As veias abertas da metáfora

Contos de Sidney Rocha tratam da tragédia e da degradação mais profunda dos personagens
Sidney Rocha por Osvalter
01/11/2011

Uma velha metáfora de Julio Cortázar fala da diferença entre o romance e o conto. Os dois gêneros seriam uma luta de boxe, onde, no primeiro, o leitor precisa ser vencido por pontos e no segundo por nocaute. Ou seja, o conto tem por obrigação, no curto limite de seu espaço, surpreender, desenhar-se com a força da surpresa e do encanto. Partindo deste prisma seria esta uma arte ao mesmo tempo delicada e chocante.

O contista Sidney Rocha parece seguir o conselho do escritor argentino. Em geral seus contos trazem esta precisão do soco fatal e definitivo. Seu mais recente livro, O destino das metáforas, traz a necessidade de nocautear o leitor em cada um dos dezessete contos. São textos com um enredo pautado pela tragédia, pela degradação mais profunda dos personagens, mas, paradoxalmente, todos também escritos sob o signo do lirismo. Este contraste, dizer de atrocidades com palavras doces, é um dos mais fortes elementos do soco.

E onde nasce essa contraditória lírica? Sidney pode ser lido com um herdeiro da contracultura dos anos 60 e 70 do século passado. Todas as suas referências estão ali, naqueles dias incertos. Esta inspiração, moldurada pelos conflitos da atualidade, faz nascer uma arte nova. Em alguns momentos chega a preservar o clima de ingenuidade dos dias agora antigos. No entanto, não consegue se libertar da frieza e do individualismo tão necessários à sobrevivência moderna.

Escudado por estas paredes, é até natural que o escritor transite em um mundo simbólico, onde a aparência também carrega regras e determinações. Seus personagens são prisioneiros do acaso, quando não do próprio destino. Neste ponto destaca-se Castilho Hernandez, um cantor popular umbilicalmente marcado pela imagem que criou de si mesmo — “e compreendemos ali o abraço de Castilho em sua própria solidão”. Num emocionante concurso de televisão ele tenta reviver o próprio passado, mas há sempre uma sombra em seu caminho, um jogo de engano e novas realidades a podá-lo indefinidamente. E esta é a marca de toda literatura de Sidney Rocha, o fatalismo, as incapacidades, o destino que se disfarça em incontáveis metáforas.

Este mundo fatalista também é o espaço natural da incomunicabilidade. Em contos como O destino das metáforas e A vida e a morte de John Lennon, este pressuposto do silêncio, do que ficou por ser dito, determina a insegurança e a vida toda dos personagens. E aí o autor deita-se sobre uma das mais sólidas características da atualidade, o individualismo, a necessidade de mostrar-se como ímpar num mundo de pares. Partindo-se daí é possível perceber esta necessidade do escritor em olhar seu tempo de maneira sincera e, até por isso mesmo, dura e honesta.

Vive-se hoje um tempo de poucas facilidades e inúmeras cobranças. Neste universo caminham os contos de O destino das metáforas.

Da fatalidade, aliás, nasce a intimidade com a morte que doma quase todas as narrativas. Em contos com Ave a tragicidade da indesejada chega a ser edulcorada em favor de sua inevitabilidade. Aliás, neste conto a morte é mesmo solução para todas as pressões sociais que cercam os personagens. E perde o tom fatalista para ganhar garbo de amiga onde se aconchegam todas as dores, uma solução, enfim.

O trabalho com este misto de fascínio e terror que promove o conhecimento da morte — um sentimento universal, diga-se — já por si daria cores cosmopolitas ao livro. No entanto, ele se adensa quando brinca com todas as manifestações culturais e com todos os cenários possíveis. Alguns destes cenários são muito claros, explícitos, mas a maioria se desenha mesmo a partir da linguagem de cada personagem. A semântica ganha nova função e também é caminho para melhor se conhecer o caráter, o perfil de cada um dos viventes destas páginas.

Ainda no tocante à linguagem, é também com ela que o autor procura salientar a condição de soco de sua obra. Há, entretanto, cortes, quase frases ditas pela metade, desafiando o leitor a construir uma leitura individualizada de cada conto. Não que Sidney Rocha caia na armadilha de dizer tudo pela metade como se esta fosse uma condição indispensável à literatura de vanguarda. Ao contrário, nada menos vanguarda que estes contos. Por outro lado, nada mais moderno que estes contos que trabalham sob a inspiração e a análise da modernidade e todas as suas dores.

O destino das metáforas, como de sorte toda obra anterior do autor, se faz como um jogo de xadrez onde o leitor é obrigado a jogar, a descobrir novos caminhos, novas leituras.

Voltando ao diálogo com Cortázar, que, aliás, assina a epígrafe do livro, estamos diante de um exercício que caminha paralelamente com O jogo da amarelinha. Ao leitor cabe o arbítrio de escolher uma das incontáveis leituras que o livro oferece, pois, entre gritos e silêncios, os textos vão criando situações que, enfim, cabe mesmo à formação cultural de cada um dar o desfecho que bem entender.

Um livro desafiador e inteligente, escrito numa linguagem tão direta que se torna, ao seu modo, hermético e se oferece aberto a todo e qualquer leitor.

O destino das metáforas
Sidney Rocha
Iluminuras
113 págs.
Sidney Rocha
Nasceu em Juazeiro do Norte (CE) há 45 anos. É autor de Matriuska (contos, 2009) e Sofia (romance, 2010), ambos publicados pela Iluminuras. Atualmente vive entre o Recife e São Paulo, enquanto escreve o romance Geronimo, o primeiro de uma trilogia.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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