Uma das escritoras mais importantes da literatura brasileira contemporânea, Marilene Felinto é conhecida por seus textos contundentes e combativos, criticando as vÔrias formas de exclusão social. Agora, em Mulher feita, ela mostra sua faceta de contista (ou de retratista literÔria, como explica Heloisa Buarque de Hollanda na orelha do livro), apresentando momentos diversos da vida de personagens diferentes, através de seus dilemas, memórias, a repetição de certos temas e uma escrita viva que salta a cronologia.
Trata-se de um livro com independĆŖncia estĆ©tica, mas que, sem dĆŗvida, tambĆ©m se beneficia da experiĆŖncia e das percepƧƵes da autora. AlĆ©m de escritora e jornalista, ela tambĆ©m tem mestrado em psicologia clĆnica e experiĆŖncia em educação popular de jovens em projetos do terceiro setor.
JĆ” no tĆtulo, Mulher feita, as iniciais de seu nome se repetem. Mulher feita que lembra a expressĆ£o āmulher feiaā. A reflexĆ£o sobre a aparĆŖncia, a imposição dos juĆzos alheios (sobretudo nos corpos negros femininos) e a construção de um juĆzo próprio, Ć© tema recorrente. As histórias mostram com grande esplendor um tipo de libertação: a passagem da representação da mulher de um estado deficitĆ”rio ā de beleza ā para um estado de plenitude ā a mulher adulta, completa, que escreve (ou Ć© dona da venda!). De mulher feia a mulher feita, como ensina a professora de desenho no excelente primeiro conto Hipertexto a lĆ”pis.
Nessa história, Ć© o pai quem diz e repete que a protagonista Ć© feia. A história se movimenta pelo tempo, mapeando algumas oposiƧƵes. A rudeza do pai e a sua caligrafia linda, possibilitada, por sua vez, atravĆ©s da ambivalĆŖncia entre violĆŖncia da marcenaria e seu lĆ”pis apontado com perfeição. A etimologia de caligrafia ajuda: kal ā grĆ”phein, escrita bela, mas que Ć© tambĆ©m escrever bem, transmutação que justamente a filha opera em seu hipertexto a lĆ”pis. Transformar um trauma, um drama da juventude, em uma imagem plena de si ā atravĆ©s da memória e do lĆ”pis, duas mĆdias plĆ”sticas e, por isso mesmo, nĆ£o operam nos planos cartesianos dos sentidos (a āperspectivaā em pintura que a jovem aluna nĆ£o consegue encontrar nas aulas).
QuestƵes sociais
Felinto Ć© do tipo raro de escritor em que a ligação dura com o realismo social se mistura harmonicamente com os voos exuberantes da ficção. O real nĆ£o empobrece a ficção, pelo contrĆ”rio, o domĆnio tĆ©cnico do gĆŖnero e a potĆŖncia imaginativa de suas imagens (uma discussĆ£o sobre comer tanajuras, um website chamado https:mecĆ¢nico-definitivo) permitem um acesso refrescado, crĆtico e desautomatizado ao mundo. As questƵes sociais estĆ£o sempre presentes, mas impactam personagens bem caracterizados. NĆ£o sĆ£o tipos-ideais, mas personalidades que, embora muitas vezes compartilhem uma mesma posição, tĆŖm traƧos próprios, vidas próprias. Ć uma literatura que humaniza ao mostrar a sutileza e as infinitudes daqueles que passam apenas como figurantes ou personagens de pano de fundo em outros tipos de representação social.
Assim, se hĆ” revolta na posição da mulher, por outro lado, Felinto coloca o leitor ao lado de uma jovem que se olha no espelho e se surpreende ā se maravilha ā com o fato de ter peitos. āNossa! Mulher tem peitoā, afirmação óbvia, mas que na narrativa dĆ” lugar a uma longa rememoração sobre o processo de tornar-se āmulher feitaā:
Um dos piores momentos de sua vida, relembrava: āFoi quando me comeƧaram a surgir peitos, nos meus doze ou treze anos de idade…ā E dizia āme comeƧaramā porque era assim mesmo que tinha sido, que tinham feito com ela, que nĆ£o fora ela que fizera aquilo: āMe comeƧaram a surgir peitos!ā. E como esconder aquela protuberĆ¢ncia enxerida, ela ainda menina que brincava? Coisa embaraƧosa, que os meninos olhavam: āPois vou esfregar meu peito na sua cara, seu besta!ā ā ela ameaƧava, respondendo aos meninos que olhavam. Mas aquela remota possibilidade, aquela cena nua, aqueles mamilos atrevidos, aqueles peitilhos sendo esfregados na cara do menino… tudo aquilo lhe produzia um intenso calor corpo acima e corpo abaixo. O que era?
