A uruguaia e os sortilégios argentinos

"A uruguaia", de Pedro Mairal, traz uma complexa narrativa de viagem com humor refinadíssimo
Pedro Mairal, autor de “A uruguaia”
30/03/2019

Num de seus contos mais famosos, Jorge Luis Borges imagina existir um livro sagrado que não possui início ou fim, tampouco sequências ou mensagens, e que, a cada vez que se o abre, revela algo novo que nunca será outra vez encontrado em suas infinitas páginas. O livro de areia talvez seja a melhor metáfora jamais criada sobre a própria literatura: tantos livros já lemos na vida, tantos ainda a serem lidos, e quando chegamos ao fim de um que nos tenha especialmente cativado, por banal que possa parecer sua história, sabemos na hora que aquele encontro terá sido único e que jamais se repetirá no mesmo contexto e com a mesma emoção. E mais uma vez esbarramos aqui no velho ponto de que a história é o que menos importa numa obra literária: importa a maneira como se conta a história. No conto desse que mereceu a alcunha de El Brujo, ela vem com a exemplar singeleza de um vendedor de Bíblias batendo um dia à porta do narrador que, de pronto, duvida dos sortilégios do volume que lhe é oferecido. Logo, porém, se convence, compra o livro por um bom preço, abaixo do pretendido pelo vendedor, mas que ainda assim consegue pagar, e acaba refém de sua magia. Uma sequência de belas metáforas que só os amantes dos livros saberão compreender em sua devida dimensão.

O segundo romance do argentino Pedro Mairal, A uruguaia, lançado originalmente em 2016 e que no ano passado chegou ao Brasil, quase nada tem em comum com o realismo fantástico de Borges, mas refaz, ele próprio e de modo peculiar, a trajetória do livro mágico de seu ilustre conterrâneo. Mairal conta que a obra custou um pouco a cair nas graças do público. Começou uma tímida carreira, poucas resenhas foram a ela dedicadas, o interesse veio paulatinamente crescendo e hoje já tem seus direitos vendidos a quase uma dezena de idiomas. O próprio autor trabalha no roteiro para cinema dessa que é sua segunda narrativa longa — a primeira já está adaptada para o telão. O sucesso é fruto do marketing mais antigo de que se tem notícia: o de boca em boca.

A uruguaia é um romance curto, de pouco mais de 120 páginas, cujo entrecho se desenvolve nas 17 horas de uma viagem de ida e volta que o protagonista Lucas Pereyra faz de Buenos Aires a Montevidéu para efetuar uma retirada de 15 mil dólares num banco da capital uruguaia, relativos a adiantamentos por duas obras a serem publicadas no estrangeiro. Lucas é um escritor quarentão que vive uma fase não muito feliz no casamento e na carreira; a Argentina está atravessando uma de suas muitas crises econômicas; se os dólares forem sacados em Buenos Aires, as taxas de câmbio e os impostos levarão mais da metade do valor, por isso ele decide empreender a viagem e fazer o traslado ilegal do dinheiro desde o Uruguai até seu país. Todavia há um motivo subjacente a essa preocupação meramente pecuniária: Lucas quer reencontrar uma uruguaia, essa que dá título ao livro, e consumar com ela uma aventura amorosa iniciada alguns meses antes num festival literário no país vizinho.

A narrativa em primeira pessoa é uma longa confissão que Lucas se obriga a fazer à esposa sobre a pulada de cerca e suas consequências, mesclada à sua própria reflexão sobre a crise que vive o casal. Apesar dos muitos flashbacks e monólogos interiores, a viagem é o movimento central da narrativa, e por essa característica podemos pensar no equivalente em cinema a um road movie. A linguagem e o ritmo, preocupações estilísticas que o próprio Mairal reconhece em seu trabalho, aliados a um sutil suspense, garantem um romance que prende o leitor do início ao fim. Na opinião unânime de quem já leu A uruguaia, uma vez que se começa, não há como parar.

