Comédia humana

“Decameron”, de Giovanni Boccaccio, lê com olhos irônicos e sarcásticos a sociedade de seu tempo
Ilustração de Alex Cerveny para a edição de “Decameron”
01/12/2013

Poesia e humanidade são marcas do Decameron, escrito provavelmente entre 1349-1353, logo após a devastação causada pela peste na Europa. Esta, tão bem descrita por Giovanni Boccaccio, serve como pano de fundo para o encontro na igreja de Santa Maria Novella, em Florença: sete moças e três jovens rapazes decidem fugir para evitar o contágio, e se transferem para uma grande casa nas colinas, onde passam belas jornadas de conversas, banquetes e danças. É a partir dessa fuga, explicitada no proêmio, que as vozes se entrelaçam — e a moldura já está delineada. A cada jornada, com exceção de sexta e sábado, reservados às práticas religiosas, o grupo se reúne num prado para passar o tempo. Dez dias, dez narradores compõem um total de cem histórias que apontam para complexidade da vida humana.

O Decameron (do grego “dez dias” ou “jornadas”) é, sem dúvida, uma obra que marca um novo olhar, uma nova ordem social e uma nova forma de se relacionar e se localizar na sociedade. A realidade, cômica e trágica, toma nessas páginas o lugar do mito e das alegorias, antes predominantes. Passam a prevalecer elementos como amor, aventura, intriga, brincadeira, ódio e reflexão moral.

A obra pode ser vista como uma leitura de Giovanni Boccaccio da sociedade burguesa e mercantil que se encontrava em pleno desenvolvimento, mas na qual já era possível perceber sintomas de uma crise iminente. Os movimentos dessa sociedade são captados pela lente do autor, que perfila uma realidade centrada também na luta pela sobrevivência, na conquista, na violência, no engenho. Aqui, a salvação desce, passa ao plano terreno, apresenta-se laica, encontra-se na paixão e na inteligência. Sombras e luzes de um passado ainda vivo perpassam pelas cem novelas, apontando para um futuro problemático e incerto. Não por acaso, Francesco De Sanctis, ao tratar do Decameron, não falará mais de “comédia divina” — para lembrar a obra-prima de Dante —, mas de “comédia humana”.

Questões tradutórias
Da Divina comédia, muitas foram as traduções desde o século 19: de forma parcial com Luís Vicente de Simoni, em 1843; Gonçalves Dias, com o Canto VI do Purgatório; Machado de Assis, com o canto XXV do Inferno, em 1874; até chegar a uma edição completa do Barão da Villa da Barra, em 1888. Essa história das traduções da DC poderia continuar até o século 20, com Cristiano Martins, e as parciais de Dante Milano, João Trentino Ziller, Haroldo de Campos, Jorge Wanderley e Henriqueta Lisboa.

Seria possível pensar em uma espécie de cartografia do Decameron no Brasil? Uma rápida pesquisa já revela o caráter fragmentário desse mapeamento, principalmente pela quantidade de traduções parciais. De uma busca no Dicionário Bibliográfico da Literatura Italiana Traduzida, entre os anos de 1900-1950, aparece como resultado a novela X, da oitava jornada. De fato são muito poucas, praticamente são apenas duas as traduções integrais do Decameron, apesar de sua importância e das janelas que podem ser e foram abertas com leituras e releituras.

Dessas, a primeira é de Raul de Polillo, publicada em 1956, pela Livraria Martins, acompanhada de pouco mais de 100 ilustrações de Gino Boccasile e de uma apresentação de Edoardo Bizzarri, nome bastante conhecido quando se trata das relações culturais e literárias entre Brasil-Itália. A tradução de Polillo, como se sabe, foi posteriormente republicada por outras editoras: Tecnoprint, Ediouro e, mais recentemente, Itatiaia. Agora, em 2013, a L&PM lança a segunda tradução integral da obra, feita por Ivone C. Benedetti, que não deixa de lado a complexidade da obra e de sua estrutura ao se colocar uma problemática: “(…) seria preciso extrair de Boccaccio seus traços pertinentes e oferecer ao leitor um texto que fosse irredutivelmente de Boccaccio, já não o sendo em sua forma originária”. Ou seja, que espaço lingüístico encontrar para que o universo boccaccesco, do século 14, seja translocado para o brasileiro dos nossos dias. Como diz Otto Maria Carpeaux em sua História da literatura ocidental, no volume dedicado ao século 14, Bocccaccio é um artista e Decameron não é uma coleção heterogênea de novelas. Na verdade, é uma composição — poderíamos acrescentar uma montagem — inspirada por uma imaginação fantástica, com base num realismo são e saudável.

