduz o leitor, atraindo-o para a leitura em uma experiência quase carnal. Exemplos? “Sua voz na minha língua” ou “abro-me à primeira página”. Aos poucos, constrói-se a imagem que o leitor tem do personagem, que então seduz e se forma na imaginação do próprio leitor. É uma apropriação de parte da obra de um outro para si mesmo, e o personagem de certa forma passa a pertencer ao leitor. A imagem criada pode ser, inclusive, completamente diferente da intenção do autor e até daquela criada por outros leitores. Essa diferença faz com que tal apropriação seja sobretudo uma relação de intimidade entre os dois.

Esse mesmo personagem depende também de palavras. São elas que o constroem e lhe dão forma. Elas determinam o que será exposto e o que será escondido. E se o personagem depende intrinsecamente de uma interpretação, as palavras se tornam mediadoras do processo: “Ele então se insinuou através e por debaixo delas [palavras] e talhou ao abrigo da sombra seu próprio caminho no interior e no exterior daquela relação tão meticulosamente mantida entre desejo e linguagem”.

Assim, a autora reforça a imensa responsabilidade que as palavras têm na criação de uma obra: elas são capazes de seduzir, criar ou esconder personagens, pensamentos e verdades. Na obra, elas se tornam uma entidade, um personagem, capaz de interagir com outros, se relacionando tanto com leitores como com personagens.

Conhecendo um personagem
Na primeira parte, intitulada “O outro corpo”, se estabelece uma relação entre o ato sexual e a palavra, a leitura. Parece um começo para uma relação passional e efêmera, uma espécie de explosão de sentimentos de forma muito rápida e abrupta. Os textos dessa parte podem também ser interpretados como reações de um leitor a um personagem que acaba de conhecer, assim como a imagem que começa a criar dele, o que passa a esperar e desejar que aconteça a seguir.

Na seqüência, “A voz” mostra uma relação diferente entre leitor e personagem, com uma espécie de dependência estabelecida entre eles. O leitor diz: “Você partiria não fosse por mim. E aqui você está. Aqui onde estou. Você estende a mão. Você diz: Entre. E assim faço. Entro. Sento. Levanto. Perambulo pelo quarto. Arrasto a mão pelas paredes. Eu toco. Eu entro e eu toco”. Nesse sentido, toda a existência do personagem depende de um leitor — de um leitor específico. O personagem não pode existir de outra maneira: “Não tem nem como ficar de luto por ele porque ele não está morto. Ele não está morto porque não está vivo”. A apropriação de um personagem ou de um enredo pelo leitor também é inevitável: “Você não tem por que vir. Você já está em mim”. Nesse momento, a relação entre os dois é imprescindível para a existência.

Em seguida, “Reticências” foca a expectativa do leitor em relação ao livro — as expectativas criadas entre o lido e o não lido. De certa forma, são as esperanças do leitor que começam a alterar a relação com a obra. “Leia o que pede o corpo. Olhe para tudo que o olho evita. Faça a pergunta mais óbvia. Vá aonde eu não vou”, é uma espécie de súplica que o leitor faz ao livro, uma esperança de que ainda existam surpresas e coisas novas por vir — seguido de um pedido de que isso seja concretizado.

Depois, passa-se, em “O inverno”, a uma espécie de hibernação. O leitor afirma não mais ler, e é visto em situações bem mais passivas do que nos momentos anteriores. Existe um sentimento de espera e os temas não são imediatamente relativos a literatura; algo recorrente é a consciência do próprio corpo. Leitor e personagem/livro parecem se reencontrar em “Nossos desejos escorrerão”: “Perdi o fio da meada. O livro aberto numa página em branco me incitou a seguir uma nova linha de raciocínio”. Se o encontro acontece com bem menos paixão que antes, também tem mais compreensão (principalmente entre leitor e personagem).

Construindo uma relação
Presente ao longo de Je Nathanaël está a admiração da autora por André Gide (1869-1951), confessada logo na abertura da obra. O autor francês, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1947, escreveu, entre outros, Corydon, em que fala abertamente sobre os direitos dos homossexuais. Frases do autor são citadas nas aberturas das partes do livro e a autora enfatiza a maneira com que ele trabalha com a palavra com perfeição.

Outra curiosidade é o uso do nome da autora no título, e que também dá nome ao personagem do livro. De certa forma, é uma tentativa de desconstruir ainda mais alguma formalidade, uma maneira de cruzar limites.

Ao longo das cinco partes, Nathanaël se permite brincar com as palavras, criar coisas novas e inesperadas, e propor uma mistura de sentimentos — a descoberta de um livro como relação de erotismo —, o que causa um misto de confusão e deslumbramento no leitor. Em tempos de séries eróticas lotando livrarias, é curioso se deparar com uma obra que propõe uma sensualidade entre as partes de um livro (como linguagem, enredo e leitor). Se a literatura é capaz de encantar, seduzir e apaixonar; se essa relação é intensa, íntima e individual; e já que é a linguagem que determina o corpo, a autora apresenta modos de criar essa relação de maneira sutil, delimitando personagens com fronteiras frágeis.

Se estas oitenta e poucas páginas podem ser lidas rapidamente — cerca de uma hora basta —, recomenda-se mais: a compreensão e a afeição vêm com o tempo. É preciso conviver com as palavras e personagens para entender seu sentido, se identificar e se afeiçoar. Os personagens e as relações vão se formando com as releituras e o livro encanta aos poucos.

Je Nathanaël
Nathanaël
Trad.: Thiago Gomide Nasser
A Bolha
88 págs.
Nathanaël
É autora de vários livros, publicados em francês e inglês, no Canadá e nos Estados Unidos. Suas obras mais destacadas são: Paper city, Je Nathanaël e …s’arrête? Je (2007), pela qual recebeu o Prix Alain-Grandbois, concedido pela Academia de Letras do Québec. Vive em Chicago (EUA) e leciona na School of the Art Institute.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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