Ingredientes fundamentais
Falou-se até agora do milagre e não se deu o devido nome ao santo. O que faz o êxito da obra, em primeiro lugar, é sua concisão. Favorece ao leitor que não disponha de muito tempo para se dedicar ao que gosta uma leitura que seja breve e ao mesmo tempo densa. Compacta, sem ser fútil ou supérflua. O romance se desenvolve, como já se disse, nas 17 horas que dura a viagem. Há muita ação, com desvios dessa linha temporal justamente nos momentos em que o protagonista está inerte a bordo de um ônibus e a ação então se desloca convenientemente ao passado. A engenhosidade da construção está no fato de que ela costura o presente ao passado, mesclando passagens em monólogo interior, com a sutileza de que, na realidade, o tempo presente está, não na viagem, e sim na confissão de Lucas à esposa. A habilidade de Mairal faz com que toda essa complexa estrutura flua com naturalidade, sem apresentar qualquer percalço ao leitor. E mais: o próprio fluxo da narrativa sugere um roteiro cinematográfico.

Um segundo ingrediente fundamental a se observar no texto de Mairal é seu humor refinadíssimo. O humor é sempre uma ajuda de luxo na composição de cenários e situações com economia de elementos. Para descrever o acampamento de “estilo homeless chique” que abrigava os participantes do festival literário, um personagem secundário, quarentão como o protagonista, é convocado à tarefa:

Vega estava invocado com as condições de higiene. Quando fui tomar banho nos chuveiros coletivos, ele me avisou: Luquitas, esses hippies têm cada fungo do tamanho da casa dos Smurfs! Tomei banho mesmo assim. 

Duas pinceladas com um fino traço de ironia e, là voilà, a cena forma-se completa na cabeça do leitor.

Há passagens de alta voltagem erótica, e sexo, quando bem explorado, é outro inegável apelo na literatura, ainda mais quando há suspense envolvido.

Mairal busca na música a analogia para seu ofício de escritor: caberia a ele, como a um regente de orquestra, dar unidade a vários elementos que, individualmente, não teriam a mesma importância. A parte do clarinete, por exemplo, seria apenas um detalhe, se tirada do contexto da obra orquestral que ajuda a compor. Mas deve ser trabalhada como uma peça única que depois será harmonizada ao conjunto. Esse conceito, que pode parecer demasiado filosófico, resta fundamental na compreensão da estética do autor. Já se falou aqui da engenhosa arquitetura do romance e de como o resultado acaba fluindo com naturalidade. Pode-se dizer o mesmo sobre o discurso propriamente dito. O léxico está adequado ao de um narrador que é também escritor, bem calibrado entre o erudito e o coloquial necessário à verossimilhança de certas situações. Isso não impede o emprego de alguns neologismos. A preocupação com o ritmo e a eufonia é evidente, e, a despeito de toda a óbvia ourivesaria envolvida, o discurso resulta simples e flui natural como a estrutura à qual está a serviço. É a parte do clarinete burilada à exaustão para que faça seu melhor quando o regente indicar o instante em que ele deve se integrar à orquestra.

Iniciou-se aqui evocando magias e sortilégios. Quem tem a sorte, então, de encontrar A uruguaia, vai por certo se encantar. E, diferentemente do que acontece com o livro de Borges, seu feitiço é do bem e não traz nenhuma consequência deletéria ao leitor. Este jamais tentará perdê-lo numa das infinitas prateleiras do fabuloso prédio da Rua México.

A uruguaia
Pedro Mairal
Trad.: Heloisa Jahn
Todavia
128 págs.
Pedro Mairal
Nasceu em Buenos Aires, na Argentina, em 1970. Seu romance de estreia, Uma noite com Sabrina Love, foi adaptado com sucesso para o cinema. Em 2017, Mairal foi incluído no Bogotá 39, que selecionou os melhores autores latino-americanos até quarenta anos. A uruguaia mereceu o Prêmio Tigre Juan de melhor romance em 2017.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

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