🔓 Contra a invisibilidade

"Menos que um", de Patrícia Melo, apresenta um pequeno mapa dos miseráveis em São Paulo, cidade emblema da modernidade brasileira
Patrícia Melo, autora de “Menos que um” Foto: Marcelo Tabach
01/02/2023

Quando o Congresso Nacional derrubou o veto do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, ao projeto de Lei Padre Júlio Lancelotti no ano passado, deu-se um pequeno passo na complexa e necessária discussão sobre a ocupação dos espaços públicos pelas populações de rua. Para muita gente, foi oportunidade de ouvir pela primeira vez a expressão “arquitetura hostil”. O projeto de lei tem por objetivo evitar esse tipo de construção que afasta ou dificulta o acesso às áreas públicas das cidades por idosos, crianças e pessoas em situação de rua. Não é figurativo lembrar que a legislação, promulgada em 11 de janeiro deste ano, recebe esse nome devido às ações do religioso, uma delas que viralizou nas redes sociais, quando o sacerdote tentou quebrar pedras instaladas debaixo de um viaduto pela prefeitura de São Paulo.

Não raro nos referimos às pessoas em situação de rua como “invisíveis”, quando na verdade eles parecem visíveis até demais, a ponto de incomodarem todo o resto da sociedade quando pedem dinheiro, comida, para limpar o vidro do carro ou se tornam os personagens centrais de um projeto de lei. Visíveis ou invisíveis, como o leitor queira chamar, são sujeitos como esses que ocupam Menos que um, décimo terceiro romance de Patrícia Melo. O livro perfila tipos diversos que moram e ganham a vida nas ruas da capital símbolo do modernismo brasileiro, trazendo à superfície suas condições de sobrevivência e as razões pelas quais o espaço público se tornou o único lugar possível.

A seleção de tipos sociais do romance mostra ainda a sequência do projeto literário de Patrícia Melo, que privilegia temas com forte carga política e personagens enquadrados em lugares de exceção. Aliás, sua produção, iniciada nos anos de 1990 e que culmina agora em Menos que um também passa em revista momentos decisivos da representação de grupos subalternizados em nossa literatura. Reconhecida e por vezes acusada pelo seu engajamento social, a literatura brasileira a partir da última fase do modernismo apresenta duas paradas já bastante revisitadas pela crítica especializada e que aponta as décadas de 1960 e a de 1990 como dois marcos da produção com enfoque social privilegiando pobres e sujeitos marginalizados (nessa leitura escolho como recorte apenas a literatura brasileira contemporânea, daí a exclusão do romance de 1930).

Nos anos de 1960, a economia explicaria as injustiças sociais, enquanto nos anos de 1990, a marginalização e o abandono social pelo Estado são compreendidos como uma espécie de maldição de origem, sem enfrentar suas razões, conforme explica o professor Victor Hugo Adler Pereira (UERJ) no artigo Documentos da pobreza, desigualdade e exclusão social (2017). Ainda assim, nesses anos, que coincidem com nossos primeiros passos na redemocratização no país, surge “uma literatura que situa seu círculo de observação e indagação em espaços comunitários delimitados e submetidos à carência de bens e serviços que abundam em outros espaços sociais”. É interessante notar que Patrícia Melo lança Acqua Toffana em 1994, seguido de O matador em 1995, adaptado para o cinema por Rubem Fonseca com O homem do ano (2003). Com uma produção ininterrupta e que na virada do século também passa por roteiros para cinema e textos teatrais, a autora desemboca nessa década participando de um terceiro tipo de engajamento na literatura com discussões que nomeiam os preconceitos contra negros, mulheres, LGBTIQA+, pobres, imigrantes, entre outros. Neste momento, aqui proposto, a autora avança para além do diagnóstico, ao focalizar as desigualdades sociais como parte de um projeto econômico e político eficiente. Ou seja, não se trata de mero descaso social, mas de uma tecnologia de exclusão em funcionamento e operada por políticas governamentais.