Uma fenomenologia do próprio corpo (um estranhamento que Ć© reconhece-se animal) dĆ” espaƧo a uma reflexĆ£o mais profunda e simbólica sobre o leite, a nutrição e o erótico, a vida que se mantĆ©m por esse leite de mamĆferas humanas que tĆŖm seios. āSou a própria projeção de mim mesma!ā Com seios e de peito aberto, feita para a vida.
Metamorfoses
Mulher feita Ć© um livro de metamorfoses. Embora as histórias nĆ£o tenham relação necessĆ”ria uma com a outra, podem ser lidas como um tipo de cronologia das formas e momentos da vida feminina, uma viagem de trem pela memória, tambĆ©m pelos encontros com outras mulheres e outras maneiras de ser mulher. Assim os contos vĆ£o construindo uma paisagem: a primeira história, lembranƧa da infĆ¢ncia, Ć© seguida pelo olhar no espelho da segunda, onde narra a mulher jĆ” feita. DaĆ, a lembranƧa de um primeiro amor, perdido e inesquecĆvel (imagem masculina quase ausente do livro como personagem falante, colocado no plano de fundo da memória). Em seguida, a lembranƧa de um encontro, jĆ” adulta, em uma viagem de trem com outra mulher ā mulher de outra cultura, de outra lĆngua, todo um estranhamento, mas tambĆ©m, um reconhecimento de coisas compartilhadas. Adiante, o contato intergeracional da mulher adulta e da mulher velha, reminiscĆŖncia viva e troca, etc.
HĆ” um homem protagonista, no entanto, um tipo de sĆ”tira de um personagem clĆ”ssico (e cansado) da ficção moderna: o escritor sem reconhecimento, cujo assunto principal Ć© a própria escrita. Mas aqui hĆ” uma mudanƧa significativa, pois ao invĆ©s de falar sobre seus dilemas, ele desiste e se torna mecĆ¢nico de automóveis. De certa forma, ele faz o caminho contrĆ”rio da personagem do primeiro conto, que passa da marcenaria rude do pai Ć literatura bem escrita. Aqui, nĆ£o hĆ” esperanƧa, apenas resignação e um tipo de alĆvio cĆ“mico. Essa divertidĆssima história tem relação com as outras, sobretudo pelo tema da busca da felicidade atravĆ©s da busca por uma profissĆ£o.
As profissƵes sĆ£o muitas e vĆ£o se modificando no livro: desenhista, marceneiro, mecĆ¢nico, costureira. Todas, no entanto, em relação com a profissĆ£o intuĆda por detrĆ”s de todo o texto: a de escritora. Mas sem metĆ”foras clĆ”ssicas bem elaboradas, como na relação entre tecer e escrever. Aqui, trata-se mais de caminhos de vida, de possibilidades que se abrem e fecham. Uma visĆ£o respeitosa, mas nĆ£o sagrada, do ofĆcio de escritor. (NĆ£o Ć© possĆvel nesta pequena resenha, mas caberia aqui uma reflexĆ£o profunda sobre a vida da própria escritora e seus dilemas de carreira ā vida cuja história se mistura com a própria história da literatura e da imprensa nas Ćŗltimas dĆ©cadas no Brasil).
Para terminar, os leitores de Felinto que vĆŖm de As mulheres de Tijucopapo (um acontecimento literĆ”rio fundamental da nossa literatura) encontram uma escritora mais madura, menos visceral, mas ainda extremamente cortante. HĆ” menos uma grande diferenƧa estilĆstica ā muitos aspectos sĆ£o reconhecĆveis, como seu uso das repetiƧƵes, as citaƧƵes, o modo teatral e ao mesmo tempo introspectivo das personagens, alĆ©m das temĆ”ticas de famĆlia, raƧa e mulher ā do que uma diferenƧa de perspectiva diante da vida e da literatura. Otimismo talvez seja palavra simples demais, mas hĆ” uma posição intermediĆ”ria, uma justa medida em relação Ć s possibilidades da vida. A mulher feita do conto que dĆ” tĆtulo ao livro tambĆ©m Ć© de certa forma a escritora feita: da pulsĆ£o vulcĆ¢nica de seu livro inicial Ć maturidade bem humorada e crĆtica desses contos.