Nessa pequena arqueologia, para o leitor mais atento à literatura italiana no Brasil, o nome de um tradutor pode estar faltando: o de Torrieri Guimarães, com a edição da Hemus, em 1970. Todavia, sua ausência se justifica pelos estudos já feitos por Gabriel Perissé em Boccaccio e uma centena de histórias, confirmados pela tradutora Denise Bottmann no blog Não gosto de plágio, que apontam para uma tradução que caminha muito próxima, colada, àquela de Polillo. Uma “contrafação”, diz Maurício Santana Dias em O mundo que Boccaccio inventou, texto que introduz a edição cuidadosamente preparada pela Cosac Naify, recém-lançada.

Se a publicação da L&PM preenche um espaço vazio, aquele da tradução integral de uma obra clássica da literatura e da cultura, que necessitava ser relida e retraduzida, a da Cosac Naify apresenta o Decameron como um verdadeiro “objeto de desejo”: dez novelas selecionadas acompanhadas por significativas ilustrações de Alex Cerveny. O volume traz ainda duas reproduções: páginas do manuscrito transcrito por Giovanni d’Agnolo Capponi, na decáda de 1360, do qual consta a ilustração de Boccaccio de dois momentos da Novela de Ciappelletto da Prato — a primeira da tradução; e quatro páginas do Códice Hamilton, transcrito e ilustrado por Boccaccio na década de 1370.

Quanto à escolha das novelas, Maurício Santana Dias, organizador e tradutor, afirma que procurou na seleção montar um microcosmo — mesmo consciente de todas as possíveis lacunas — que pudesse dar ao leitor uma visão macroscópica do Decameron. Para compor este ângulo, foram levadas em consideração algumas célebres análises: a de Auerbach (Frei Alberto) em um capítulo de Mímesis; a de Italo Calvino (Guido Cavalcanti) na “Leveza”, em Seis propostas para o próximo milênio; e a de Benedetto Croce (Andreuccio da Perugia), uma conferência de 1911.

Espera-se que esta belíssima edição possa estimular a curiosidade por uma obra que lê com olhos irônicos e sarcásticos a sociedade de seu tempo. E já há respingos de leituras ressoando aqui e ali em nosso território: Luciana Stegagno-Picchio, na sua História da literatura brasileira, cita a lição deixada por Boccaccio ao comentar a produção do escritor e dramaturgo Ariano Suassuna. A intuição de Stegagno-Picchio revela-se interessante e tem ecos em alguns estudos mais recentes, como o do prof. Francisco C. Alves Marques, que irá identificar na literatura de cordel, em Dona Genevra, texto de José Galdino da Silva Duda, traços de Madonna Zinevra (Novela II, 9ª jornada), aproximação apontada anteriormente por Câmara Cascudo.

Enfim, contar histórias para salvar a vida — é esta uma das lições de Boccaccio que parece perviver por cá.

Decameron
Giovanni Boccaccio
Trad.: Maurício Santana Dias
Cosac Naify
128 págs.
Giovanni Boccaccio
Boccaccio (1313–1375) foi um poeta e escritor italiano. Filho de comerciantes, não seguiu o desejo do pai e se dedicou ao estudo das letras e também à crítica literária. Seu Decameron atingiu altos índices de vendagem no período, principalmente junto a mulheres e ao público burguês, e conquistou a Europa durante anos. Assim, Boccaccio obteve em vida o reconhecimento por seu trabalho, que inclui também poemas e livros de crítica.
Patricia Peterle

É professora de literatura na UFSC.

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