A urgência de contar

As histórias reunidas em "Contos sobrenaturais chineses" nos ensinam que o ser humano ainda é o melhor dos dispositivos tecnológicos
01/08/2012

Algumas histórias surgem e marcam um povo tão profundamente que passam a refletir seus costumes e crenças, seus modos de pensar o mundo. Daí o folclore, conjunto de contos cultural e historicamente expressivo, se consolida e atravessa o tempo, de boca em boca, de casa em casa, trazendo aquilo que todo autor almeja: a imortalidade de suas palavras.

As que mais perduram, em geral, são épicas ou infantis. Ilíada e Odisséia, na Grécia; Dom Quixote, na Espanha; e Os Lusíadas, em Portugal, cuidavam de exprimir o valor e os desafios dos antepassados, reafirmando a glória patriótica de uma nação. As infantis, por sua vez, quase sempre portam conteúdo educativo ou simplesmente explicam a vida e suas contingências.

Interessante reparar que a tradição folclórica brasileira segue a européia no que se refere ao uso moral das histórias. No Brasil, boitatás, sacis, macunaímas, mulas-sem-cabeça, botos e iaras ensinam e advertem, divertem e racionalizam.

O folclore chinês, diversamente, rompe com todas as expectativas de um leitor caucasiano. Claro que a fauna muda bastante: há tigres falantes e arrependidos e cavalos apaixonados, mas não é isso o que mais surpreende.

Talvez por antecederem o próprio ato do registro físico, os textos selecionados por Márcia Schmaltz e Sérgio Capparelli para a preciosa antologia Contos sobrenaturais chineses possuem uma qualidade insuspeita, somente revelada nessas entrelinhas do Oriente: a urgência do contar.

Sem expectativas, conteúdos direcionados, lições de moral ou sermões comportamentais, trata-se apenas — e mais que tudo — de uma herança cultural que prescindiu da imprensa e de qualquer outro suporte físico que não a voz.

Épocas imemoriais
Márcia Schmaltz, porto-alegrense de 1973, é intimamente ligada à cultura chinesa, adotando em seu blog o epíteto “uma brasileirinha na China”. Sérgio Capparelli, mineiro de Uberlândia, foi intensamente premiado e homenageado na Feira de Bolonha de 2012.

Como indicado pelos organizadores, foram reunidos contos representativos de vários momentos do gênero na literatura chinesa. São 25 textos de dez contistas, à exceção de alguns contos apócrifos, de um vasto período da cultura chinesa — desde os Reinos Combatentes (século 5 a.C.) ao auge da Dinastia Qing, no século 18.

As simbologias e histórias fantásticas foram graciosamente representadas pela ilustração de Ana Gruszynski, jornalista e designer responsável pela capa e projeto gráfico que buscou no teatro de sombras e em suas marionetes alegres, coloridas, ricamente detalhadas, elementos para uma atmosfera de delicadeza que só a China é capaz de exprimir.

A coletânea mais antiga consultada foi O livro da natureza, organizada entre os séculos 5 e 3 d.C., de autoria desconhecida, à qual se seguiu a obra À procura dos deuses (até 420 d.C.), escrita por Gan Bao em um tom jornalístico e narrativo. As histórias de Pu Songling, bem mais recentes, trazem sátiras e conotações morais, com o que eventualmente conclui suas histórias. A compilação mais recente, Anotações no estúdio Yuewei, de Ji Yun (1724-1805), acompanha o estilo lacônico de Gan Bao.

Entre assombrações esverdeadas, meninos-sábios e histórias sobre o nascimento das peônias, das doze luas do ano, a origem da montanha Kuafu ou do bicho-da-seda, os contos são capazes de exprimir todo o rico imaginário popular. Poucos são estruturados como fábulas, com animais falantes e lições de moral. Um dos destaques vai para a fábula A rã no poço, que ensaia a discussão entre uma rã e uma tartaruga para exibir a pequenez dos que encontram conforto em um poço fundo, lodoso e escuro, contrastando com a modéstia e sabedoria tranqüila dos outros que, como a tartaruga, já cruzaram oceanos.

Literatura que não se limita a ser suplemento de uma educação falha ou lacunosa, ou conteúdo programático que precise atender a conteúdos ou agendas específicas. Ainda menos se assemelharia a sonhos impossíveis de auto-afirmação, reforços para valorização individual ou que sirvam para a fixação de padrões sociais.