Cidadania e justiça social
As histórias de pedintes, desempregados, flanelinhas, imigrantes e outros tantos com subempregos precários em Menos que um se conectam com a urgência dos nossos dias e não à toa nos desmontam. Elas concretizam aquilo que deveria acompanhar toda experiência estética proporcionada pela leitura, a aproximação de uma realidade muitas vezes distinta do leitor ou o realce às situações já conhecidas, mas que ganham tônus no texto ficcional. Sem medo de generalizações, todo e qualquer pessoa já cruzou com pelo menos um personagem de Menos que um. Eles são coadjuvantes das nossas narrativas ordinárias, atravessando nosso caminho a contragosto e expondo as malezas do neoliberalismo. Nas entrevistas sobre o romance, Patrícia Melo destaca o choque ao ver o aumento da população de rua em visita ao Brasil — a autora vive na Suíça há dez anos —, uma observação, segundo ela, anterior à pandemia de covid-19 que, sabemos, piorou o quadro já tão deteriorado.

A lista de personagens é longa e aqui escolho apenas três para compor o retrato proposto pela autora: um imigrante venezuelano, uma diarista, uma mulher trans. Um dos personagens sintomáticos dos últimos anos a ganhar face e nome na narrativa é Seno Chacoy, venezuelano que migra para o Brasil e lava as ruas de São Paulo. A orientação do seu superior é clara: não se deve jogar água diretamente nos moradores de rua para não criar problemas com “os fazedores de petição”, o pessoal “dos direitos humanos”. É preciso agir com sutileza, jorrar água em um ponto que os fragilize, “aquela quebrada de punho, sabe?”. Papelão, carrinhos, sacolas. Nesse processo, que inclui um tanto de desumanização do oprimido e do opressor, Seno Chacoy, que vive em outra ponta do sistema de exploração, passa a não se importar com os moradores, apenas executando ordens dadas pelo chefe. Outros personagens igualmente frágeis na estrutura social, porteiros e zeladores, sugerem se incomodar mais com a ocupação das ruas e calçadas do que com as condições de vida de quem as ocupa.

Já a diarista Jéssica tem desejos prosaicos, que dão a dimensão das dificuldades que ela enfrenta, como juntar dinheiro com as faxinas e tirar seus documentos perdidos. Nesse caso, ter documentos, além de um gesto de cidadania básico, demonstra sua vontade de inclusão. O mesmo Estado que abomina os pedintes nas ruas deve lhe assegurar a garantia de direitos, sendo um documento de identificação uma sinalização da sua existência como sujeito para uma série de políticas públicas essenciais. Uma terceira personagem dos nossos tempos a mostrar o fosso entre ricos e miseráveis é Glenda, antes Weverton, mulher trans, um dos alvos preferenciais da violência no país — o Brasil segue há 13 anos no posto de país que mais mata travestis e mulheres trans de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Se para Jéssica, o documento é uma conquista, para Glenda, o nome social é uma primeira vitória, mesmo ela dizendo que “tem gente que só existe depois que morre”.

Ao passo que o livro apresenta pequenos retratos das vidas dessas pessoas, em capítulos curtos e ágeis, concentrados nas ações e nas falas das personagens, também oferece ao leitor uma espécie de biografia não autorizada dos dias recentes de São Paulo.

A socióloga Leonor Arfuch nos ensina que embora o gênero autobiográfico, que foi o cerne dos estudos da pesquisadora argentina, concentre-se nas etapas da vida humana, é inseparável a dimensão espacial dos relatos de vida. A partir desse argumento, a pesquisadora pensa a cidade como uma autobiografia, o que pode nos inspirar a lermos no romance de Patrícia Melo também como um recorte biográfico dos últimos anos da cidade de São Paulo, a mesma capital que promoveu a Semana de Arte Moderna de 1922 e as Bienais de Arte a partir dos anos de 1950. Esta São Paulo reconfigurada se entrelaça aos personagens marginalizados, brasileiros comuns, que ocupam seu espaço, sendo transformada por eles e transformando-os também. Menos que um é um choque com a nossa própria imagem no espelho, mas que não podemos ignorar se quisermos mudar o que tanto nos causa repulsa.

Menos que um
Patrícia Melo
LeYa
368 págs.
Patrícia Melo
Publicou Inferno, O matador e Mulheres empilhadas, entre outros livros. Vencedora dos prêmios Jabuti de melhor romance, Deutscher Krimi-Preis, LiBeraturpreis, Deux Océans. Menos que um é seu décimo terceiro livro. Vive em Lugano (Suíça) há dez anos.
Edma de Góis

É jornalista e doutora em Literatura pela UnB.

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