A história da Bruxa

No romance "Temporada de furacões", Fernanda Melchor disseca, com crueza e maestria técnica, as vidas miseráveis de um povoado mexicano
Fernanda Melchor, autora de “Temporada de furacões”
02/04/2021

Em conversas sobre literatura, muitas vezes nos pegamos comparando as qualidades de diferentes obras. Alguns traçam oposições entre complexidade e acessibilidade, entre a realidade do palavreado urbano e chulo e as palavras belas e raras de certas obras do cânone, ou entre o valor de entretenimento de uma obra à sua relevância artística e intelectual. Em Temporada de furacões, a mexicana Fernanda Melchor mostra a falsidade dessas oposições, descrevendo, em linguagem suja e bela, um enredo intrigante e personagens cativantes, enquanto discute com um domínio incrível da forma temas como a pobreza extrema, misoginia, transfobia e o abuso de menores.

Não que tudo isso seja mostrado de chofre ao leitor. É bem possível enxergar, em seu pequeno capítulo inicial, a premissa de uma história detetivesca: cinco crianças, brincando na região de um minúsculo povoado mexicano, encontram o corpo morto da mulher conhecida como “a Bruxa”. Mas não é por meio de uma investigação que o leitor descobre quem era a Bruxa e o que lhe aconteceu, e sim por meio de uma narrativa que gira em torno, a cada capítulo, de um personagem.

De início, o foco recai sobre a personagem assassinada. Desde então, percebemos o quanto a Bruxa é relevante na transformação do pequeno povoado em um microcosmo de relações que parecem tão próximas à nossa realidade.

Não é só no epíteto que a Bruxa remete às incontáveis mulheres queimadas pela inquisição. Seu papel no povoado é o mesmo que tiveram as antigas bruxas, a julgar pela descrição da filósofa italiana Silvia Federici em seu Calibã e a bruxa: conhecedora de ervas e poções, a Bruxa usava seu conhecimento para auxiliar as mulheres do povoado, especialmente em questões reprodutivas, ajudando-as a lidar com doenças, impedir a gravidez indesejada, ou mesmo interrompê-la. Filha da “Velha Bruxa”, moradora de um rancho isolado, e tida como pária do pequeno povoado, era também a mulher solitária que pagava homens por sua companhia, frequentemente oferecendo-lhes drogas e bebida à vontade em festas em seu rancho.

Ao longo do romance conheceremos melhor a Bruxa por meio de seus assassinos, de mulheres que receberam sua ajuda e de jovens que estiveram presentes em festas em sua casa. Mas nenhuma dessas informações é dada por si só, sem que entendamos um pouco mais da personagem e daqueles que a cercam. Por vezes, até nos perguntamos como a narrativa de um capítulo se conectará à Bruxa.

Um exemplo é a personagem Yesenia, foco de um dos primeiros capítulos. Cedo descobrimos que sua relação com a Bruxa é pequeníssima, mas aos poucos nos vemos curiosos quanto à descrição de sua família. Sentimos por ela ao saber que tem o apelido de “Lagarta” graças à sua aparência. Ouvimos que continua cuidando da avó acamada e abandonada pelo filho e neto, os quais enxergava como santos. Entendemos o ressentimento que ela mesma tenta ignorar em relação à avó, que ainda defende a santidade dos descendentes homens, enquanto humilha Yesenia e as irmãs, sempre punidas como responsáveis pelo comportamento desses homens.

Não sabemos ainda, mas parte do que ela descreve são as origens de um dos personagens principais do romance — e, ainda sem sabê-lo, nos interessamos. Conforme sua história é contada, ela menciona, de passagem, acontecimento ou outro que pode ser relevante ao mistério da Bruxa, mas não é impossível que sua história mesma nos toque.

Em capítulos posteriores, veremos o caso de uma menina de 12 anos que sofria abusos sexuais; o espancamento brutal de um dos assassinos da Bruxa pela polícia (que não busca justiça, mas o dinheiro que, dizem, a Bruxa escondia); chegaremos a sentir pena de alguns dos criminosos, e os entenderemos melhor, embora o livro jamais trate suas ações como inocentes, e deixe ao leitor qualquer tipo de julgamento moral. Até que, num sobressalto, emergimos por um momento da narrativa, e percebemos que a frase que estamos lendo começou duas páginas atrás.