Outros contos — e aí o grande espanto — trazem notícias sobre a aristocracia e o elaborado sistema administrativo chinês, suas glórias e vicissitudes. Estão lá as figuras do juiz, do sargento, do oficial de segurança, do meirinho e do guarda-livros, e até mesmo magistrados que, após a morte, recorrem de erros judiciários cometidos em um dos 24 tribunais do inferno, encaminhando seus pleitos a ninguém menos do que Sua Majestade do Inferno. Seriam eles atendidos?

Ao fim de relatos sobre homens mágicos, pessoas transformadas em tigres, mortos-vivos chupadores de sangue e almas que se duplicam nem sempre há um resumo, explicação ou conclusão moral, e aí reside a maior beleza: há apenas a história, soberana, imortal, encantadora, registro oral de épocas imemoriais que se renovam a cada geração, repetindo o que há de mais eterno e humano — o contar.

Algo que pode talvez incomodar leitores acostumados a procurar nas histórias uma agenda. Zuo Ci, o mágico, de Gan Bao, exibe bem esse conceito: a história pela história, causo de suspense e terror, sem final, para ser repetido por adolescentes numa noite de chuva. A última frase é mais que suficiente para dar arrepios: “E, desde essa época, ele nunca mais foi visto”, o que significa que ainda pode estar nas proximidades da cidade, vagando, fazendo feitiços e poções mágicas.

Sabedoria chinesa
Entre esses dez autores há o melhor de toda a China. Cao Pi, o primeiro imperador da dinastia Wei; Dong Sizhang, poeta e literato; Li Fuyen, romancista; Gan Bao, o pai da narrativa ficcional chinesa; Ji Yun, aprovado mandarim aos 21 anos e responsável pela educação dos príncipes; Zhuangzi, fundador do taoísmo; além de outros nobres e cânones da literatura e da aristocracia chinesa.

Neste milênio, quando os chineses se preparam para atravessar as fronteiras mais remotas do Rio Amarelo para conhecer e dominar o que há para além do Império do Meio — uma extensão impressionante de terra e gente —, eles trazem uma bagagem sem peso: suas lendas imemoriais, sua tradição arraigadamente oral, um respeito absoluto e reverenciado à sua ancestralidade, ensinando assim outros valores ao mundo ocidentalizado. Ou mesmo resgatando valores que podem ter sido encobertos por uma economia de mercado que privilegia o fácil, o escrachado, o evidente e todos os demais conteúdos de assimilação imediata pelo povaréu pretensioso, desletrado e preguiçoso.

Em 2012, os chineses comemoram o ano de 4710. Nesse mesmo ano, foram a atração principal da Feira de Livros de Londres, exibindo artefatos de uma imprensa bastante desenvolvida e muito anterior a Gutenberg, que criou a prensa móvel somente em 1439. Também nessa década, são eles cada vez mais responsáveis pelos soluços da economia ocidental. Olhando para essa ampla janela de tempo, que exibe com serenidade seus milhares de anos, levantamos a cabeça do iPad, dos iPhones, dos Galaxies e Lumias para notar que o ser humano ainda é — e será por muito tempo — o melhor dos dispositivos tecnológicos. Resistente à chuva e ao calor, ao sol e à neve, dura — se bem conservado — uns 90 anos ou mais.

Além disso, os chineses nos ensinam, essencialmente, que somos dispositivos com o melhor das capacidades multimídia: registramos o essencial e o mais belo do mundo, filtrando-o com até mais do que cinco sentidos — e ainda somos capazes de transmitir de forma inesquecível e emocionada tudo isso e mais um pouco, com palavras ao pé do ouvido, com a voz à meia luz.

Contos sobrenaturais chineses
Vários
Trad. e org.: Márcia Schmaltz e Sérgio Capparelli
L&PM
127 págs.
Márcia Schmaltz
Nasceu em Porto Alegre, em 1973, mas mudou-se ainda criança para Taiwan, onde morou por seis anos. É professora e tradutora-intérprete de chinês. Formou-se em Letras e fez mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em 2005 e 2006, realizou uma especialização em tradução na Universidade de Língua e Cultura de Beijing. Em 2000 ganhou o prêmio Xerox/Livro Aberto pela tradução de Histórias da mitologia chinesa e, em 2001, o Prêmio Açorianos de Literatura, categoria tradução.
Paula Cajaty

É poeta. Autora de Afrodite in verso.

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