Forma única
Há quem associe os longos períodos de Proust à asma do autor, comparando-os com frases longas, emitidas depois de um respirar profundo. Não sei se a experiência do escritor foi essa, mas, como leitor, não é tão raro que me sinta assim em certas leituras: sem ar, como quem ofega, vítima da ansiedade que certos autores tentam provocar. Na obra de Melchor, pelo contrário, o que impressiona é justamente a maneira tão fluida e, por falta de palavra melhor, natural com que a autora usa estratégias de escrita tantas vezes vistas como hostis à compreensão clara do texto — inspirando-se, segundo a própria autora, pela obra O outono do patriarca (1975), de Gabriel García Márquez.

Os capítulos relativamente longos de Temporada de furacões não têm parágrafos. Além disso, suas frases se prolongam, com grande frequência, por uma página inteira ou mais. Ainda assim, em nenhum momento fui vítima dessa sensação ofegante. Pelo contrário: a mim a narrativa soou como a fala de uma avó querida, que conta tragédias ocorridas na cidade ou assistidas em noticiários sensacionalistas, transitando rápido entre uma frase e outra, lembrando-se de uma história antiga, indo e voltando no tempo, mas no fim, de algum modo, concluindo satisfatoriamente tudo que conta.

Claro, ainda que pareça emprestar algumas técnicas às tais tias, Melchor estabelece sua narrativa não linear de maneira muito mais precisa. Em momento algum o leitor se perde em meio aos diferentes elementos e histórias, pois, usando menções breves, idas e vindas rápidas ao presente, a autora impede que o texto se torne obtuso. Não só isso, mas as transições entre os diferentes momentos são sempre motivadas. Isso se torna claro pela associação das lembranças dos personagens com os pensamentos e acontecimentos de seu presente, gerando conexões nada arbitrárias entre as diferentes épocas e permitindo que as novas informações integrem o todo sem dificuldade, muitas vezes surpreendendo ou nos fazendo enxergar acontecimentos e personagens de maneira completamente nova.

Além de tudo, em meio às lembranças e acontecimentos mais diretamente ligados ao enredo, Melchor nos mostra outros eventos, cuja temporalidade é quase irrelevante, uma vez que sua função principal é expor as relações sociais no povoado. A descrição dos bares e pontos de prostituição, por exemplo, nos dá uma ideia do ambiente em que estamos inseridos, e aprendemos um pouco mais sobre a Bruxa ao saber que ela ajudava as prostitutas do povoado sem cobrar por seus serviços. Assim, a narrativa frequentemente estabelece um pano de fundo para a aparição futura de outros personagens, cujas vulnerabilidades, medos e covardias entenderemos melhor quando o romance se voltar para eles.

Mas, claro, não é só pela habilidade técnica de sua escrita ou pela capacidade de criar uma narrativa não linear tão clara que Melchor se distingue da tia contadora de histórias. A maior diferença entre elas, talvez, seja a seriedade e o peso do texto da autora, que não veste luvas, não se presta às piadas que essa tia contaria nem oculta o mais cru e sombrio dos acontecimentos e personagens envolvidos — vulneráveis, cruéis e humanos, como raras vezes se lê.

Temporada de furacões
Fernanda Melchor
Trad.: Antonio Xerxenesky
Mundaréu
216 págs.
Fernanda Melchor
Nasceu no México, em 1982. Estreou na ficção com o romance Falsa liebre, de 2013, mesmo ano em que lançou as crônicas de Aquí no es Miami — pelo qual venceu o Prêmio PEN México de Excelência Jornalística e Literária. Temporada de furacões, lançado originalmente em 2017, é seu segundo romance.
Bruno Nogueira

É mestre em Estudos Literários e autor do livro de contos A síndrome do impostor.

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